Purificação
do mundo
* Por Pedro J.
Bondaczuk
O homem – por mais que nos doa e nos constranja
admitir – é, sobretudo, animal. É dotado dos mesmíssimos instintos e
necessidades dos demais seres viventes. Não houvesse desenvolvido talentos,
através das artes – manuais e espirituais – seu destino, portanto, seria igual
ao dos demais companheiros de criação. Ou seja, viveria por viver, brigaria por
alimentos e por parceiras para se acasalar, se reproduziria e depois
desapareceria, sem deixar vestígios, sem personalidade e nem identidade e
sequer sem ter noção do tempo e nem se preocupar com ele.
Construir uma casa para morar é uma arte. Produzir
fogo e artefatos que permitam facilidades como comer, cortar, se defender;
cultivar a terra etc. também é. Desvendar os segredos da natureza e usar, com
perícia, seus múltiplos recursos (como a agricultura e a pecuária) igualmente se encaixa nessa categoria.
Mas a maior obra de arte do homem (a que mudou toda
sua trajetória e destino) foi a invenção da escrita. Esta possibilitou-lhe
preservar um bem intangível, o que até então era de quase impossível
preservação: idéias, sentimentos e experiências, que puderam ser passados de
uma geração a outra, sempre com novos acréscimos. Isso, e apenas isso, permitiu
a esse animal tão frágil superar os demais, muito mais fortes do que ele e
dominar o planeta. Através da arte, racionalizou sentimentos. Fez um amálgama
entre razão e emoção. Descobriu, desenvolveu e aplicou talentos inatos e
aprendeu, sobretudo, a criar e não somente a elucubrar.
André Malraux considera cada obra-prima uma vitória
do artista sobre a servidão humana aos seus instintos. A arte mudou (e muda),
não somente o destino individual do artista, mas o da humanidade que se
beneficia com ela. Daí o escritor francês classificá-la, no livro “Vozes do
Silêncio” de “anti-destino”. O artista (e em certa medida, todos nós somos)
contraria, com sua força e vigor, as expectativas originais em relação ao homem
enquanto animal. Por ela, ele conquistou identidade. Tem, portanto, o direito
de sonhar com a imortalidade (não a física, óbvio, que lhe é interdita, mas a
da sua “criação”).
A arte tornou o homo sapiens auto-suficiente, ao
contrário dos outros animais, que dependem, exclusivamente, da natureza para
sobreviver. Os herbívoros, por exemplo, não plantam as ervas de que se valem
para se alimentar. Não podem viver onde estas não existam em profusão.
Já os carnívoros não criam – como os homens fazem –
suas “presas”, seus “pratos favoritos”, que lhes saciem a fome e garantam a
vida. Têm de caçá-las onde elas estejam. Foi a arte, pois, que fez desse animal
– que tinha tudo para desaparecer como espécie, face à sua fragilidade – o
verdadeiro “rei da natureza”.
Ela, contudo, nem sempre tem esse sentido prático
que tão sucintamente descrevi. Hoje em dia, é entendida, apenas, em sua função
estética, da criação e preservação do belo, embora não seja, como vimos, sua
única manifestação. Sequer é a mais importante. Através da arte, o homem tenta
(e às vezes consegue) a purificação do mundo. Vai além da realidade rude e
selvagem e transcende tudo o que se espera de um animal. Aproxima-se da
divindade. Torna-se, literalmente, “sua imagem e semelhança”.
O
fundamento da arte (e aqui refiro-me à voltada exclusivamente para a estética),
seu alicerce e principal fulcro, está no que Fernando Pessoa denomina de
“sinceridade traduzida”. Ou seja, na “interpretação” que o artista faz de tudo
o que vê, ouve ou sente, e que
transforma, a seu gosto, com a força do seu talento, em imagens, textos
e sons.
Por
isso, os melhores poemas de amor (e de outro tema qualquer, ressalte-se) são os
que abordam situações imaginárias, que nunca ocorreram e podem jamais ocorrer.
A realidade é feia, bárbara e dramática. Não a suportaríamos em sua nudez e
crueza. Mas o artista a recria e lhe dá toques de magia, de beleza, de mistério
e de encantamento. Estaria mentindo? De jeito nenhum. Está sendo absolutamente
sincero.
É
a essa situação ideal que Pessoa classifica de “sinceridade traduzida”. Uma
descrição rigorosa e fria de uma pessoa, sentimento ou cenário, não raro não se
constitui, sequer, em arte.
Pode ser tudo, reportagem, documento, registro, menos
manifestação artística. Fernando Pessoa justifica a afirmação da seguinte
forma: “Três espécies de emoção produzem grande poesia: emoções fortes, porém
rápidas, captadas para a arte tão logo passaram; emoções fortes e profundas ao
serem lembradas muito tempo depois; e emoções falsas, isto é, emoções sentidas
no intelecto. Não a insinceridade, mas sim, uma sinceridade traduzida, é a base
de toda a arte”.
Quanto
mais intensa for alguma emoção, maiores serão as impossibilidades delas serem
expressadas por imagens, sons e, sobretudo, palavras. Tudo o que dissermos ou
escrevermos a respeito, não passará de ridícula e distorcida caricatura desse
sentimento. Não se pode racionalizar o irracional.
Emoção
e razão são dois compartimentos distintos e estanques. Para se expressar um
grande amor, por exemplo, de forma que se torne minimamente inteligível, só há
uma única maneira: é amando. E, assim mesmo, é indispensável que haja completa
reciprocidade por parte da pessoa que seja alvo desse amor. Caso contrário...
As descrições que se fizerem não passarão de palavras ao vento que até podem
encantar os basbaques, mas que serão despidas de conteúdo.
Mais
uma vez, portanto, sou levado a concordar com Fernando Pessoa, quando escreve:
“Quando puderes dizer o teu grande amor, deixa o teu grande amor de ser
grande”. E deixa mesmo. Qualquer um pode comprovar a veracidade dessa óbvia
constatação. Basta estar atento e ter olhar de artistas (que, reitero, todos
somos, em certa medida).
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio
Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor
do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico
de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos
livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos),
além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O
Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com.
Twitter:@bondaczuk
Gostei especialmente de "Através da arte, racionalizou sentimentos. Fez um amálgama entre razão e emoção".
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