terça-feira, 11 de junho de 2013

A besta na jaula

* Por Amilcar Neves

O ano é 1916.

O mês: agosto.

O dia: a sexta-feira 11.

O local: uma sala escurecida, fedendo a cigarro, poeira e tinta, na rua Jeronymo Coelho nº 5. Silenciosa e vazia, os sons e ruídos da cidade, escassos, não conseguem vencer venezianas, vidros, postigos e as gastas cortinas aveludadas, menos ainda as grossas paredes da edificação.

Um barulho seco e brusco tira os móveis da modorra noturna. Embaixo, as máquinas silenciaram há muito e o alarido dos moleques vai longe, anunciando as maravilhas espantosas estampadas pelo jornal vespertino. Quase se pode dizer que a cidade honesta se prepara para dormir. Aqui e ali se vão encerrando os serões das famílias, as pessoas a se despedirem respeitosas. Logo o Teatro Álvaro de Carvalho concluirá outra encenação de uma revista musical de vibrante sucesso, escrita por consagrado autor da terra.

Nesse silêncio ordeiro de gente devota e virtuosa, de cidade comportada, o barulho embaixo se repete, agora mais seco e impaciente, e a fechadura da porta externa cede sob a pressão, rangendo num guincho agudo que perfura a noite. A Ilha treme um pouquinho, uma luz se acende na casa em frente, uma janela se abre no sobrado e uma dona assoma sonolenta, o roupão descuidado, aberto, deixando à mostra um seio de alabastro que jamais recebeu o calor do sol; coroando-o, um mamilo escuro desponta impudente.

Oclândio Ramos faz um sinal para Lindaura Consuelo e lhe dá as costas. Ela, por sua vez, afasta-se do ar frio da noite e, em segundos, a luz do quarto no sobrado está apagada.

Para mesas, máquinas de escrever e cinzeiros atulhados de xepas de cigarro na sala do nº 5 da Jeronymo Coelho, porém, a tensão aumenta a tal ponto, com o barulho que vem de baixo, da porta da rua, que nem a poeira suspensa no ar abafado se sente em segurança. Agora são como que passos escalando degrau a degrau. Um vulto surge nebuloso no topo da escada.

Dito vulto cruza o local como se conhecesse cada obstáculo como o corpo da amante, mete a mão no trinco da porta de vidro, escancara-a, senta a uma escrivaninha, acende um cigarro, liga um abajur de mesa, da sua mesa, pega uma lauda em branco e alimenta a máquina de escrever. Analisa a folha vazia à sua frente e então datilografa no alto da página, em capitais, as palavras A Besta na Jaula.

O vulto é Oclândio Ramos, redator chefe e diretor comercial deO Estado, o “Jornal de maior circulação em Santa Catharina”. Oclândio olha para a mesa vazia da sua secretária, ao lado, e conclui que é melhor assim, “com a Lindaura Consuelo por perto, e sem ninguém na redação, não ia sair matéria alguma”, e ele tinha que trabalhar no furo que iria estremecer a cidade e, em seguida, todo o estado.

Oclândio acabara de ver Joaquim Adeodato, recém-chegado à cidade pelo vapor Max, da companhia de navegação de cabotagem do alemão Hoepcke. Mandou fotografar para o jornal o último chefe dos fanáticos no Contestado: descalço, em mangas de camisa, ladeado pelo tenente Cabreira e por um cabo do Regimento.

Vai ser o furor do fim de semana!, avaliava Oclândio, a cidade vai falar nisso até o Natal!
Entusiasmado, “é isso que o povo quer”, considerou, pôs-se a teclar com fervor quase religioso, numa fúria santificada:

“Desde que se soube aqui, por via telegráfica, que havia sido preso, pelo tenente Cabreira, o célebre bandoleiro Joaquim Adeodato, a população está vivamente interessada em conhecer esse homem, sobre quem pesam os mais graves crimes.

“Ontem, circulou na cidade a notícia de que o célebre chefe dos fanáticos vinha para esta capital, a bordo do ‘Max’.

“A curiosidade pública se acentuou, então, e grande massa popular se avolumou no trapiche Rita Maria, onde atracou o ‘Max’, às 11 horas, esperando ver o indigitado facínora.

“Mas, a polícia, previdente, havia partido, em sua lancha, ao encontro do ‘Max’ e, no canal do Estreito, o abordou, recebendo a bordo da ‘Santa Catharina’ o terrível fanático que desembarcou, escoltado, pelo trapiche da Praia de Fora.

“Dali Adeodato foi conduzido à cadeia pública, onde está recolhido.

“Mesmo assim, pelas ruas por onde transitou a escolta que trazia o indigitado criminoso, foi se reunindo grande número de curiosos que vieram, na retaguarda da escolta, acompanhando Adeodato até a cadeia.
“Adeodato será interrogado hoje pelas autoridades.”

Oclândio recostou-se satisfeito na cadeira, jogou os olhos sobre o texto fresco, acendeu o oitavo cigarro, pensou com volúpia nos seios brancos de mamilos pretos e atrevidos de Lindaura Consuelo e sorriu de bem com a vida.

Sob a mesa, no cesto de lixo, amassado com raiva e picotado em dezenas de fragmentos, jazia o texto de duas colunas da entrevista exclusiva que “esse imbecil do Teotônio Almeida”, correspondente em São Francisco, conseguiu com Adeodato, “o sicário e temível assassino do Contestado”, na cadeia pública da cidade.

Começava assim, a matéria: “Nós, que esperávamos ver nesse instante o semblante perverso e hediondo de um bandido, cujos traços fisionômicos estivessem a denotar a sua filiação entre os degenerados e os desclassificados do crime, vimos, pelo contrário, diante de nós, um mancebo em todo o vigor da juventude, de uma compleição física admirável, esbelto, fronte larga, lábios finos, o superior vestido de um buço pouco denso, cabelos negros, olhos de azeviche, pequenos e brilhantes, dentes claros, perfeitos e regulares, ombros largos, estatura mediana, tez acaboclada e rosto levemente alongado”.
- Porra! – exclamou Oclândio Ramos no meio da redação vazia. – Por que cargas d’água o bosta desse 

Teotônio queria fazer de Adeodato um ser humano, caralho?

      · Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados, membro da Academia Catarinense de Letras.



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