domingo, 22 de janeiro de 2012







Um gol para o guerreiro

* Por Eduardo Murta


Passarinhada. Pés de manga com galhos generosamente arqueados, frutas prontas para o parto. E a tarde se recolhendo ali, num sábado. Silenciosa, à imensidão do viaduto de Santa Tereza. Os lugares e as sensações foram sendo eleitos assim, ao sabor de um distanciamento que batia discreto à porta dos fundos. Intruso e mal-desejado. Mas que se avizinhava incontornável. Era um tempo de recolher projetos. Selar gavetas. E, quem sabe, deixar que o pó se acumulasse aos andares das prateleiras. Tomasse conta de retratos, livros, do uísque barato e das garrafas de rum que teimava, há anos, em conservar intactas. Feito pingüins de geladeira.

Gustavo, a visão experimentando aquele sentimento de abismo, afasta agora uma pedra com a ponta dos pés. Deixa que despenque pelos vãos grandiosos da Serra do Rola Moça. Mira Belo Horizonte, à direita. Prédios disformes. Alinhamentos desconjuntados. E traceja o olhar nervoso pelos descampados de Sarzedo, Ibirité e Brumadinho. Alcança Betim. As imagens raleando. Se volta à esquerda. A divisar uma sucessão de montanhas e os fundos de vale que, ouvira, haviam servido de passagem para os bandeirantes. Canelas-de-ema vão pendendo, morro abaixo, numa florada que desafia o tronqueado tosco. À frente, cemitérios de ferro no rastro da mineração.

As mãos de Gustavo recolhem pó, poeira, gravetos. Faz deslizarem de borda a borda, tateando, a lapidar sentidos que, numa quase imposição, se convertiam em novos olhares. Os desenhos se desmanchando, a palma e as pontas dos dedos ganhando vigorosa sensibilidade. Mas bengala, decidira, não usaria. Lembrava aos cegos roucos da Praça Sete, a oferecer sonhos travestidos em bilhetes vistosos de loteria. Achava simplesmente triste. E que bastasse sua angústia. Esta, de ter que domar os ouvidos para ganhar o sexto sentido dos felinos, e ir arquivando cheiros feito fossem lembranças. Pra que não as perdesse caminho afora.

Não foi, então, uma casualidade, ter escolhido as chácaras de Sabará para comemorar o aniversário. Reuniu amigos e família aos pés de jabuticabeiras que se encontravam em copas, moldando passagens que imitavam bosques. Estendeu os braços à fruta negra, apalpando o tronco, e a fez rolar e passear pelo rosto, como uma carícia que repetiu por toda a manhã. Sentia o mesmo, à poltrona do cinema, com a amiga descrevendo cena por cena. Ao ouvido, sugerindo confidências. Fazia recordar a mãe e a empregada coladas ao rádio, nas noites do interior, mudando a feição a cada diálogo da novela. Encurtando o fôlego, rezando. Ria, matreiro, até que o enxotassem.

E, à medida que ruminava quinquilharias do anteontem, os dias foram ficando menores, como letrinhas de jornais. Pouco valiam a coleção de lupas e um esforço sagrado de interpretação. Foi, lentamente, abandonando a leitura, como fizera com o hobby do volante. As velhas trilhas da Serra do Cipó se inscrevendo como labirintos em terceira dimensão – trêmulas, disformes, obscuras. Naquele dia, parou, tirou os sapatos, pediu que levassem o carro e seguiu a pé. Sozinho.

Em casa, Gustavo abre gavetas. Óculos pesados sobre o nariz. Busca uma caneta. O papel branco selecionado. Vai escrever uma carta. Mas a quem? Ao papa, à ex-namorada? Enxerga adiante. Será ao filho. Ao que virá, um dia virá. Foi alinhando garranchos malarranjados com paciência de relojoeiro. 'Meu amado, mal sei seu nome. Mas faço canções para uma certeza: você virá. Vou, desde já, preparando meu coração e minhas mãos (meus outros olhos), pra sabê-lo por inteiro. Pronto pra sentir que os passos lá longe, no corredor, são os seus. E esperando, ansioso, pra que você venha, abra a porta e conte as histórias do seu dia. De tudo o que viu'.

Bastava. Dobrou a folha. Melancólica em demasia. Pensou em descartá-la, mas a guardou num envelope. E ouviu as horas, o momento da decisão se aproximando. Não haveria de haver nada que o afastasse do time do coração. Vestiu com pressa a camisa listrada. Estaria no estádio a qualquer custo. Da arquibancada, esticava os dedos quase para tocar os vultos, pela cor do uniforme, quando pressentia sua equipe rumo ao ataque. A empurrá-la. Se agigantou com a torcida na bola que viajou da esquerda, certeira, nos pés do artilheiro. A explosão, num toque sutil. Manso. Caminhando para o fundo do gol. Como quem anuncia a chegada de um filho. Como quem dribla a escuridão e vê.

• Jornalista, 42 anos, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado no dia 8 de maio passado, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

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