Tudo de madrugada
* Por Gustavo do Carmo
O jornal do fim de noite de um famoso canal de televisão exibia uma matéria sobre pessoas que faziam compras em supermercados, malhavam na academia, faziam tratamento de pele e marcavam consulta até com o dentista. Tudo de madrugada.
Um dos entrevistados, freqüentador de um supermercado que funcionava durante 24 horas, era Dionísio, um jovem rapaz, na faixa dos vinte e cinco anos. Ele disse para a repórter que trabalhava o dia inteiro e só tinha tempo para fazer compras depois da meia-noite. No final da matéria voltou para acrescentar que era mais prático e tranqüilo comprar no horário alternativo.
De fato, Dionísio só tinha tempo para resolver os seus problemas de madrugada. Mas não trabalhava exatamente o dia inteiro. Jornalista formado, fazia clipagem, ou seja, buscava o que saía na imprensa sobre o cliente da produtora e criava um álbum com as matérias publicadas. Seu turno era das quatro às dez da manhã. Deixava o escritório na Tijuca, andava uns dez minutos e pegava o ônibus. Chegava ao apartamento, em Copacabana, em pouco menos de uma hora, dependendo do trânsito. Por volta do meio-dia ia almoçar (ou jantar) e, depois, finalmente dormia. Acordava às oito da noite. Fazia o seu desjejum enquanto muita gente jantava. Começava o seu dia quando os vizinhos chegavam do trabalho, exaustos, o que era percebido pelo movimento de entrada na garagem do prédio.
Fazia os trabalhos que levava para casa. Duas horas depois saía à rua. Passava no caixa eletrônico do banco e em seguida no jornaleiro, onde comprava as primeiras edições dos cinco principais informativos e também das duas publicações esportivas. Era mais pelo trabalho, ao qual se dedicava muito, do que para o lazer. Após algumas voltas no calçadão da praia, entrava na loja de conveniência e fazia um lanche que servia de almoço para não mexer na cozinha de madrugada e acordar os vizinhos do apartamento em frente. Finalmente ia ao supermercado e fazia as compras da semana.
Não eram todos os dias que Dionísio visitava o supermercado. Somente às quintas-feiras. As segundas eram reservadas para a academia, as terças para o dentista ou o tratamento de pele, na quarta tinha novamente a academia e às sextas ele ficava em casa por causa do movimento noturno no bairro. No sábado à noite, viajava para Conceição de Macabu, onde nasceu, foi criado e ainda moram os pais. Voltava para o Rio segunda-feira de manhã.
Acostumado com a rotina na capital, dormia o dia inteiro e só acordava à noite na cidade pequena, onde tudo fechava cedo. Os bares e restaurantes funcionavam até, no máximo, às duas horas da manhã. Dionísio não gostava de beber e os restaurantes eram muito fracos. Ficava perambulando pela casa durante cerca de quinze horas. Angustiava-se. Morria de saudades dos pais, mas não via a hora de voltar ao apartamento alugado no Rio de Janeiro, ao seu trabalho de clipping e às atividades comerciais da madrugada.
Dionísio achou o emprego na internet. Tinha o sonho de morar e fazer sua vida no Rio, mas precisava trabalhar. Chamado para a entrevista, passou e foi aprovado. Fizeram uma festa em casa. No entanto, os pais ficaram tristes porque o filho precisou se mudar e eles não podiam ir. A mãe, costureira, tinha os seus clientes e o pai tinha um bazar que não podia ficar abandonado. Ainda assim, seria bom para Dionísio morar sozinho e ganhar experiência de vida. O pai ainda ajudou o filho a alugar um apartamento de dois quartos na Tijuca, perto do trabalho.
