quarta-feira, 12 de junho de 2013

Os apaixonantes Pastoris

O folclore brasileiro, com seus folguedos e outros tipos de manifestação populares, é cada vez menos conhecido das novas gerações, ao contrário do que seria de se esperar. A televisão, o rádio, o cinema, a internet e outros tantos veículos de comunicação e informação poderiam (e deveriam) difundir mais essas expressões genuínas da alma brasileira, nossas autênticas raízes culturais, mas não o fazem. Por isso, várias dessas expressões espontâneas de nossa gente, não faz muito bastante concorridas, se tornam cada vez mais escassas e raras e sofrem a ameaça de desaparecer na onda da tal da globalização. Uma pena!

Há quem defenda – e incluo-me entre essas pessoas – a criação de matéria específica de Folclore nas escolas brasileiras de todos os graus, para que tais tradições, cultivadas por séculos, por várias gerações, sobrevivam, mesmo sofrendo eventuais modificações. Ao que me consta, porém, não há nenhum plano, ou sequer remota cogitação nesse sentido. Trata-se, no mínimo, de calamitoso descaso das autoridades com nossas raízes culturais. A globalização (a que não me oponho) deveria ser um acréscimo de informações de toda a espécie e não mero processo de “substituição”, de esquecimento do passado sob pretexto da construção do futuro.

Entre os folguedos brasileiros mais tradicionais, um dos que já foi muito popular, sobretudo no Nordeste, com destaque para os Estados de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, é o Pastoril. Ele integra o chamado “Ciclo Natalino” da região. Houve tempos em que foi requisitadíssimo, sobretudo em Olinda e no Recife. É verdade que não desapareceu de todo, mas atualmente é relegado à periferia dessas metrópoles, além de algumas pacatas cidadezinhas do interior, cada vez em menor número.

A origem do Pastoril é situada, por alguns historiadores, na remota Idade Média, mais especificamente na terceira metade do século XIII. Ele surgiu, simultaneamente, em vários países da Europa, com destaque para a Espanha e do que viria a se tornar o atual Portugal. No início, era apenas um auto natalino, representação teatral do nascimento de Jesus – a exemplo do que ainda se faz hoje em relação à Sua paixão e morte – com enfoque, portanto, exclusivamente religioso.

À medida que o tempo passava, no entanto, foi sofrendo modificações, adaptações, “modernizações” das quais a principal foi a interação entre a platéia e os atores, implicando em improvisações fora do contexto. Nem todos, porém, aceitavam essas interferências externas e não programadas. Não tardou para que se formassem duas correntes: uma, a dos “puristas”, caracterizada pela encenação ortodoxa do nascimento de Jesus, que receberia mais tarde o nome de “Presépio” e “Lapinha” e outra dos “inovadores”, admitindo crescente participação espontânea dos espectadores, interferência esta levada às últimas conseqüências, que são os Pastoris, como conhecemos hoje.

No Brasil, tivemos as duas correntes, mas em períodos diversos, ambas trazidas (óbvio) de Portugal. Por algum tempo, frise-se, uma e outra conviveram paralelas. O primeiro Presépio de que se tem notícia surgiu no Convento de São Francisco, em Olinda, em fins do século XVI. Essas manifestações de fé popular ainda persistem, mas restritas a rústicas igrejinhas católicas do interiorzão do Nordeste.

Já o Pastoril, embora não deixasse de evocar a Natividade, ganhou características independentes e peculiares. Acabou se transformando em uma grande folia, que em certos aspectos evocava (e evoca), no que diz respeito à participação do povo, o Carnaval. Seu personagem central é o Velho, ou Bedegueba, uma espécie de bufão, que dialoga com as pastoras, esparramando obscenidades que, não raro, descambam para a pornografia. Brinca com todos, não somente com os que estão no palco (geralmente improvisado em algum coreto), mas com todo o público presente.

Não raro, todavia, passa do tom. Faz pilhérias escatológicas com os espectadores, e tão “apimentadas”, que de vez em quando o alvo das chacotas se sente ofendido e parte para a briga. O Velho é pago para fazer essas provocações, denominadas de “bailes”, que a maioria encara numa boa, mas que alguns se ofendem e às vezes chegam a recorrer à violência. Os cronistas do Recife relatam, por exemplo, alguns pastoris antigos, realizados nos arrabaldes da cidade, que terminaram em conflitos generalizados, com punhais, pistolas e muitos socos e pontapés – dissolvidos com a nem sempre  providencial e moderada interferência da polícia – causados pelos excessos do Velho. Muitos dos seus “Bailes” ultrapassavam, como dá para se imaginar, os limites do bom senso e da razão.

A maioria dos Pastoris, porém, não terminava (e nem termina, pois estes ainda ocorrem com alguma freqüência no Nordeste), em confusão e pancadaria. Muito pelo contrário. E o bufão, ou Bedegueba, raramente chega, em suas provocações, às raias da ofensa, pelo menos da que requeira eventual retratação. Cabe-lhe, ainda, além desse papel de animador, comandar os leilões de rosas e cravos que enfeitam as pastoras, e que recebem lances não raro exorbitantes. O montante arrecadado é dividido entre os atores participantes, ou então é destinado a instituições de caridade. Um dos pontos altos desse folguedo é a disputa que ocorre entre dois cordões, com torcida apaixonada para as duas facções.

A competição envolve dois grupos. De um lado, fica o cordão de pastoras Encarnado e de outro, o Azul. Vence o que tiver maior torcida. Entre os dois cordões, há sempre um elemento neutro, para moderar a competição. Trata-se de uma bailarina denominada de Diana, que dança entre os dois grupos, trajando vestido em que metade é encarnada e a outra metade é azul, para simbolizar sua neutralidade. E a torcida vibra, apupa, aplaude, xinga, elogia, enfim, participa, com entusiasmo tal que não fica nada a dever aos torcedores dos grandes clássicos de futebol.

Muito ainda poderia ser dito sobre os Pastoris, mas deixo isso a cargo de escritores, notadamente de cronistas, que exploraram e ainda exploram o tema com talento, graça, beleza e veracidade. Torço, porém, de todo coração, para que essa manifestação popular (expurgada, claro, dos eventuais excessos, que sempre são ruins) sobreviva ainda por gerações e mais gerações e que o máximo de pessoas, de brasileiros de todas as partes e condições econômicas e sociais, tomem conhecimento da sua existência, participando dela ou não. Quem já tomou parte desse folguedo é testemunha que o Pastoril é apaixonante!

Boa leitura.


O Editor

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Um comentário:

  1. Não é do meu conhecimento a existência desse personagem Bedegueba. Vou me informar com os mais antigos do que eu.

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