A presidenta Dilma, Paulinho da Viola e os brasileiros
* Por Urariano Mota
Um dia desses notei que a história política do Brasil poderia ser contada pela história da sua música popular. E como sempre acontece em qualquer descoberta, essa conclusão geral me chegou pela insistência, persistência e resistência de alguns casos particulares, individuais, que traziam em si o dom universal e reclamavam lugar. Assim foi, por exemplo, em páginas de “Soledad no Recife”, quando a ressurreição dos malditos anos da ditadura se fez sob a canção dos tropicalistas. Assim foi quando escrevi sobre Geraldo Vandré, sobre Chico Buarque, sobre Roberto Carlos... assim tem sido em textos mais ambiciosos, escritos sob a música íntima que me acompanha ao narrar o mundo submerso da infância. Que nos acompanha a todos quando recuperamos vidas, melhor dizendo.
Escrevo isso agora a partir de uma revelação do livro “A vida quer é coragem”, de Ricardo Batista, conforme artigo de Alberto Villas:
“...a uruguaia Maria Cristina Uslendi conta que em outubro de 1971, toda vez que voltava das sessões de tortura encontrava Dilma de braços abertos ‘me amparando, me ajudando a usar a latrina quando não tinha forças, me dando sopinhas de colher na boca, me cedendo a parte de baixo do beliche e pondo na vitrolinha de pilhas as melhores músicas da MPB’.
Cristina conta que Dilma sempre pedia a ela que prestasse muita atenção à letra de Para um amor no Recife, uma canção de Paulinho”.
O quanto isso é verdadeiro. O quanto a música popular foi remédio, cura e perdição da maioria dos brasileiros que estiveram contra a ditadura. O quanto devemos a esses artistas da canção, numa dívida que eles próprios não alcançam o tamanho, mas que é, ao mesmo tempo, motivo de sufoco e prisão para eles, em razão do papel que ganharam à sua revelia. No entanto, importa mais aqui, para não me distanciar do objeto destas linhas, falar alguma coisa sobre o Paulinho da Viola daqueles anos. Assim vamos agora.
Quando “Foi um rio que passou em minha vida” apareceu no Brasil, éramos estudantes numa sexta-feira à noite, numa serenata em Maria Farinha. Achávamos então que a revolução socialista seria a coisa mais natural do mundo. E por ser assim tão natural, nada demais também que ouvíssemos, não se espantem, 41 vezes, seguidas, contínua e incansavelmente foi um rio, foi um rio, foi um rio em uma vitrolinha de pilha. Naquele ano, e por que não ainda? , todos nós éramos Paulinho, nessa estranha empatia, mistura de identidades que a verdadeira arte produz. Todos nós repetíamos, e repetimos, e repetimos... que “meu coração tem mania de amor, e amor não é fácil de achar”. À maneira de cantar, gritávamos esses versos então.
Depois, morando na Pensão Princesa Isabel, no centro do Recife, Paulinho era Simplesmente Maria. “Na cidade, é a vida cheia de surpresa, é a ida e a vinda, simplesmente, Maria, Maria, teu filho está sorrindo, faz dele a tua ida, teu consolo e teu destino, Maria...”. Nesse tempo, sempre compreendíamos o “faz dele a tua ida” como um “faz dele a tua ira”. Enquanto subíamos a escada para um quartinho isolado no alto, da televisão da sala vinha a música, tema de uma novela. Ela nos lembrava sempre que estávamos sozinhos e sem mãe, cujo nome também era Maria. À hora dessa música sempre esperávamos algum golpe traiçoeiro da polícia que queria nos matar. Sem Maria que nos velasse.
Então houve Para um amor no Recife. Diziam então que Paulinho fizera essa música para a secretária de Dom Hélder Câmara. As boas, e as más línguas principalmente, acrescentavam que a dedicada senhora vinha a ser a namorada secreta do arcebispo. Entre o sussurro e a maledicência, entre a repressão da ditadura Médici e a resistência serena erguia-se um poema belo, quase autônomo da melodia: “A razão por que mando um sorriso e não corro, é que andei levando a vida quase morto. Quero fechar a ferida, quero estancar o sangue, e sepultar bem longe o que restou da camisa colorida que cobria minha dor. Meu amor, eu não esqueço, não se esqueça, por favor, que voltarei depressa, tão logo acabe a noite, tão logo este tempo passe, para beijar você ”. Esta é uma canção que só fez melhorar ao longo de todos esses anos. A ditadura não existe mais, o seu motivo imediato não mais existe, mas a composição só vem crescendo, apesar da degradação do Recife, que entra quase incidentalmente no título.
Que sorte imensa a nossa ter sobrevivido aos piores temporais para viver estes anos na maturidade! O que Paulinho anunciava num Samba Curto, “só me resta seguir rumo ao futuro, certo do meu coração mais puro”, agora vem chegando, agora atinge o seu tempo. Menos puro que o esperado, como é bom esse coração amadurecido pelo crisol, pela lembrança de quando o tínhamos somente dor. O que podemos fazer quando as águias piscam à civilização desse moleque bamba? Tentar, tentar comprendê-lo em uma crônica curta.