Na empresa, o primeiro material que reuniu foi muito elogiado por um cliente, ex-participante de reality-show. Depois outra aprovação de uma petrolífera multinacional. A mesma opinião teve uma ONG de educação. Dionísio passou a ser mais procurado. Com isso, a sua responsabilidade aumentou. Pediu e ganhou um aumento. Com ele, depois de alguns meses, entregou o apartamento na Tijuca e alugou outro na Rua Constante Ramos, em Copacabana, também de dois quartos, realizando outro antigo sonho: morar perto da praia.
Nos primeiros dias de trabalho, Dionísio tentou manter uma vida normal. Mas chegava em casa tão cansado que acabava dormindo e só acordando às oito da noite. Aí notou que precisava fazer o trabalho que trouxera e se viu sem tempo para sair na rua e fazer atividades básicas como ir ao supermercado, à banca de jornal, ao dentista, além de aproveitar a cidade do Rio de Janeiro.
Um dia, viu no jornal da televisão uma primeira matéria sobre os serviços dia e noite. Se interessou tanto que decidiu procurá-los. Começou freqüentando uma loja de conveniência, ainda na Tijuca. Depois procurou um dentista. Marcou a primeira consulta para uma da manhã. Já na terceira, o profissional desistiu porque foi assaltado ao voltar pra casa e parou de trabalhar de madrugada. Dionísio teve que procurar outro para o seu horário incomum. Só achou em Copacabana. Quando o supermercado que freqüentava na zona norte também deixou de atender à noite, Dionísio decidiu se mudar. Já estava viciado em resolver seus problemas urbanos de madrugada. Tanto que recusou a oferta da dona da empresa de transferir o seu expediente para o horário comercial.
Um dia ele foi dispensado. Não soube se foi por corte no pessoal ou a diretora percebeu alguma coisa errada nele. Apesar de dedicado, Dionísio teria deixado de incluir uma matéria importante sobre um cliente. Uns disseram que Dionísio já começara a trabalhar demais. Estaria tão ansioso para aproveitar as atividades noturnas do comércio que já não dormia mais. Uma moça teria visto seus olhos vermelhos e logo achou que era por causa de drogas. Um colega o encontrou em uma drogaria de plantão, às três da madrugada, na Tijuca, perto do escritório. Houve várias versões sobre a demissão de Dionísio. O fato é que o rapaz não se importou. Nem quis voltar para Macabu. Preferiu continuar em Copacabana, mesmo.
Por três meses cumpriu o ritual ao qual estava acostumado a fazer. Aparentemente estava tudo normal. Era como se Dionísio ainda trabalhasse na produtora de clipping. A partir do quarto mês, o pai não quis mais pagar o aluguel. Era uma forma de pressioná-lo a voltar para o interior. Depois de alguma resistência, acabou cedendo. Entregou o apartamento no Rio de Janeiro e voltou para a cidade natal.
Tentou manter a mesma rotina de quando era clipista na Tijuca. Queria comprar os sete jornais, as duas revistas, ir à academia, ao supermercado, ao dentista e à esteticista. Não conseguiu porque tudo isso só funcionava durante o dia, sob a luz do sol, que Dionísio já rejeitava. Parecia um vampiro que temia virar pó com a claridade. Já andava de óculos escuros pela casa fechada com cortinas, assustando os pais e as freguesas da mãe. Ficava o dia inteiro sem dormir e só saía na rua à noite, na cidade já deserta. Vivia na farmácia de plantão, comprando estimulantes sem necessidade, virando assunto na cidade, envergonhando os pais.
O pai perdeu a paciência e tentou impor um limite. Ou Dionísio voltava a trabalhar ou seria expulso de casa porque não ia sustentar vagabundo. Logo se apiedou e ofereceu o bazar para ele trabalhar. Dionísio não tinha vergonha da fonte de sustento da família, mas quando adolescente só queria trabalhar como jornalista. Agora, já maduro, até aceitou ajudar o pai. Desde que trabalhasse de madrugada.
