Música da vida
* Por Pedro J. Bondaczuk
Os poetas costumam comparar as fases da vida às quatro estações do ano. Atribuem à primavera, a infância cheia de encantos; ao verão, a adolescência repleta de energia; ao outono, a maturidade do bom-senso e ao inverno, a velhice da solidão e frustrações. Discordo dessa comparação.
Prefiro outra, mais positiva e próxima da real. Afinal, as estações do ano repetem-se a cada 365 dias, indiferentes ao fato de estarmos vivos ou não. Considero, por exemplo, a primavera como a alegria; o verão, o entusiasmo; o outono; o bom-senso e o inverno, a experiência que se consegue, apenas, com vivência.
Temos essas fases não apenas uma vez na vida, mas inúmeras. Teremos, por exemplo, tantas “primaveras” quantas quisermos, desde que estejamos predispostos a elas. O mesmo vale para as outras três estações, claro.
Quase tudo no mundo, no terreno dos pensamentos, sentimentos e atos, é questão de dosagem. Os mais milagrosos remédios, se tomados em doses inadequadas, tendem a ser ou ineficazes ou, até mesmo, venenosos. Tomados de menos, não surtem efeitos e, demais, intoxicam.
Alguns venenos mortais, por seu turno, em doses pequeníssimas e rigorosamente exatas, são milagrosos remédios. O mesmo raciocínio se aplica para o sonho e a realidade, por exemplo. Sonhadores em excesso, que se limitam a sonhar sem nada fazer para tentar tornar real o que se sonhou, mais cedo ou mais tarde se frustram. Descambam para o desencanto. Realistas em demasia, por seu turno, levam vidas cinzentas, tristes e sem graça. Ambos, sonho e realidade, nos são necessários. O problema é acertar na dosagem.
Temos, isto sim, que pôr paixão em tudo o que fizermos, não importa se essa obra é de caráter material, intelectual, filosófico ou artístico. Claro que essa chama, esse entusiasmo, essa fúria de concretizar o que existe só em nossa mente tem que ser “temperada” com outros ingredientes, como razão, prudência e bom-senso.
A paixão, em si, em seu estado natural, é selvagem e muitas vezes incontrolável. Tende a alucinar quem não sabe dosar sua intensidade. Mas sem ela, nenhuma das nossas obras parecerá, aos mais atentos (e, de fato, não o será), com alma, verdade e autenticidade. Mesmo que perfeita, na forma e na concepção, soará falsa, artificial e sem vida. É essa iluminação que transforma o que fazemos em obras-primas que desafiam o tempo e a sucessão de gerações.
Sou fascinado, particularmente, por sons harmoniosos e coerentes. Nasci com alma de músico, embora nunca tenha composto uma única canção (não me refiro a letras, que já fiz muitas, mas à melodia) e não me sinto habilitado para tanto. Também não toco instrumento algum e minha voz é muito grave, não se prestando, portanto, à interpretação. Mas tenho o que comumente se chama de “ouvido musical”.
Neste instante, ouço em surdina, na casa vizinha, o canto de um pássaro, que identifico como o de um canário belga. Aprendi esse tipo de identificação ouvindo um disco, que meu saudoso pai ganhou do engenheiro Johann Dalgas Fritsch. Sei que essa afirmação pode parecer um disparate, mas não é. A referida gravação não só existe como é um achado, sobretudo artístico. Mistura o canto dos mais variados pássaros da fauna brasileira com peças musicais de Bach, Beethoven, Chopin etc. O efeito é devastador, em termos de derrubar as barreiras que represam emoções!
Dalgas Fritsch gravou vários LPs do tipo e tenho três deles. Chamo essas gravações de “música da vida”, que de fato são. O canto mais impressionante é o do uirapuru, da Amazônia. Diz a lenda que quem o ouvir conservará para sempre seu amor. Tomara que seja verdade! Gosto de ouvir esses discos, sobretudo, a cada amanhecer.
Cada novo dia que nasce é uma oportunidade que a vida nos dá de realizar sonhos e alcançar (e conservar) a felicidade e a alegria de viver. Nunca sabemos de quanto tempo ainda dispomos para pormos em prática nossos planos. Podem ser muitos dias, milhares deles, como pode, também, não ser mais nenhum. Daí ser tremenda tolice desperdiçar nosso tempo com picuinhas, rancores inconseqüentes e nunca construtivos, ciúmes, inveja, cobiça e tantos outros sentimentos que só nos trazem dor, amargura e infelicidade e às pessoas que nos rodeiam.
