O
torturador
* Por Marco
Albertim
Uma dúzia de mesas se espalha sob a marquise. O dono do restaurante é
gordo, tem a obesidade própria de quem trata o corpo com desleixo. A mulher,
sua esposa, tem a mesma idade: quarenta e cinco anos e vincos precoces de velhice
na palidez do rosto. A filha, com pouco mais de vinte anos, guarda no rosto a
suavidade própria da idade.
A barriga é intumescida; ela a exibe como um troféu legítimo depois do
casamento às pressas. O filho de cinco anos corre entre as mesas; seu bulício a
ninguém incomoda; é a trilha sonora de que carece a pachorra do cenário.
A família se distrai com a inquietude do menino. O freguês que está do
lado mantém-se impassível. Ele é baixo, tem os cabelos escorridos, negros,
feito uma moldura na amarelidão do rosto vincado de anos. Em cada sorvo que faz
no cigarro, há a zombaria de quem se persuade de que o câncer é doença de
pobre; não de quem acionou o gatilho de uma metralhadora, deixando uma dezena
de suados camponeses estendidos na piçarra entre o canavial. A cerveja, para
ele, há muito perdera o gosto de fel próprio do temor de sofrer uma vindita.
Não por disparo de arma, mas de um golpe de peixeira na jugular, fazendo
escorrer seu sangue também escuro, com o mesmo cheiro que ele sorvera com repulsa,
na piçarra juncada de mortos. A cerveja, para ele, é um brinde à anistia que
também o beneficia.
Ele não ri. Chamam-no Geraldo; o nome é apropriado porque tem semelhança
com geraldino, frequentador da geral. Geraldo tem severidade no rosto, inda que
dando conta do passado num canto ermo de um bar. A parede a sua frente é
musgosa; umas parasitas ali cresceram, certas de que enfeitariam as imagens
cinzentas da memória de fregueses como Geraldo.
O vento que sopra da beira da praia não faz bem à saúde; é frio e
murmura tristeza. O dono do restaurante quer reter a escassa freguesia.
Levanta-se e liga a televisão sobre a hera na parede. A novela do começo da
noite ainda se arrasta. Geraldo não tem interesse em absorver a gíria de cada
personagem; não cabe na sua linguagem muda, seca. Saíra de casa como de costume
àquela hora, para não ter que conversar consigo mesmo, com o que fora nos dias
que se seguiram ao 1º de abril de l964. Do lado de sua cama larga, na mesa de
cabeceira, há um retrato do moço Geraldo sentado no banco da frente de um Jipe;
nos dois bancos de trás, quatro policiais à paisana; todos, como ele, com
metralhadora no colo. Nã o há capota no Jipe.
Tudo é permitido a céu aberto. O retrato em preto e branco se conserva
na moldura cinzenta feito uma laje tumular; adquiriu tons de sépia no negrume
do rosto de cada um; o negrume, diga-se, emprestando loquacidade aos propósitos
daqueles homens. O retrato é um galardão. Ele o mostrara às poucas visitas, aos
congêneres, a bebedores de copo cheio e cidadania vazia.
- Geraldo. Ainda tem aquele retrato na perseguição aos comunistas?
A pergunta teve o efeito de um sopapo. Tirou-o do sono com olhos abertos
e removeu a teia de aranha que supunha já cobrindo o cinza-marrom do retrato.
- Tenho.
Andrade não foi vítima de perseguições. O 1º de abril pegara-o de calças
curtas, um maço de velas que fora comprar a mando da avó, na mercearia em
frente à Cadeia Pública de Goiana. Esquecera as velas no bolso da calça, para
urdir-se no sofrimento dos camponeses empurrados pela polícia, para dentro das
enxovias. Cresceu pensando na pele escura, curtida, do rosto de cada uma. Com o
tempo, sentado ao lado do avô, na mesa onde a família se livrava do jejum,
começou a entender.
- É a perseguição aos camponeses do sindicato - dizia-lhe mestre Lira,
alfaiate de pele curtida e ideologia rubra.
Num instante, Geraldo levantou-se, sentou-se ao volante do Fiat e trouxe
o retrato. Mostrou-o a Andrade certo de que a mocidade do interlocutor
absorveria a maturidade no rosto dos ocupantes do Jipe.
O noticiário da televisão mostrou a polícia na Avenida Paulista,
reprimindo estudantes. A fumaça das bombas de gás lacrimogêneo avivou a memória
de Geraldo. O dono do restaurante, com as bochechas vermelhas, ordenou silêncio
ao filho barulhento; teve a ajuda servil da mulher.
- Já jogou bombas em manifestantes, Geraldo? - quis saber Andrade,
curioso para saber como se movem as entranhas do pensamento de um torturador.
- Não. Metralhei camponeses porque estavam todos armados com enxadas e
estrovengas. Vinham todos em nossa direção. Já pendurei muitos no pau de arara
para dizer onde estavam os outros.
Com o fim do noticiário, a televisão foi desligada. O retrato em preto e
branco de Geraldo substituiu as cores da Globo. O círculo fechou-se em torno
dele, de suas narrativas de quando fora torturador.
*Jornalista e escritor.
Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife.
Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do
concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em
concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite,
integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”.
Tem três livros de contos e um romance.
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