Como um empresário visionário, propôs que o bazar funcionasse 24 horas e ele tomaria conta. Seu Osmar, pai de Dionísio, recusou imediatamente. Disse que não ia dar lucro e que era perigoso, pois a farmácia já fora assaltada. Dionísio, então, pediu à mãe que lhe ensinasse a costurar (algo que ele odiava quando criança) e propôs adiantar as encomendas enquanto ela dormia. Dona Maria Lúcia estranhou, mas acabou aceitando.
Dionísio costurou por algumas semanas. Estava indo bem. Ganhava até elogios das freguesas da mãe. Eis que o pai voltou a procurá-lo para dizer que lhe tinha arranjado um emprego de vigia noturno. O rapaz aceitou na hora, antes de Seu Osmar perguntar se ele tinha certeza, pois era um emprego perigoso.
E lá foi Dionísio trabalhar como vigia da farmácia. Ganhou até uma arma, sem bala, pois servia apenas para assustar os ladrões. O turno de Dionísio era de meia-noite às seis da manhã. A farmácia ficava ao lado da sua casa.
Quando chegava, tomava banho antes do café da manhã que preparava para ele e a mãe. Já de óculos escuros, assistia à televisão e ajudava a mãe a fazer o almoço e também a costurar. Às quatro da tarde começava a fazer seu clipping... imaginário.
Não comprava os sete jornais faz tempo. Inventava tudo. Os pais começaram a ficar preocupados. Principalmente quando Dionísio começou a atender telefonemas inexistentes de clientes virtuais. Não os da internet, que ele tentava conseguir realmente, mas não tinha sucesso. Eram clientes criados por ele mesmo. Já começava a falar sozinho, organizando reuniões fantasiosas.
Uma noite, o dono da farmácia foi procurar o pai de Dionísio em sua casa. Ele não havia comparecido ao trabalho. Os pais e o patrão, amigo da família, o procuraram pela casa toda. Dona Maria Lúcia começou a se desesperar. Ainda mais quando o pai achou um bilhete curto e seco deixado pelo filho: “Fui para o Rio de Janeiro.” A primeira coisa que Seu Osmar fez foi procurar o revólver do dono da farmácia. Não estava lá. A sua pistola particular também não.
Dionísio chegou a Copacabana por volta das dez da noite. Entrou no supermercado que freqüentava quando morava no Rio. Ouviu pelo alto-falante o locutor anunciar que o estabelecimento estava encerrando as atividades do dia. O ex-clipista estranhou.
Perguntou a um segurança porque eles estavam fechando se o supermercado funcionava 24 horas por dia. O vigilante, um moreno forte e alto, disse que eles pararam de atender dia e noite depois de um assalto que sofreram. Dionísio se indignou. Sacou as duas armas que trouxe do interior e o rendeu.
Mesmo em desvantagem física, Dionísio obrigou o segurança a fechar as portas do supermercado e manteve todos os funcionários e fregueses como reféns. Gritando muito, completamente alterado, exigiu a presença de repórteres da mais famosa emissora de televisão. Ameaçou explodir o supermercado se alguém chamasse a polícia antes dele terminar o seu plano. Alguns fregueses cochichavam que Dionísio estava drogado, por causa dos seus olhos vermelhos. Mas ele não estava. Nem tinha tomado o estimulante. O que o entorpecia era a loucura mesmo.
Duas horas depois apareceu a equipe da imprensa. Uma repórter morena e bonita, de terninho amarelo, acompanhada do cinegrafista, um homem forte e moreno como o segurança rendido por Dionísio. Este autorizou a entrada apenas dos dois jornalistas e impôs as condições para liberar os fregueses e os funcionários do supermercado: produzir uma matéria sobre os serviços 24 horas na cidade do Rio de Janeiro. Assustados, os repórteres concordaram imediatamente. E começaram a entrevistar os freqüentadores, deveriam mostrar que estava tudo bem. Que era apenas uma pauta de rotina.
