O milenar homem americano
* Por Urda Alice Klueger
(Excerto do livro “Viagem ao Umbigo do mundo, publicado em 2006)
Depois da visita ao prefeito, nossos harleyros se botaram em formação, e partimos. Havia que subir um comprido caminho que como que contornava a imensa e ameaçadora duna que como que domina Iquique, para se continuar a viagem por uma estrada que corria em outro plano, lá no alto da montanha.
Há que se dar uma explicação de interesse de quem anda de moto, aqui. Quando a estrada que sobe de Iquique desemboca na estrada lá do alto, o caminho para se continuar a viagem é à esquerda, mas é necessário que se entre primeiro à direita, e que se ande algo como uns 5 quilômetros, até o lugar chamado Pozo Almonte, onde há um posto de gasolina. Se não se fizer abastecimento naquele lugar, o seguinte está demasiado longe para que todas as motos cheguem até ele ainda com combustível. Então, naquela manhã, quando tomamos a nova estrada, alguns companheiros não entenderam tal coisa e saíram da formação. Eles se perderam, tomando a direção oposta à que deveriam tomar. Gastamos um bom tempo até todos voltarem, abastecerem as motos e pegarmos juntos a direção certa, e naquele dia eu entendi a importância de se viajar naquela formação de exército romano.
Foi nessa saída de Iquique, quando já estávamos todos juntos de novo, que o Zé Barbosa fez mais uma das suas: de repente, aumentou a velocidade, ultrapassou imensa carreta que seguia no mesmo sentido que nós e continuou andando na frente dela, diminuindo a velocidade aos poucos. Na verdade, não o víamos, mas vimos como a luz de freio da carreta se acendeu, quando seu motorista passou a pisar no freio para diminuir a velocidade e não atropelá-lo. Só vimos o Azor disparar em alta velocidade para ir lá acudi-lo: como em outras vezes, o Zé Barbosa dormira sobre a moto! Fiel escudeiro que era, cheguei a ouvir falar que o Azor muitas vezes saía para viajar exclusivamente para acudir, despertar o Zé Barbosa nas suas “dormidas” em alta velocidade. Ah! Zé Barbosa, se então a gente soubesse que um dia o Azor não estaria junto!
Foi um dia muito interessante. Viajávamos a uma altitude relativamente baixa, o que era confortável, tanto para se ter uma boa respiração quanto para não se sentir frio, e juro que não sei explicar por que cargas d’água, depois de um bom trecho, a estrada passou a ser ladeada por vigorosos e altos arbustos bem verdes, quase como árvores. Como aquela verdura nascera ali? O chão sob eles continuava o chão seco, arenoso e colorido do deserto, mas de alguma forma alguma umidade chegava até ali para que aquelas plantas tivessem medrado com tamanha força e vigor, com brilhantes folhas arredondadas bastante grandes e sumarentas, como se estivessem cheias de água. Talvez do mar viessem até ali nuvens de umidade, não sei.[1] No decorrer da manhã, no entanto, aquela verdura ficou para trás, e passamos a descortinar todo um outro panorama.
Como já disse antes, o deserto às vezes é plano; às vezes é de suaves ondulações, e às vezes é feito de altas montanhas. Pois chegáramos na parte das montanhas. Jaka e outros companheiros tinham avisado para eu prestar atenção aos desenhos feitos por antigos povos que veríamos nas encostas das montanhas.
Para as possantes máquinas em que viajávamos o descer e subir aquelas montanhas não fazia a menor diferença, mas penso que seria bastante complicado para motores mais simples, fossem de carros ou de motos. Cada subida e cada descida tinham mais ou menos uns 300 metros, e tinham tal ângulo em aclive e declive que os engenheiros que haviam feito os acertos finais daquelas estradas previram recursos especiais para o caso de alguém perder o freio: de repente, em um ou mais pontos de cada descida, apareciam cortes na montanha no sentido inverso do que se estava fazendo, devidamente asfaltados, para que se pudesse enveredar por eles no caso da falta de freios. Esses cortes alternativos desembocavam, mais acima, em caixas de brita. Quem fizera aqueles recursos que eu nunca vira no mundo sabia que não seria possível ir-se até o final de uma descida daquelas sem freios. Se tal coisa acontecesse, com certeza o infeliz se espatifaria lá embaixo.
Também falei no parágrafo anterior que os “engenheiros que haviam feito os acertos finais daquelas estradas ...” porque de novo era muito evidente como é que aquelas rotas tinham sido abertas, no passado: à força de pés, de muitos pés ao longo de milhares de anos, pés que haviam construído toda uma América pré-colonial grandiosa, e que um dia fora invadida pelo europeu que apenas conseguia enxergá-la como “selvagem”. Ah! As barbaridades da História! Ah! Os crimes todos que se perpetraram em nome de Deus e de riquezas materiais!