Enfim, amigos, que estranho e magnífico poder tem a obra de arte. Quarenta e um anos depois, Paulinho da Viola, Dilma e os brasileiros voltamos a Para um amor no Recife: http://www.youtube.com/watch?v=PClFteQLPxI
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
* Por Urariano Mota
Um dia desses notei que a história política do Brasil poderia ser contada pela história da sua música popular. E como sempre acontece em qualquer descoberta, essa conclusão geral me chegou pela insistência, persistência e resistência de alguns casos particulares, individuais, que traziam em si o dom universal e reclamavam lugar. Assim foi, por exemplo, em páginas de “Soledad no Recife”, quando a ressurreição dos malditos anos da ditadura se fez sob a canção dos tropicalistas. Assim foi quando escrevi sobre Geraldo Vandré, sobre Chico Buarque, sobre Roberto Carlos... assim tem sido em textos mais ambiciosos, escritos sob a música íntima que me acompanha ao narrar o mundo submerso da infância. Que nos acompanha a todos quando recuperamos vidas, melhor dizendo.
Escrevo isso agora a partir de uma revelação do livro “A vida quer é coragem”, de Ricardo Batista, conforme artigo de Alberto Villas:
“...a uruguaia Maria Cristina Uslendi conta que em outubro de 1971, toda vez que voltava das sessões de tortura encontrava Dilma de braços abertos ‘me amparando, me ajudando a usar a latrina quando não tinha forças, me dando sopinhas de colher na boca, me cedendo a parte de baixo do beliche e pondo na vitrolinha de pilhas as melhores músicas da MPB’.
Cristina conta que Dilma sempre pedia a ela que prestasse muita atenção à letra de Para um amor no Recife, uma canção de Paulinho”.
O quanto isso é verdadeiro. O quanto a música popular foi remédio, cura e perdição da maioria dos brasileiros que estiveram contra a ditadura. O quanto devemos a esses artistas da canção, numa dívida que eles próprios não alcançam o tamanho, mas que é, ao mesmo tempo, motivo de sufoco e prisão para eles, em razão do papel que ganharam à sua revelia. No entanto, importa mais aqui, para não me distanciar do objeto destas linhas, falar alguma coisa sobre o Paulinho da Viola daqueles anos. Assim vamos agora.
Quando “Foi um rio que passou em minha vida” apareceu no Brasil, éramos estudantes numa sexta-feira à noite, numa serenata em Maria Farinha. Achávamos então que a revolução socialista seria a coisa mais natural do mundo. E por ser assim tão natural, nada demais também que ouvíssemos, não se espantem, 41 vezes, seguidas, contínua e incansavelmente foi um rio, foi um rio, foi um rio em uma vitrolinha de pilha. Naquele ano, e por que não ainda? , todos nós éramos Paulinho, nessa estranha empatia, mistura de identidades que a verdadeira arte produz. Todos nós repetíamos, e repetimos, e repetimos... que “meu coração tem mania de amor, e amor não é fácil de achar”. À maneira de cantar, gritávamos esses versos então.
Depois, morando na Pensão Princesa Isabel, no centro do Recife, Paulinho era Simplesmente Maria. “Na cidade, é a vida cheia de surpresa, é a ida e a vinda, simplesmente, Maria, Maria, teu filho está sorrindo, faz dele a tua ida, teu consolo e teu destino, Maria...”. Nesse tempo, sempre compreendíamos o “faz dele a tua ida” como um “faz dele a tua ira”. Enquanto subíamos a escada para um quartinho isolado no alto, da televisão da sala vinha a música, tema de uma novela. Ela nos lembrava sempre que estávamos sozinhos e sem mãe, cujo nome também era Maria. À hora dessa música sempre esperávamos algum golpe traiçoeiro da polícia que queria nos matar. Sem Maria que nos velasse.
Então houve Para um amor no Recife. Diziam então que Paulinho fizera essa música para a secretária de Dom Hélder Câmara. As boas, e as más línguas principalmente, acrescentavam que a dedicada senhora vinha a ser a namorada secreta do arcebispo. Entre o sussurro e a maledicência, entre a repressão da ditadura Médici e a resistência serena erguia-se um poema belo, quase autônomo da melodia: “A razão por que mando um sorriso e não corro, é que andei levando a vida quase morto. Quero fechar a ferida, quero estancar o sangue, e sepultar bem longe o que restou da camisa colorida que cobria minha dor. Meu amor, eu não esqueço, não se esqueça, por favor, que voltarei depressa, tão logo acabe a noite, tão logo este tempo passe, para beijar você ”. Esta é uma canção que só fez melhorar ao longo de todos esses anos. A ditadura não existe mais, o seu motivo imediato não mais existe, mas a composição só vem crescendo, apesar da degradação do Recife, que entra quase incidentalmente no título.
Que sorte imensa a nossa ter sobrevivido aos piores temporais para viver estes anos na maturidade! O que Paulinho anunciava num Samba Curto, “só me resta seguir rumo ao futuro, certo do meu coração mais puro”, agora vem chegando, agora atinge o seu tempo. Menos puro que o esperado, como é bom esse coração amadurecido pelo crisol, pela lembrança de quando o tínhamos somente dor. O que podemos fazer quando as águias piscam à civilização desse moleque bamba? Tentar, tentar comprendê-lo em uma crônica curta.
Enfim, amigos, que estranho e magnífico poder tem a obra de arte. Quarenta e um anos depois, Paulinho da Viola, Dilma e os brasileiros voltamos a Para um amor no Recife: http://www.youtube.com/watch?v=PClFteQLPxI
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
Só com muita coragem!
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