Dionísio atuou como o produtor da matéria desejada. Selecionou algumas pessoas. Escolheu um casal, um homem de cabelos grisalhos, o gerente e uma das caixas do supermercado para serem entrevistados. Ele mesmo também fez parte da matéria. Exigiu uma maquiagem para disfarçar os olhos vermelhos.
Dionísio disse para a repórter que trabalhava o dia inteiro e só tinha tempo para fazer compras depois da meia-noite. Depois de uma pausa na gravação, acrescentou que era mais prático e tranqüilo comprar no horário alternativo. Recomendou que este depoimento encerraria a matéria.
Satisfeito, Dionísio libertou os funcionários e os freqüentadores do supermercado. Todos estavam livres após quatro horas de tensão. Com exceção dos dois jornalistas, que continuaram com as duas pistolas apontadas por Dionísio. O clipista exigiu continuar a matéria na academia e, depois, nos consultórios noturnos do dentista e da esteticista.
Não deu tempo. No caminho para o carro da reportagem, Dionísio vacilou ao espirrar. Foi dominado pelo cinegrafista e surpreendido pela polícia, que o prendeu e o levou para a casa de custódia, sob a acusação de seqüestro, porte ilegal de armas e perturbação da ordem pública.
Condenado, foi cumprir a pena no manicômio judiciário. Lá, assistiu ao telejornal do fim de noite com a matéria sobre pessoas que faziam compras em supermercados, malhavam na academia, faziam tratamento de pele e marcavam consulta até com o dentista. Tudo de madrugada.
Dionísio era a estrela principal. Depois, começou a fazer o seu próprio clipping com as matérias verdadeiras sobre o seqüestro no supermercado publicadas na imprensa.
* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores.
* Por Gustavo do Carmo
O jornal do fim de noite de um famoso canal de televisão exibia uma matéria sobre pessoas que faziam compras em supermercados, malhavam na academia, faziam tratamento de pele e marcavam consulta até com o dentista. Tudo de madrugada.
Um dos entrevistados, freqüentador de um supermercado que funcionava durante 24 horas, era Dionísio, um jovem rapaz, na faixa dos vinte e cinco anos. Ele disse para a repórter que trabalhava o dia inteiro e só tinha tempo para fazer compras depois da meia-noite. No final da matéria voltou para acrescentar que era mais prático e tranqüilo comprar no horário alternativo.
De fato, Dionísio só tinha tempo para resolver os seus problemas de madrugada. Mas não trabalhava exatamente o dia inteiro. Jornalista formado, fazia clipagem, ou seja, buscava o que saía na imprensa sobre o cliente da produtora e criava um álbum com as matérias publicadas. Seu turno era das quatro às dez da manhã. Deixava o escritório na Tijuca, andava uns dez minutos e pegava o ônibus. Chegava ao apartamento, em Copacabana, em pouco menos de uma hora, dependendo do trânsito. Por volta do meio-dia ia almoçar (ou jantar) e, depois, finalmente dormia. Acordava às oito da noite. Fazia o seu desjejum enquanto muita gente jantava. Começava o seu dia quando os vizinhos chegavam do trabalho, exaustos, o que era percebido pelo movimento de entrada na garagem do prédio.
Fazia os trabalhos que levava para casa. Duas horas depois saía à rua. Passava no caixa eletrônico do banco e em seguida no jornaleiro, onde comprava as primeiras edições dos cinco principais informativos e também das duas publicações esportivas. Era mais pelo trabalho, ao qual se dedicava muito, do que para o lazer. Após algumas voltas no calçadão da praia, entrava na loja de conveniência e fazia um lanche que servia de almoço para não mexer na cozinha de madrugada e acordar os vizinhos do apartamento em frente. Finalmente ia ao supermercado e fazia as compras da semana.