Eu observava com atenção a formação das motos subindo e descendo todas aquelas montanhas, e elas eram lindas, azuis, creme, roxas, rosa – e como ali ainda era bastante perto do mar, os ventos marinhos tinham soprado até lá fina areia branca, e esse mesmo vento espargia a areia leve e fina por sobre o colorido das montanhas como quem esparge açúcar sobre um bolo, e a paisagem era soberba! Entre uma montanha e outra havia lá embaixo pequeninas planícies formadas por antigos aluviões, e de repente... oh! Sim, estava lá, era, sim, não me enganava! Igualzinho aos desenhos e às fotos que via em livros de Arqueologia, lá numa pequena planície daquelas, assim do tamanho, diria, de dois campos de futebol, um enorme desenho de um homem estilizado fora feito no chão com contorno de pedras, e a gente podia ver que era coisa muito, muito antiga, pois de alguma forma uma ou outra pedra rolara ou fora jogada para aquele lugar, ao longo dos tempos, e estavam em lugares que não eram o contorno daquele desenho, o que não o descaracterizava. Meu coração deu um pulo enorme, fiquei de garganta fechada vendo aquele desenho lá embaixo, próximo de mim, feito um dia por alguém que fora um artista que, tenho como convicção tal coisa, iria, séculos ou milênios mais tarde, não sei, influenciar a própria arte de Picasso.
[1] Desertos costeiros: complementando nota de rodapé já anteriormente começada, incluo mais dados, aqui, sobre desertor costeiros, que é o caso do Atacama – Desertos costeiros geralmente são nas bordas ocidentais de continenentes próximas aos Trópicos de Câncer e de Capricórinio . Eles são afetados por correntes oceânicas costeiras frias, que correm paralelas à costa. Devido aos sistemas de vento locais dominarem aos ventos alísios, estes desertos são menos estáveis que os de outros tipos. No inverno, nevoeiros, produzidos por correntes frias ascendentes, frequentemente cobrem os desertos costeiros com um manto branco que bloqueia a radiação solar. Os desertos costeiros são relativamente complexos, pois eles são o produto de sistemas terrestres, oceânicos e atmosféricos. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Deserto)
• Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR
(Excerto do livro “Viagem ao Umbigo do mundo, publicado em 2006)
Depois da visita ao prefeito, nossos harleyros se botaram em formação, e partimos. Havia que subir um comprido caminho que como que contornava a imensa e ameaçadora duna que como que domina Iquique, para se continuar a viagem por uma estrada que corria em outro plano, lá no alto da montanha.
Há que se dar uma explicação de interesse de quem anda de moto, aqui. Quando a estrada que sobe de Iquique desemboca na estrada lá do alto, o caminho para se continuar a viagem é à esquerda, mas é necessário que se entre primeiro à direita, e que se ande algo como uns 5 quilômetros, até o lugar chamado Pozo Almonte, onde há um posto de gasolina. Se não se fizer abastecimento naquele lugar, o seguinte está demasiado longe para que todas as motos cheguem até ele ainda com combustível. Então, naquela manhã, quando tomamos a nova estrada, alguns companheiros não entenderam tal coisa e saíram da formação. Eles se perderam, tomando a direção oposta à que deveriam tomar. Gastamos um bom tempo até todos voltarem, abastecerem as motos e pegarmos juntos a direção certa, e naquele dia eu entendi a importância de se viajar naquela formação de exército romano.
Foi nessa saída de Iquique, quando já estávamos todos juntos de novo, que o Zé Barbosa fez mais uma das suas: de repente, aumentou a velocidade, ultrapassou imensa carreta que seguia no mesmo sentido que nós e continuou andando na frente dela, diminuindo a velocidade aos poucos. Na verdade, não o víamos, mas vimos como a luz de freio da carreta se acendeu, quando seu motorista passou a pisar no freio para diminuir a velocidade e não atropelá-lo. Só vimos o Azor disparar em alta velocidade para ir lá acudi-lo: como em outras vezes, o Zé Barbosa dormira sobre a moto! Fiel escudeiro que era, cheguei a ouvir falar que o Azor muitas vezes saía para viajar exclusivamente para acudir, despertar o Zé Barbosa nas suas “dormidas” em alta velocidade. Ah! Zé Barbosa, se então a gente soubesse que um dia o Azor não estaria junto!
