terça-feira, 11 de junho de 2013

Folguedos sustentam a tradição

O Brasil, a despeito de se tratar de um país relativamente “jovem” – foi descoberto há 513 anos e é independente, apenas, há praticamente 191 – conta com um folclore dos mais ricos e variados, fonte permanente de inspiração para inúmeros escritores, dos mais variados gêneros, na produção de notáveis e memoráveis textos literários. A catalogação das várias manifestações folclóricas é tarefa, óbvio, de folcloristas. Mas sua preservação está a cargo dos seus protagonistas, ou seja, dos seus praticantes e, sobretudo, da sua capacidade de transmiti-las de geração a geração, impedindo que desapareçam. Apesar de se tratarem de “tradições”, que se espera sejam imutáveis, elas sofrem contínuas modificações, não raro à revelia dos praticantes.

Ademais, com o acelerado processo de urbanização do País, em especial a partir da terceira década do século XX – O Brasil inverteu seu perfil populacional, que há oitenta anos concentrava 80% dos moradores no campo e 20% nas cidades e que hoje tem esses percentuais rigorosamente invertidos – novas manifestações folclóricas surgiram (e continuam surgindo continuamente), porém com características nitidamente urbanas. O primeiro folclorista a identificar o processo foi o renomado pesquisador potiguar, Luiz Câmara Cascudo, que assumiu postura inversa à dos “puristas” e considerou não somente saudável essa renovação, como até natural e esperada.

Além disso, não se opôs (como muitos fizeram e fazem) à comercialização de artesanato regional, uma das mais genuínas manifestações folclóricas do nosso povo, vendo nesse procedimento nada mais que um fenômeno universal, que classificou de “indústria do souvenir”. Todavia ressalvou, em entrevista que deu à revista Veja – publicada em 19 de abril de 1972 –: “Vendo figuras de vaqueiros à venda, fico satisfeito em saber que nossos tipos e nossa realidade estão correndo o mundo. É claro que se deve exigir fidelidade e autenticidade dos tipos. Eu, pau-brasil puro, como vou ficar contra essa expansão da minha terra? Só acho que o governo deveria disciplinar o comércio, para não ficarem inventando tipos”. Ou seja, advertiu para a possibilidade de falsificações desse artesanato característico e tradicional.

Uma das manifestações populares brasileiras, mantidas intactas em sua “pureza” original, é aquela que os folcloristas denominam, de forma genérica, de “folguedos” (porquanto, são vários, como várias são as regiões deste país de dimensões continentais, cada qual com seus usos, costumes e tradições culturais). Trata-se, grosso modo, de um misto de música, dança e teatro, geralmente de caráter religioso. Tentarei resumir, nos próximos dias, os principais deles, muitos dos quais, certamente, do pleno conhecimento do leitor, que já deve ter assistido a alguma apresentação do tipo, ou participado quem sabe, dela, ou pelo menos, ter tomado conhecimento de sua existência.

O folguedo conhecido como “fandango” (denominado, também, por alguns, de “Marujada”, “Chegança” e “Barca”), embora popular em todo o País (dado os fluxos migratórios da população), tem sua prática mais difundida no litoral das Alagoas. Reproduz, na visão dos praticantes, a epopéia dos marinheiros portugueses, através dos sete mares, em busca de terras até então desconhecidas do Velho Mundo. O tema central é denominado de “Nau Catarineta” e integra o “Ciclo Natalino” da região. No duro, no duro, trata-se da repetição – posto que por enfoque exclusivamente popular – do mito de Mefistófeles, consagrado pelo escritor alemão Johann Wolfgang Göethe na obra “Fausto”. Ou seja, o do demônio que favorece determinada pessoa, obcecada pela  ganância e pelo desejo de fama, em troca da sua alma.

O folguedo começa com um cortejo, que conduz o barco principal do enredo até o palco, onde será desenvolvida a representação. Os personagens principais do fandango são: o Mestre, o General, o Capitão de Mar e Guerra, o Gajeiro (que é o demônio disfarçado), o Ermitão, o Piloto, Sabóia, o Cirurgião Mor, Vassoura e Ração (dois palhaços) e a marujada. A nau navega sem rumo, por sete anos e meio, sem que sua tripulação consiga avistar qualquer terra, mesmo que se trate de mísera ilha. Em pouco tempo, os víveres a bordo acabam e os tripulantes se vêem às voltas com a fome. É necessário que se faça algo, e com urgência, antes que todos morram de inanição. A tripulação decide que um de seus membros terá que ser sacrificado, para que sua carne sirva de alimento para os demais. Mas ninguém se oferece como voluntário.

Após muitas discussões, os tripulantes resolvem fazer um sorteio. E o escolhido para morrer, e assim salvar os companheiros a bordo, é o General. Todavia, a sorte o favorece. Quando ele estava na iminência de ser sacrificado, do alto de cesto de gávea Gajeiro anuncia: terra à vista! O General, feliz por ter sido salvo em cima da hora, oferece-lhe a mão de sua filha, além de uma casa dourada, a título de dote. Gajeiro (que era o Demônio disfarçado, recorde-se) recusa a oferta. Quer, isto sim, a alma do General. Mas a nau chega à terra e Nossa Senhora intervém e o livra, providencialmente, das garras do ser maléfico. Todo esse enredo desenvolve-se em meio a cantos e danças. Na medida do possível, descreverei outros tantos folguedos, tão ou mais interessantes do que este.

Boa leitura.


O Editor.

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Um comentário:

  1. Aqui em Montes Claros, a 750 km da praia mais próxima - Ilhéus-, temos a marujada com a guerra entre portugueses e mouros. É a festa folclórica mais importante da cidade que se dá em agosto e também inclui os catopês, que são os negros e os caboclinhos, que são os índios. E assim, mesmo por terra, temos de admitir que a tradição do mar avança no continente.

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