quinta-feira, 13 de junho de 2013

Fruto da crença

* Pedro J. Bondaczuk

O medo, desde que não anormal e imotivado, é uma reação sadia, necessária e instintiva de todo e qualquer animal. É uma espécie de alerta, de sinal vermelho, para que se evite o que possa vir a trazer riscos à nossa integridade física e até à vida. Todos seres vivos sentem-no. Desconfio que até as plantas possuam, em certo grau, esse mecanismo de proteção, senão de defesa, embora, óbvio, não tenha a mínima condição de comprovar essa suposição.

Trata-se de tema recorrente em minhas reflexões (que já andam pela casa de alguns milhares de textos, que classifico de crônicas, mas que muitos insistem em dizer que são ensaios. Alguns, exagerados, afirmam, até, que lembram os de Montaigne. Exagero, claro. E nem a minha pretensão chega a tanto). Sou – como os leitores certamente já notaram – incansável estudioso do comportamento humano com suas infinitas nuances. E sempre me surpreendo com reações com as quais sequer atinava. Essas descobertas, por seu turno, remetem-me a novos estudos, mais observações, intermináveis leituras etc. etc.etc., numa atividade sem fim.

Sobre o medo, inclusive, cheguei a fazer, em fins dos anos 80, uma conferência no auditório do Senac, em Campinas, num programa que contou com vários especialistas na matéria, como psicólogos, psiquiatras e estudiosos do comportamento. Ensinei (pouca coisa), aprendi muito e foi uma saudabilíssima troca de informações entre oradores e platéia, composta, quase toda, por profissionais da área e estudantes.

Óbvio que, antes de tudo, tracei a distinção entre o medo normal, saudável, instintivo e necessário, e o doentio, exagerado, superlativo: o pânico, o terror e outras tantas manifestações patológicas (entre as quais, as várias fobias). Reitero que ensinei (pouca coisa) e aprendi (muito) com os ilustres conferencistas que me sucederam. Até hoje, todavia, não entendi a razão de haver sido convidado para esse evento.

Não sou psicólogo, psiquiatra ou algo que o valha. Não passo de um projeto de escritor que tem, como “matéria-prima” do seu trabalho, o ser humano, em toda a sua grandeza,  majestade e transcendência e, também, na sua miséria, fragilidade e efemeridade. É verdade que, pelo visto, saí-me muito bem na conferência. Pelo menos fui agraciado por prolongados aplausos, de uns cinco minutos de duração, com a platéia toda de pé. Provavelmente, tratou-se de generosidade dos presentes.

Na ocasião, eu ainda não havia lido o conto “O medo”, de Guy de Maupassant, que em poucas palavras, traz subsídios valiosíssimos para o estudo do tema. Uma pena. Se tivesse lido, minha performance, certamente, seria melhor e minha preleção, mais proveitosa. Como se vê, não raro os escritores têm mais coisas a dizer sobre comportamento humano do que os especialistas. É o caso.

Maupassant coloca, na boca do principal personagem do conto, esta constatação: “O medo (e os homens mais valentes podem sentir medo) é algo terrível, uma sensação atroz, uma espécie de dilaceramento da alma, um tremendo espasmo da inteligência e do coração, cuja simples lembrança nos faz estremecer de angústia. Mas quando se é corajoso, isso não acontece diante de um ataque, nem diante da morte inevitável, nem diante de qualquer das formas conhecidas de perigo; isso acontece em determinadas circunstâncias anormais, sob determinadas influências misteriosas e diante de riscos vagos”.

Medo, portanto, desde que motivado, ou seja, face a um risco concreto, iminente ou não, não é sinônimo de covardia. E nem a sua ausência, nesses casos, é sinal de coragem. É, isto sim, sintoma de imprudência, de temeridade, de falta respeito, valorização e de amor à vida. Mas não é esse o aspecto que considero mais relevante no conto de Maupassant. É esta observação complementar: “O verdadeiro medo é como uma reminiscência dos terrores fantásticos de outrora. Um homem que acredita em fantasmas e que imagina ver espectros à noite deve sentir o medo em todo o seu medonho horror”.

Esse sentimento subjetivo, que causa efeitos irreversíveis na mente e que depende exclusivamente da crença, é que deve ser evitado. Produz sofrimentos impossíveis de serem dimensionados e, levado ao grau extremo, o de terror, pode, até, redundar na morte de quem passa por essa traumatizante experiência. Deve-se, pois, cuidar naquilo em que se acredita.

Eu, por exemplo, tive, durante muitos anos (e não somente na infância, mas em boa parte da adolescência) um medo enorme de escuro. Apesar da minha parte racional dizer-me que não havia perigo algum na falta de luz (a não ser o risco de algum tropeção ou queda em algum buraco ou outra coisa do tipo), o lado irracional punha todo o meu corpo em alerta. Resolvi buscar no passado a causa desse meu comportamento que me constrangia tanto.

Depois de forçar muito a memória, finalmente descobri. Quando eu tinha quatro anos de idade, um tio me disse, para acalmar minhas traquinagens noturnas, que eu não deveria brincar à noite no quintal, pois lá havia “um monstro” que atacava criancinhas desobedientes. Aquilo calou fundo no meu subconsciente. Por que? Não sei! Desde então, a escuridão passou a me apavorar. Por que esse medo se instalou tão fundo na minha mente? Simplesmente, porque “acreditei” no que um adulto havia me dito, mesmo que eu ou qualquer outro menino com que me relacionava nunca tenhamos visto qualquer criatura monstruosa e homicida na escuridão.

A partir do momento em que passei a não dar mais crédito a essa bobagem, esse medo tolo desapareceu, como que por encanto, e para sempre. Devemos pensar bem, portanto, no que dizemos às crianças. Aquilo que pode nos parecer uma observação casual, trivial e aparentemente sem conseqüência, pode marcá-la para sempre. Aliás, sou contra tratar alguém, tenha a idade que tiver, como se fosse bobo. Sou avesso a esse excesso de “inhos”, ditos aos pequeninos, essa infantilização dos adultos, achando que com isso serão mais simpáticos e mais amados por seus filhos, netos ou sobrinhos. Certamente, não serão.

Não se deve mentir, seja por qual motivo for, para uma criança. Não se deve incutir, sobretudo,. em suas mentes, fantasias de quaisquer espécies, notadamente as de caráter negativo. Elas, no momento adequado, saberão elaborar as suas. E, certamente, estas não serão assustadoras e muito menos aterrorizantes. Afinal, o medo é um mecanismo de defesa importante demais (e indispensável) para que se brinque com ele.

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk 

Um comentário:

  1. Elucidativo. Também já escrevi sobre o medo, mas sem nem chegar perto do seu brilho.

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