Não eram todos os dias que Dionísio visitava o supermercado. Somente às quintas-feiras. As segundas eram reservadas para a academia, as terças para o dentista ou o tratamento de pele, na quarta tinha novamente a academia e às sextas ele ficava em casa por causa do movimento noturno no bairro. No sábado à noite, viajava para Conceição de Macabu, onde nasceu, foi criado e ainda moram os pais. Voltava para o Rio segunda-feira de manhã.
Acostumado com a rotina na capital, dormia o dia inteiro e só acordava à noite na cidade pequena, onde tudo fechava cedo. Os bares e restaurantes funcionavam até, no máximo, às duas horas da manhã. Dionísio não gostava de beber e os restaurantes eram muito fracos. Ficava perambulando pela casa durante cerca de quinze horas. Angustiava-se. Morria de saudades dos pais, mas não via a hora de voltar ao apartamento alugado no Rio de Janeiro, ao seu trabalho de clipping e às atividades comerciais da madrugada.
Dionísio achou o emprego na internet. Tinha o sonho de morar e fazer sua vida no Rio, mas precisava trabalhar. Chamado para a entrevista, passou e foi aprovado. Fizeram uma festa em casa. No entanto, os pais ficaram tristes porque o filho precisou se mudar e eles não podiam ir. A mãe, costureira, tinha os seus clientes e o pai tinha um bazar que não podia ficar abandonado. Ainda assim, seria bom para Dionísio morar sozinho e ganhar experiência de vida. O pai ainda ajudou o filho a alugar um apartamento de dois quartos na Tijuca, perto do trabalho.
Na empresa, o primeiro material que reuniu foi muito elogiado por um cliente, ex-participante de reality-show. Depois outra aprovação de uma petrolífera multinacional. A mesma opinião teve uma ONG de educação. Dionísio passou a ser mais procurado. Com isso, a sua responsabilidade aumentou. Pediu e ganhou um aumento. Com ele, depois de alguns meses, entregou o apartamento na Tijuca e alugou outro na Rua Constante Ramos, em Copacabana, também de dois quartos, realizando outro antigo sonho: morar perto da praia.
Nos primeiros dias de trabalho, Dionísio tentou manter uma vida normal. Mas chegava em casa tão cansado que acabava dormindo e só acordando às oito da noite. Aí notou que precisava fazer o trabalho que trouxera e se viu sem tempo para sair na rua e fazer atividades básicas como ir ao supermercado, à banca de jornal, ao dentista, além de aproveitar a cidade do Rio de Janeiro.
Um dia, viu no jornal da televisão uma primeira matéria sobre os serviços dia e noite. Se interessou tanto que decidiu procurá-los. Começou freqüentando uma loja de conveniência, ainda na Tijuca. Depois procurou um dentista. Marcou a primeira consulta para uma da manhã. Já na terceira, o profissional desistiu porque foi assaltado ao voltar pra casa e parou de trabalhar de madrugada. Dionísio teve que procurar outro para o seu horário incomum. Só achou em Copacabana. Quando o supermercado que freqüentava na zona norte também deixou de atender à noite, Dionísio decidiu se mudar. Já estava viciado em resolver seus problemas urbanos de madrugada. Tanto que recusou a oferta da dona da empresa de transferir o seu expediente para o horário comercial.
Um dia ele foi dispensado. Não soube se foi por corte no pessoal ou a diretora percebeu alguma coisa errada nele. Apesar de dedicado, Dionísio teria deixado de incluir uma matéria importante sobre um cliente. Uns disseram que Dionísio já começara a trabalhar demais. Estaria tão ansioso para aproveitar as atividades noturnas do comércio que já não dormia mais. Uma moça teria visto seus olhos vermelhos e logo achou que era por causa de drogas. Um colega o encontrou em uma drogaria de plantão, às três da madrugada, na Tijuca, perto do escritório. Houve várias versões sobre a demissão de Dionísio. O fato é que o rapaz não se importou. Nem quis voltar para Macabu. Preferiu continuar em Copacabana, mesmo.
