Uma enorme família
* Por Mara Narciso
O comercinho era atrasado e longe de tudo, em 1947. Um lugar que poderia
ser classificado como um grotão ou burgo podre, ou nem ter classificação. Eram
umas vinte taperas, no meio da poeira, e de umas poucas bananeiras lá no alto.
Na parte de baixo ficava um rio grande e só podia ser grande mesmo, pois não
secava. Tinha navegação de canoas e algum peixe também, mas pouca novidade
vinha pelo rio.
Mais adiante ficava a rodagem. Antes só as tropas vinham trazendo
víveres, correspondência, remédio. Não fora o rio, no começo, o povoado não
existiria. Era uma pobreza que desafiava a compreensão da sobrevivência. Não
tinha professora e nem padre. Havia uma construção, um arremedo de igreja
minúscula, sem acabamento e nem imagens. Deus se esqueceu daquele lugar. Tinha
uma venda suja, de cheiro característico, chão de terra, com dois sacos na
porta, um de farinha e outro de feijão. Mais adiante dois rolos de fumo sobre
uma tora de pau, um inteiro e outro pela metade, um estojo que já foi dourado,
cheio de rapé, algum café para torrar, meia dúzia de rapadura e umas três
garrafas de pinga. Podia haver em certas épocas gamela, rede de embira, talvez
um queijo ou um corte de morim, quem sabe alguma mandioca, ou uma cesta de
taquara. Mas balcão encardido tinha. Lá era servida a cachaça. Em frente uns
cachorros tomavam sol e passavam fome. Pura sarna e pulga.
Os viventes daquele lugar que nem nome tinha, pois se discutia entre
duas denominações, e a preferência de dois santos, nem tinham certeza se
viviam. Os casebres de pau a pique, capim trançado como teto, único cômodo,
chão batido, quatro varas, outras trançadas, com capim por cima fazendo às
vezes da cama, onde quantos coubessem dormiam. Num canto, um bolo de barro, com
algumas panelas e latas era o arremedo de um fogão. De dia, a fome, a sujeira,
os piolhos e a verminose tomavam conta, e à noite os chupões saiam aos milhares
para retirar o restinho de sangue formado a duras penas, transmitindo a doença
de Chagas. Também pulgas e outras pragas atormentavam o couro grosso daqueles
sertanejos que pareciam não sentir as picadas, mas os lanhos de unha por vezes
riscavam a pele por onde porejava um sangue ralo. Frio, os moradores não tinham
o direito de sentir. Ainda bem que lá geralmente fazia calor. Noutro caso
acendiam-se fogueiras.
Era um mundo perdido, onde ninguém tinha sapatos, talvez alguma
alpercata rudimentar caseira. Tinham um linguajar único, num grupo tão fechado
e com suas próprias regras, que quem vinha de fora não entendia e mal se fazia
entender, quando muito por gestos. Era quase um dialeto. Às vezes passava um
mascate com sua mala, mas a parada era curta, pois ninguém tinha dinheiro, nem
nada para trocar. Ainda assim era uma festa, pois habituados a cobrir o corpo
com pano de saco, ver os coloridos daqueles lenços e metais brilhantes era um
êxtase.
Ninguém sabia ler e nem tinha rádio por lá. Alguém contou que a grande
guerra tinha acabado, mas era impossível saber do que se falava. O entendimento
era pequeno. Comiam-se rapadura, mandioca, farinha, beiju, abóbora, milho,
farinha de milho, arroz, feijão e com muita sorte, de vez em quando leite,
queijo, ovo, frango, ou matava-se um boi. Porco era mais raro. Trigo não tinha.
O bolo e o biscoito eram de goma.
Uma daquelas famílias era composta de pai, mãe e seis filhos. Quatro
casas adiante, naquele aglomerado, que longe estava de ser um arruamento, havia
outra tão pobre quanto a primeira. Pau, palha, barro, mais uma tapera, cheia de
crianças barrigudas, cheias de vermes, inchadas devido à fome. O que a
esquistossomose não queria, sobrava para a doença de Chagas. A mãe da quarta
casa tinha cinco filhos, era nova, mas ao dar o peito ao filho mostrava apenas
uma muxibinha seca, apontando para baixo. Pelo tamanho dos meninos, o mais
velho de sete anos, aparentando a metade, sabia-se que a mulher encontrava-se
lá pelos seus trinta anos e, desdentada, já se apresentava velha. A imagem era
calamitosa, coberta por andrajos, doente, faltavam-lhe as forças, fedia. E o
rio lá embaixo com bastante água.
