Náusea
* Por Marco Albertim
Houve um tempo em que os fascistas eram adamados; no vestir e nos modos,
os gestos eram trejeitos de dominação de classe; com anéis luzentes, relógio no
bolso do colete, guinchado na pulseira. Ao lado de uma dama real, tão maquiada
quanto a pátina de uma estátua velha.
Assim Virgínia Lane se anunciava no Palácio do Catete, para o delírio de dominação do caudilho Vargas. Vargas, por certo, tinha seu relógio no bolso do colete para certificar-se de que a esperada amante seguira à risca o horário acordado.
O Estado Novo ficou para trás. A ditadura de 1964 também, mas sua memória ainda é fresca no juízo de rapazes recém-entrados nos cinquenta anos de vida. Um exemplar da safra ainda não esgotada é Adroaldo Figueiredo. Engenheiro com formação gorada, não exerce o ofício. O pai é dono de um hotel de estrelas minguadas, é senil e entrega a administração do estabelecimento à filha. A filha, segura do rumo que dá ao hotel, não consente o trânsito do irmão na portaria, nos corredores e muito menos na cozinha. Adroaldo Figueiredo, conforme ela, é avesso ao trabalho e dá palpites em tudo, sem pedir licença, sem ser chamado.
Ele mora sozinho na casa que construiu e não terminou por escassez de recursos. No passado, recebera sua parte da herança de sua mãe. Confiou na experiência de um gerente de banco, e deixou o dinheiro sendo gerido pelo gerente de rendimentos. Viajou para Santa Catarina, bebendo chopes e comendo linguiças assadas. Na volta, o gerente sumira do banco com o dinheiro.
Na sua juventude, o pai ministrara-lhe doses sem medida de ódio a políticos de esquerda. Miguel Arraes de Alencar, ora... Sequer o nome podia ser mencionado, mesmo nos fundos do hotel, onde havia um chiqueiro de porcos.
A interrupção no modo direto de mostrar seu perfil, não é para lhe poupar censuras. Censuras são punições leves a quem julga negros como caranguejos, “só prestam as fêmeas.”
O certo é que numa noite de sexta-feira, as horas foram tão aziagas que uma chuva abundante, transbordando os esgotos da rua em frente à marquise, seria bem-vinda para distrair os sentidos. A praia está escura. A avenida paralela à beira-mar infunde-se de um mormaço sem cura. A cerveja tem propriedades mais que viciosas, tem a moldura do eldorado.
A faxineira da casa onde moro, gorda, lenta, tem a vista escassa e fala com a boca sem dentes, misturando às palavras a saliva grossa. Está suada e não se queixa do calor.
- Desço para tomar duas cervejas, d. Marcionila. Na volta eu lhe pago.
- Não tem pressa – ela diz. É o modo de dizer que não devo me demorar.
A cerveja refresca minhas entranhas, mas a espuma no copo me remete à saliva babosa de d. Marcionila.
O calor também move Adroaldo Figueiredo para o bar. Eu não o suporto e ele sabe disto. Senta-se na mesa vizinha a minha. Para disfarçar o propósito de me provocar, vira o encosto da cadeira de modo a ficar de costas para mim.
- Os comunistas são todos bandidos! Sem exceção. O exército ainda vai voltar
para acabar com a raça deles.
Olho para a cerveja com pena; o frescor que sai da garrafa não tem ofensas. O bálsamo dali extraído é, no entender de Adroaldo Figueiredo, de propriedade e usufruto da elite que ele cultua e da qual se crê um membro inamovível. Há tempo para sorver o derradeiro gole da cerveja que não se faz seguir de outra. Pago a conta magra, tão magra quanto o minguado prazer de ter bebido uma só garrafa. O proprietário, um gordo rapaz de feições submissas, sabe a razão de minha súbita retirada. Não reclama de Adroaldo Figueiredo. Distingue nos olhos dele o brilho fosco do pequeno-burguês decadente; decadente e com o peito estofado.
Dobro a esquina. Ele sabe que vou sumir de sua vista. Olha para o dono do bar, e põe a boca no rumo de meus passos.
- O Brasil só vai dar certo quando for ocupado por tropas americanas!
Os beiços de d. Marcionila cobrem-se de baba. O fel da ideologia de Adroaldo Figueiredo é mais corrosivo.
À noite, no sono, não houve pesadelos; só uma vago cenário com juízes togados consultando o novo Código Penal Revolucionário. A manhã se mostrou clara, com nenhuma promessa de revolução.
*Jornalista e escritor.
Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife.
Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do
concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em
concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite,
integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”.
Tem três livros de contos e um romance.
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