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Eles passarão, eu passarinho
* Por Daniel Santos
Quem gosta de poesia sabe, com certeza, qual o poeta brasileiro que, avesso a brilharecos de ocasião, elegeu o substantivo como vértebra de seus versos e soube tirar da simplicidade o máximo poder de síntese.
Isso mesmo: Mário Quintana, gaúcho de Alegrete, cujo centenário de nascimento comemorou-se ontem em todo o país, embora a Academia Brasileira de Letras tenha lhe negado a vaga de imortal em 1981.
Mas esse veto não abalou quem se sabia predestinado a vôos mais altos, conforme prevê no “Poeminha do contra”: Todos esses que aí estão/ atravancando o meu caminho,/ eles passarão./ Eu passarinho!
Passarinho de rica plumagem e de raro trinado, Quintana foi urbano e amoroso, homem extremamente simples que seria anônimo nas ruas de Porto Alegre, se não o apontassem com distinção a cada esquina.
Caminhava devagar por entre os seus, desperdiçando com prazer “a casca dourada das horas”, fazendo render a brevidade de cada passo no passeio, na contracorrente de um mundo que o queria veloz.
Mas ele não era desses. Dono do próprio tempo, mantinha-o em rédeas com pulso firme, porque poesia extravasa o instante, exige fôlego, e ele se entregava a ela como devoto: “Toda poesia é confissão”.
Esse é, aliás, o tom de Quintana: confissão em vez de discurso, passeio em vez de corrida, fagote em vez de trombeta, beijo em vez de mordida, sopro em vez de tufão. Refinado, detestava evidências.
Nesse cotidiano de máxima discreção, escreveu e traduziu cerca de 60 livros e fez de tudo para se sustentar, desde balconista na farmácia do pai, além de jornalista e tradutor, se bem amargasse certa penúria.
Certa vez, por exemplo, por falta de pagamento, foi posto para fora do Hotel Magestic, onde alugava um quarto. Por ironia, após a morte do poeta, esse hotel deu lugar à Casa de Cultura Mário Quintana!
Em maio de 1994, aos 87 anos, perdemos esse nosso bardo sem galardões. Certamente, o óbito não lhe foi de todo desconfortável, porque “a morte é quando a gente pode, afinal, estar deitado de sapatos”.
* Jornalista carioca, 54 anos. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
* Por Daniel Santos
Quem gosta de poesia sabe, com certeza, qual o poeta brasileiro que, avesso a brilharecos de ocasião, elegeu o substantivo como vértebra de seus versos e soube tirar da simplicidade o máximo poder de síntese.
Isso mesmo: Mário Quintana, gaúcho de Alegrete, cujo centenário de nascimento comemorou-se ontem em todo o país, embora a Academia Brasileira de Letras tenha lhe negado a vaga de imortal em 1981.
Mas esse veto não abalou quem se sabia predestinado a vôos mais altos, conforme prevê no “Poeminha do contra”: Todos esses que aí estão/ atravancando o meu caminho,/ eles passarão./ Eu passarinho!
Passarinho de rica plumagem e de raro trinado, Quintana foi urbano e amoroso, homem extremamente simples que seria anônimo nas ruas de Porto Alegre, se não o apontassem com distinção a cada esquina.
Caminhava devagar por entre os seus, desperdiçando com prazer “a casca dourada das horas”, fazendo render a brevidade de cada passo no passeio, na contracorrente de um mundo que o queria veloz.
Mas ele não era desses. Dono do próprio tempo, mantinha-o em rédeas com pulso firme, porque poesia extravasa o instante, exige fôlego, e ele se entregava a ela como devoto: “Toda poesia é confissão”.
Esse é, aliás, o tom de Quintana: confissão em vez de discurso, passeio em vez de corrida, fagote em vez de trombeta, beijo em vez de mordida, sopro em vez de tufão. Refinado, detestava evidências.
Nesse cotidiano de máxima discreção, escreveu e traduziu cerca de 60 livros e fez de tudo para se sustentar, desde balconista na farmácia do pai, além de jornalista e tradutor, se bem amargasse certa penúria.
Certa vez, por exemplo, por falta de pagamento, foi posto para fora do Hotel Magestic, onde alugava um quarto. Por ironia, após a morte do poeta, esse hotel deu lugar à Casa de Cultura Mário Quintana!
Em maio de 1994, aos 87 anos, perdemos esse nosso bardo sem galardões. Certamente, o óbito não lhe foi de todo desconfortável, porque “a morte é quando a gente pode, afinal, estar deitado de sapatos”.
* Jornalista carioca, 54 anos. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
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