Os meninos, quando dentro da barriga, ainda tiravam tudo que a mãe
tinha, e mesmo que ela não comesse, o feto extraia até o tutano do osso
materno. Pulava pro lado de fora aos berros, quase escorregando pelas mãos
imundas da parteira, cuja unha fétida e preta de sujeira podia cortar o períneo
da mãe e o deixar “como Deus é servido”. Assim que o pouco leite secava,
começava o sofrimento. A mãe dava água de rapadura para os meninos como se
leite fosse, ou papa da farinha para tentar aplacar a agonia da fome. Boa parte
morria do mal de sete dias, o tétano.
O pai era lavrador, quando chovia e tinha roça. Mas a chuva era pouca
por lá. Roçava, preparava o chão, plantava, e esperava a chuva chegar. Quando
dava certo, e não estorricava tudo, colhia um pouquinho, alguns grãos na meia
com o dono da terra. Trazia para casa aquele tiquinho de “trem”, que mal dava
para uma refeição da família. Cara marcada pelo sol e toda vincada, devia ter
seus 35 anos. Vinha de mansinho trazendo alguma coisa para os meninos. Jogava
lá no canto do fogão e sem banho e nem nada puxava a mulher e a tinha num canto
mais reservado da casa, mas quem estivesse por lá percebia tudo. Acostumados,
pela lida na roça e pela visão dos animais, as crianças pareciam não se
importar. E ainda estremecendo, o pai logo saía e ia para a outra casa. A tal,
logo adiante. Lá a cena se repetia. Algumas vezes na única cama, muito próximo
dos filhos.
E a filharada ia rendendo em dose dupla. Quando nascia um cá, nascia
outro lá. Às vezes com diferença de poucos dias. Os filhos conviviam, as mulheres
também, e não havia brigas nem ciúmes. A preferência de todas as crianças, que
chegaram ao número de 23 quando os mais velhos já estavam ficando moços, era
pela segunda mulher. A primeira, que era a, digamos, oficial, era caladona,
cara fechada. A segunda era risonha, cheia de atenção pra dar. Ela não fazia
caso. Distribuía carinho no seu modo tosco para os filhos dela e os da outra,
além do marido, que era mais dela que da primeira, pois findo o serviço, não
voltava para dormir na primeira casa. Sentado na porta, ficava de cócoras
pitando o cigarro de palha, e dando grossas cusparadas no terreiro, a ponto de
espantar o galo que já ia se empoleirar. Ficava na casa até a hora de ir, na
manhã seguinte, escuro ainda, café preto na barriga, para a roça.
Os filhos, muito amigos entre si, faziam as duplas de acordo com a idade
e, mesmo tempos depois, com os pais falecidos, continuaram juntos na enorme
família. Mesmo com o exemplo paterno, não adotaram a bigamia como modo de vida.
Habitam a cidade de acordo com as normas locais, frequentam a igreja e não
julgam os pais.
Duas das meninas, separadas no nascimento apenas por poucos dias,
estavam sempre juntas, feito unha e carne. Onde estava uma, logo chegava a
outra. Pareciam irmãs de pai e mãe, e de fato eram quase gêmeas que nasceram e
cresceram juntas. Hoje, as duas senhoras continuam muito amigas e tudo de que
precisam, mesmo casadas, resolvem juntas. A única contingência foi terem duas
mães. O restante pode encabular aos outros, mas não a elas.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Excelente retrato por escrito, pleno de embutidas denúncias sociais. Muito bom, Mara. Um abraço de parabéns.
ResponderExcluirFiquei feliz com o seu comentário, Marcelo. Uma das duas irmãs é cliente antiga e eu nem desconfiava da história. Uma vez foram as duas e acabaram me contando ser irmãs do mesmo pai e mães diferentes, vizinhas, nascidas com poucos dias de diferença. Eram da roça, dum povoado muito pobre. Daí eu escrevi . Parti da ideia dos 23 irmãos, daí o nome de "A Imensa Família". Agradeço-lhe muito esse elogio e essa força. É um estímulo e tanto, e prometo ficar atenta e procurar melhorar mais, inclusive, quem sabe, encontrando um título impactante?
ExcluirÓtima tarde e muito obrigada!