Por três meses cumpriu o ritual ao qual estava acostumado a fazer. Aparentemente estava tudo normal. Era como se Dionísio ainda trabalhasse na produtora de clipping. A partir do quarto mês, o pai não quis mais pagar o aluguel. Era uma forma de pressioná-lo a voltar para o interior. Depois de alguma resistência, acabou cedendo. Entregou o apartamento no Rio de Janeiro e voltou para a cidade natal.
Tentou manter a mesma rotina de quando era clipista na Tijuca. Queria comprar os sete jornais, as duas revistas, ir à academia, ao supermercado, ao dentista e à esteticista. Não conseguiu porque tudo isso só funcionava durante o dia, sob a luz do sol, que Dionísio já rejeitava. Parecia um vampiro que temia virar pó com a claridade. Já andava de óculos escuros pela casa fechada com cortinas, assustando os pais e as freguesas da mãe. Ficava o dia inteiro sem dormir e só saía na rua à noite, na cidade já deserta. Vivia na farmácia de plantão, comprando estimulantes sem necessidade, virando assunto na cidade, envergonhando os pais.
O pai perdeu a paciência e tentou impor um limite. Ou Dionísio voltava a trabalhar ou seria expulso de casa porque não ia sustentar vagabundo. Logo se apiedou e ofereceu o bazar para ele trabalhar. Dionísio não tinha vergonha da fonte de sustento da família, mas quando adolescente só queria trabalhar como jornalista. Agora, já maduro, até aceitou ajudar o pai. Desde que trabalhasse de madrugada.
Como um empresário visionário, propôs que o bazar funcionasse 24 horas e ele tomaria conta. Seu Osmar, pai de Dionísio, recusou imediatamente. Disse que não ia dar lucro e que era perigoso, pois a farmácia já fora assaltada. Dionísio, então, pediu à mãe que lhe ensinasse a costurar (algo que ele odiava quando criança) e propôs adiantar as encomendas enquanto ela dormia. Dona Maria Lúcia estranhou, mas acabou aceitando.
Dionísio costurou por algumas semanas. Estava indo bem. Ganhava até elogios das freguesas da mãe. Eis que o pai voltou a procurá-lo para dizer que lhe tinha arranjado um emprego de vigia noturno. O rapaz aceitou na hora, antes de Seu Osmar perguntar se ele tinha certeza, pois era um emprego perigoso.
E lá foi Dionísio trabalhar como vigia da farmácia. Ganhou até uma arma, sem bala, pois servia apenas para assustar os ladrões. O turno de Dionísio era de meia-noite às seis da manhã. A farmácia ficava ao lado da sua casa.
Quando chegava, tomava banho antes do café da manhã que preparava para ele e a mãe. Já de óculos escuros, assistia à televisão e ajudava a mãe a fazer o almoço e também a costurar. Às quatro da tarde começava a fazer seu clipping... imaginário.
Não comprava os sete jornais faz tempo. Inventava tudo. Os pais começaram a ficar preocupados. Principalmente quando Dionísio começou a atender telefonemas inexistentes de clientes virtuais. Não os da internet, que ele tentava conseguir realmente, mas não tinha sucesso. Eram clientes criados por ele mesmo. Já começava a falar sozinho, organizando reuniões fantasiosas.
Uma noite, o dono da farmácia foi procurar o pai de Dionísio em sua casa. Ele não havia comparecido ao trabalho. Os pais e o patrão, amigo da família, o procuraram pela casa toda. Dona Maria Lúcia começou a se desesperar. Ainda mais quando o pai achou um bilhete curto e seco deixado pelo filho: “Fui para o Rio de Janeiro.” A primeira coisa que Seu Osmar fez foi procurar o revólver do dono da farmácia. Não estava lá. A sua pistola particular também não.
Dionísio chegou a Copacabana por volta das dez da noite. Entrou no supermercado que freqüentava quando morava no Rio. Ouviu pelo alto-falante o locutor anunciar que o estabelecimento estava encerrando as atividades do dia. O ex-clipista estranhou.
