Folguedos sustentam a
tradição
O Brasil, a despeito de
se tratar de um país relativamente “jovem” – foi descoberto há 513 anos e é
independente, apenas, há praticamente 191 – conta com um folclore dos mais
ricos e variados, fonte permanente de inspiração para inúmeros escritores, dos
mais variados gêneros, na produção de notáveis e memoráveis textos literários. A
catalogação das várias manifestações folclóricas é tarefa, óbvio, de
folcloristas. Mas sua preservação está a cargo dos seus protagonistas, ou seja,
dos seus praticantes e, sobretudo, da sua capacidade de transmiti-las de geração
a geração, impedindo que desapareçam. Apesar de se tratarem de “tradições”, que
se espera sejam imutáveis, elas sofrem contínuas modificações, não raro à
revelia dos praticantes.
Ademais, com o
acelerado processo de urbanização do País, em especial a partir da terceira década
do século XX – O Brasil inverteu seu perfil populacional, que há oitenta anos
concentrava 80% dos moradores no campo e 20% nas cidades e que hoje tem esses percentuais
rigorosamente invertidos – novas manifestações folclóricas surgiram (e
continuam surgindo continuamente), porém com características nitidamente
urbanas. O primeiro folclorista a identificar o processo foi o renomado
pesquisador potiguar, Luiz Câmara Cascudo, que assumiu postura inversa à dos “puristas”
e considerou não somente saudável essa renovação, como até natural e esperada.
Além disso, não se opôs
(como muitos fizeram e fazem) à comercialização de artesanato regional, uma das
mais genuínas manifestações folclóricas do nosso povo, vendo nesse procedimento
nada mais que um fenômeno universal, que classificou de “indústria do souvenir”.
Todavia ressalvou, em entrevista que deu à revista Veja – publicada em 19 de
abril de 1972 –: “Vendo figuras de vaqueiros à venda, fico satisfeito em saber
que nossos tipos e nossa realidade estão correndo o mundo. É claro que se deve
exigir fidelidade e autenticidade dos tipos. Eu, pau-brasil puro, como vou
ficar contra essa expansão da minha terra? Só acho que o governo deveria
disciplinar o comércio, para não ficarem inventando tipos”. Ou seja, advertiu
para a possibilidade de falsificações desse artesanato característico e
tradicional.
Uma das manifestações
populares brasileiras, mantidas intactas em sua “pureza” original, é aquela que
os folcloristas denominam, de forma genérica, de “folguedos” (porquanto, são
vários, como várias são as regiões deste país de dimensões continentais, cada
qual com seus usos, costumes e tradições culturais). Trata-se, grosso modo, de
um misto de música, dança e teatro, geralmente de caráter religioso. Tentarei
resumir, nos próximos dias, os principais deles, muitos dos quais, certamente,
do pleno conhecimento do leitor, que já deve ter assistido a alguma
apresentação do tipo, ou participado quem sabe, dela, ou pelo menos, ter tomado
conhecimento de sua existência.
O folguedo conhecido
como “fandango” (denominado, também, por alguns, de “Marujada”, “Chegança” e “Barca”),
embora popular em todo o País (dado os fluxos migratórios da população), tem
sua prática mais difundida no litoral das Alagoas. Reproduz, na visão dos
praticantes, a epopéia dos marinheiros portugueses, através dos sete mares, em
busca de terras até então desconhecidas do Velho Mundo. O tema central é
denominado de “Nau Catarineta” e integra o “Ciclo Natalino” da região. No duro,
no duro, trata-se da repetição – posto que por enfoque exclusivamente popular –
do mito de Mefistófeles, consagrado pelo escritor alemão Johann Wolfgang Göethe
na obra “Fausto”. Ou seja, o do demônio que favorece determinada pessoa,
obcecada pela ganância e pelo desejo de
fama, em troca da sua alma.
O folguedo começa com
um cortejo, que conduz o barco principal do enredo até o palco, onde será
desenvolvida a representação. Os personagens principais do fandango são: o Mestre,
o General, o Capitão de Mar e Guerra, o Gajeiro (que é o demônio disfarçado), o
Ermitão, o Piloto, Sabóia, o Cirurgião Mor, Vassoura e Ração (dois palhaços) e
a marujada. A nau navega sem rumo, por sete anos e meio, sem que sua tripulação
consiga avistar qualquer terra, mesmo que se trate de mísera ilha. Em pouco
tempo, os víveres a bordo acabam e os tripulantes se vêem às voltas com a fome.
É necessário que se faça algo, e com urgência, antes que todos morram de
inanição. A tripulação decide que um de seus membros terá que ser sacrificado,
para que sua carne sirva de alimento para os demais. Mas ninguém se oferece
como voluntário.
Após muitas discussões,
os tripulantes resolvem fazer um sorteio. E o escolhido para morrer, e assim
salvar os companheiros a bordo, é o General. Todavia, a sorte o favorece.
Quando ele estava na iminência de ser sacrificado, do alto de cesto de gávea
Gajeiro anuncia: terra à vista! O General, feliz por ter sido salvo em cima da
hora, oferece-lhe a mão de sua filha, além de uma casa dourada, a título de
dote. Gajeiro (que era o Demônio disfarçado, recorde-se) recusa a oferta. Quer,
isto sim, a alma do General. Mas a nau chega à terra e Nossa Senhora intervém e
o livra, providencialmente, das garras do ser maléfico. Todo esse enredo
desenvolve-se em meio a cantos e danças. Na medida do possível, descreverei
outros tantos folguedos, tão ou mais interessantes do que este.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Aqui em Montes Claros, a 750 km da praia mais próxima - Ilhéus-, temos a marujada com a guerra entre portugueses e mouros. É a festa folclórica mais importante da cidade que se dá em agosto e também inclui os catopês, que são os negros e os caboclinhos, que são os índios. E assim, mesmo por terra, temos de admitir que a tradição do mar avança no continente.
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