Não desperdiço os meus. Procuro vivê-los com intensidade, com alegria, bom-humor e encantamento. Três coisas em especial me fascinam, encantam e entusiasmam: vida, amor e beleza, nesta ordem. Viver é, para mim, simultaneamente, mistério e privilégio, quaisquer que sejam as circunstâncias. Amar, por seu turno, é sempre uma bênção, mesmo que não haja correspondência. Se houver... será um delírio! E, finalmente, a beleza (não a física, necessariamente, mas a que se expressa em todas as coisas, até nas aparentemente mais feias), inspira-me, acalma-me e me desperta intensa alegria e profunda reverência.
Devemos ter, sempre e a cada momento, essa atitude de celebração face a vida. Mesmo que não venhamos a nos dar conta, ou que questionemos essa idéia, temos muito mais motivos para comemorar pelo fato de estarmos vivos, do que para eventualmente lamentar. Trata-se de oportunidade rara e única, de um privilégio e de uma bênção. Nós é que, em geral, arruinamos nossas vidas com atitudes negativas, pensamentos nefastos e ações desastradas, ou “destrambelhadas”, como costuma dizer um amigo.
A sabedoria, sem dúvida, é importante e devemos nos empenhar para obtê-la. Reflexão é fundamental para conhecermos o nosso íntimo e as pessoas que nos cercam. Mas as emoções sadias e intensas são essenciais. Celebremos e vivamos intensamente cada dia que temos, do amanhecer ao anoitecer. Minha forma particular de celebrar é ouvindo, sempre que posso (e nesse caso, posso sempre) a encantadora, a inspiradora, a misteriosa “música da vida”.
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
* Por Pedro J. Bondaczuk
Os poetas costumam comparar as fases da vida às quatro estações do ano. Atribuem à primavera, a infância cheia de encantos; ao verão, a adolescência repleta de energia; ao outono, a maturidade do bom-senso e ao inverno, a velhice da solidão e frustrações. Discordo dessa comparação.
Prefiro outra, mais positiva e próxima da real. Afinal, as estações do ano repetem-se a cada 365 dias, indiferentes ao fato de estarmos vivos ou não. Considero, por exemplo, a primavera como a alegria; o verão, o entusiasmo; o outono; o bom-senso e o inverno, a experiência que se consegue, apenas, com vivência.
Temos essas fases não apenas uma vez na vida, mas inúmeras. Teremos, por exemplo, tantas “primaveras” quantas quisermos, desde que estejamos predispostos a elas. O mesmo vale para as outras três estações, claro.
Quase tudo no mundo, no terreno dos pensamentos, sentimentos e atos, é questão de dosagem. Os mais milagrosos remédios, se tomados em doses inadequadas, tendem a ser ou ineficazes ou, até mesmo, venenosos. Tomados de menos, não surtem efeitos e, demais, intoxicam.
Alguns venenos mortais, por seu turno, em doses pequeníssimas e rigorosamente exatas, são milagrosos remédios. O mesmo raciocínio se aplica para o sonho e a realidade, por exemplo. Sonhadores em excesso, que se limitam a sonhar sem nada fazer para tentar tornar real o que se sonhou, mais cedo ou mais tarde se frustram. Descambam para o desencanto. Realistas em demasia, por seu turno, levam vidas cinzentas, tristes e sem graça. Ambos, sonho e realidade, nos são necessários. O problema é acertar na dosagem.
Temos, isto sim, que pôr paixão em tudo o que fizermos, não importa se essa obra é de caráter material, intelectual, filosófico ou artístico. Claro que essa chama, esse entusiasmo, essa fúria de concretizar o que existe só em nossa mente tem que ser “temperada” com outros ingredientes, como razão, prudência e bom-senso.
A paixão, em si, em seu estado natural, é selvagem e muitas vezes incontrolável. Tende a alucinar quem não sabe dosar sua intensidade. Mas sem ela, nenhuma das nossas obras parecerá, aos mais atentos (e, de fato, não o será), com alma, verdade e autenticidade. Mesmo que perfeita, na forma e na concepção, soará falsa, artificial e sem vida. É essa iluminação que transforma o que fazemos em obras-primas que desafiam o tempo e a sucessão de gerações.