Perguntou a um segurança porque eles estavam fechando se o supermercado funcionava 24 horas por dia. O vigilante, um moreno forte e alto, disse que eles pararam de atender dia e noite depois de um assalto que sofreram. Dionísio se indignou. Sacou as duas armas que trouxe do interior e o rendeu.
Mesmo em desvantagem física, Dionísio obrigou o segurança a fechar as portas do supermercado e manteve todos os funcionários e fregueses como reféns. Gritando muito, completamente alterado, exigiu a presença de repórteres da mais famosa emissora de televisão. Ameaçou explodir o supermercado se alguém chamasse a polícia antes dele terminar o seu plano. Alguns fregueses cochichavam que Dionísio estava drogado, por causa dos seus olhos vermelhos. Mas ele não estava. Nem tinha tomado o estimulante. O que o entorpecia era a loucura mesmo.
Duas horas depois apareceu a equipe da imprensa. Uma repórter morena e bonita, de terninho amarelo, acompanhada do cinegrafista, um homem forte e moreno como o segurança rendido por Dionísio. Este autorizou a entrada apenas dos dois jornalistas e impôs as condições para liberar os fregueses e os funcionários do supermercado: produzir uma matéria sobre os serviços 24 horas na cidade do Rio de Janeiro. Assustados, os repórteres concordaram imediatamente. E começaram a entrevistar os freqüentadores, deveriam mostrar que estava tudo bem. Que era apenas uma pauta de rotina.
Dionísio atuou como o produtor da matéria desejada. Selecionou algumas pessoas. Escolheu um casal, um homem de cabelos grisalhos, o gerente e uma das caixas do supermercado para serem entrevistados. Ele mesmo também fez parte da matéria. Exigiu uma maquiagem para disfarçar os olhos vermelhos.
Dionísio disse para a repórter que trabalhava o dia inteiro e só tinha tempo para fazer compras depois da meia-noite. Depois de uma pausa na gravação, acrescentou que era mais prático e tranqüilo comprar no horário alternativo. Recomendou que este depoimento encerraria a matéria.
Satisfeito, Dionísio libertou os funcionários e os freqüentadores do supermercado. Todos estavam livres após quatro horas de tensão. Com exceção dos dois jornalistas, que continuaram com as duas pistolas apontadas por Dionísio. O clipista exigiu continuar a matéria na academia e, depois, nos consultórios noturnos do dentista e da esteticista.
Não deu tempo. No caminho para o carro da reportagem, Dionísio vacilou ao espirrar. Foi dominado pelo cinegrafista e surpreendido pela polícia, que o prendeu e o levou para a casa de custódia, sob a acusação de seqüestro, porte ilegal de armas e perturbação da ordem pública.
Condenado, foi cumprir a pena no manicômio judiciário. Lá, assistiu ao telejornal do fim de noite com a matéria sobre pessoas que faziam compras em supermercados, malhavam na academia, faziam tratamento de pele e marcavam consulta até com o dentista. Tudo de madrugada.
Dionísio era a estrela principal. Depois, começou a fazer o seu próprio clipping com as matérias verdadeiras sobre o seqüestro no supermercado publicadas na imprensa.
* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores.
Meu filho, hoje com 27 anos, desde os 12 só dorme depois de duas horas da manhã. Quando estava na escola tinha de acordar às 6, pois as aulas começavam às 7. Durante a faculdade ia dormir às 3 h e acordava às 8h. Às vezes ia dormir ainda mais tarde. Com um pouco mais poderia virar guarda-noturno. É comum a insônia nos portadores de TDAH. Depois da internet, no início discada, muitos insones que dormem de dia e vivem de noite, ampliaram seus domínios. No caso do seu personagem, Gustavo, a loucura substitui a insônia como personagem principal. Coisa de loucos.
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