Foi um dia muito interessante. Viajávamos a uma altitude relativamente baixa, o que era confortável, tanto para se ter uma boa respiração quanto para não se sentir frio, e juro que não sei explicar por que cargas d’água, depois de um bom trecho, a estrada passou a ser ladeada por vigorosos e altos arbustos bem verdes, quase como árvores. Como aquela verdura nascera ali? O chão sob eles continuava o chão seco, arenoso e colorido do deserto, mas de alguma forma alguma umidade chegava até ali para que aquelas plantas tivessem medrado com tamanha força e vigor, com brilhantes folhas arredondadas bastante grandes e sumarentas, como se estivessem cheias de água. Talvez do mar viessem até ali nuvens de umidade, não sei.[1] No decorrer da manhã, no entanto, aquela verdura ficou para trás, e passamos a descortinar todo um outro panorama.
Como já disse antes, o deserto às vezes é plano; às vezes é de suaves ondulações, e às vezes é feito de altas montanhas. Pois chegáramos na parte das montanhas. Jaka e outros companheiros tinham avisado para eu prestar atenção aos desenhos feitos por antigos povos que veríamos nas encostas das montanhas.
Para as possantes máquinas em que viajávamos o descer e subir aquelas montanhas não fazia a menor diferença, mas penso que seria bastante complicado para motores mais simples, fossem de carros ou de motos. Cada subida e cada descida tinham mais ou menos uns 300 metros, e tinham tal ângulo em aclive e declive que os engenheiros que haviam feito os acertos finais daquelas estradas previram recursos especiais para o caso de alguém perder o freio: de repente, em um ou mais pontos de cada descida, apareciam cortes na montanha no sentido inverso do que se estava fazendo, devidamente asfaltados, para que se pudesse enveredar por eles no caso da falta de freios. Esses cortes alternativos desembocavam, mais acima, em caixas de brita. Quem fizera aqueles recursos que eu nunca vira no mundo sabia que não seria possível ir-se até o final de uma descida daquelas sem freios. Se tal coisa acontecesse, com certeza o infeliz se espatifaria lá embaixo.
Também falei no parágrafo anterior que os “engenheiros que haviam feito os acertos finais daquelas estradas ...” porque de novo era muito evidente como é que aquelas rotas tinham sido abertas, no passado: à força de pés, de muitos pés ao longo de milhares de anos, pés que haviam construído toda uma América pré-colonial grandiosa, e que um dia fora invadida pelo europeu que apenas conseguia enxergá-la como “selvagem”. Ah! As barbaridades da História! Ah! Os crimes todos que se perpetraram em nome de Deus e de riquezas materiais!
Eu observava com atenção a formação das motos subindo e descendo todas aquelas montanhas, e elas eram lindas, azuis, creme, roxas, rosa – e como ali ainda era bastante perto do mar, os ventos marinhos tinham soprado até lá fina areia branca, e esse mesmo vento espargia a areia leve e fina por sobre o colorido das montanhas como quem esparge açúcar sobre um bolo, e a paisagem era soberba! Entre uma montanha e outra havia lá embaixo pequeninas planícies formadas por antigos aluviões, e de repente... oh! Sim, estava lá, era, sim, não me enganava! Igualzinho aos desenhos e às fotos que via em livros de Arqueologia, lá numa pequena planície daquelas, assim do tamanho, diria, de dois campos de futebol, um enorme desenho de um homem estilizado fora feito no chão com contorno de pedras, e a gente podia ver que era coisa muito, muito antiga, pois de alguma forma uma ou outra pedra rolara ou fora jogada para aquele lugar, ao longo dos tempos, e estavam em lugares que não eram o contorno daquele desenho, o que não o descaracterizava. Meu coração deu um pulo enorme, fiquei de garganta fechada vendo aquele desenho lá embaixo, próximo de mim, feito um dia por alguém que fora um artista que, tenho como convicção tal coisa, iria, séculos ou milênios mais tarde, não sei, influenciar a própria arte de Picasso.
[1] Desertos costeiros: complementando nota de rodapé já anteriormente começada, incluo mais dados, aqui, sobre desertor costeiros, que é o caso do Atacama – Desertos costeiros geralmente são nas bordas ocidentais de continenentes próximas aos Trópicos de Câncer e de Capricórinio . Eles são afetados por correntes oceânicas costeiras frias, que correm paralelas à costa. Devido aos sistemas de vento locais dominarem aos ventos alísios, estes desertos são menos estáveis que os de outros tipos. No inverno, nevoeiros, produzidos por correntes frias ascendentes, frequentemente cobrem os desertos costeiros com um manto branco que bloqueia a radiação solar. Os desertos costeiros são relativamente complexos, pois eles são o produto de sistemas terrestres, oceânicos e atmosféricos. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Deserto)
• Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR
Lendo e enxergando a paisagem. E mais que isso, sentindo emoção por isso.
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