Sou fascinado, particularmente, por sons harmoniosos e coerentes. Nasci com alma de músico, embora nunca tenha composto uma única canção (não me refiro a letras, que já fiz muitas, mas à melodia) e não me sinto habilitado para tanto. Também não toco instrumento algum e minha voz é muito grave, não se prestando, portanto, à interpretação. Mas tenho o que comumente se chama de “ouvido musical”.
Neste instante, ouço em surdina, na casa vizinha, o canto de um pássaro, que identifico como o de um canário belga. Aprendi esse tipo de identificação ouvindo um disco, que meu saudoso pai ganhou do engenheiro Johann Dalgas Fritsch. Sei que essa afirmação pode parecer um disparate, mas não é. A referida gravação não só existe como é um achado, sobretudo artístico. Mistura o canto dos mais variados pássaros da fauna brasileira com peças musicais de Bach, Beethoven, Chopin etc. O efeito é devastador, em termos de derrubar as barreiras que represam emoções!
Dalgas Fritsch gravou vários LPs do tipo e tenho três deles. Chamo essas gravações de “música da vida”, que de fato são. O canto mais impressionante é o do uirapuru, da Amazônia. Diz a lenda que quem o ouvir conservará para sempre seu amor. Tomara que seja verdade! Gosto de ouvir esses discos, sobretudo, a cada amanhecer.
Cada novo dia que nasce é uma oportunidade que a vida nos dá de realizar sonhos e alcançar (e conservar) a felicidade e a alegria de viver. Nunca sabemos de quanto tempo ainda dispomos para pormos em prática nossos planos. Podem ser muitos dias, milhares deles, como pode, também, não ser mais nenhum. Daí ser tremenda tolice desperdiçar nosso tempo com picuinhas, rancores inconseqüentes e nunca construtivos, ciúmes, inveja, cobiça e tantos outros sentimentos que só nos trazem dor, amargura e infelicidade e às pessoas que nos rodeiam.
Não desperdiço os meus. Procuro vivê-los com intensidade, com alegria, bom-humor e encantamento. Três coisas em especial me fascinam, encantam e entusiasmam: vida, amor e beleza, nesta ordem. Viver é, para mim, simultaneamente, mistério e privilégio, quaisquer que sejam as circunstâncias. Amar, por seu turno, é sempre uma bênção, mesmo que não haja correspondência. Se houver... será um delírio! E, finalmente, a beleza (não a física, necessariamente, mas a que se expressa em todas as coisas, até nas aparentemente mais feias), inspira-me, acalma-me e me desperta intensa alegria e profunda reverência.
Devemos ter, sempre e a cada momento, essa atitude de celebração face a vida. Mesmo que não venhamos a nos dar conta, ou que questionemos essa idéia, temos muito mais motivos para comemorar pelo fato de estarmos vivos, do que para eventualmente lamentar. Trata-se de oportunidade rara e única, de um privilégio e de uma bênção. Nós é que, em geral, arruinamos nossas vidas com atitudes negativas, pensamentos nefastos e ações desastradas, ou “destrambelhadas”, como costuma dizer um amigo.
A sabedoria, sem dúvida, é importante e devemos nos empenhar para obtê-la. Reflexão é fundamental para conhecermos o nosso íntimo e as pessoas que nos cercam. Mas as emoções sadias e intensas são essenciais. Celebremos e vivamos intensamente cada dia que temos, do amanhecer ao anoitecer. Minha forma particular de celebrar é ouvindo, sempre que posso (e nesse caso, posso sempre) a encantadora, a inspiradora, a misteriosa “música da vida”.
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
Considero-me uma pessoa privilegiada por
ResponderExcluirter o prazer de ouvir o canto dos pássaros
que se apossaram do pé de acerola, de vez
em quando surto com os Bem-te-vis, eles são
muito bagunceiros e como gritam...mas não os
espanto, aqui todos tem a sua vez até as rolinhas
tão sem graças e roliças. Consigo ver nesses
pequenos milagres da vida o traço do Criador.
Abraços
Quanta inspiração Pedro. Vejo que o canto do canário é causador de milagres.
ResponderExcluirDestaco: "Amar, por seu turno, é sempre uma bênção, mesmo que não haja correspondência. Se houver... será um delírio!" Parabéns!
Eu quero amar assim.