quarta-feira, 18 de janeiro de 2012







O romance de Bernardo Kucinski

* Por Marco Albertim

O gênero romance pode refletir a história, inda que o romancista arbitre a versão que dá aos episódios. Em K., o jornalista Bernardo Kucinski dá conta do recado e confirma os atributos do ficcionista. Arbitra a própria versão da “desaparição” de sua irmã, Ana Rosa Kucinski, em abril de 1974. “Desaparição”, o substantivo que permeia a narrativa, dá substância ao enredo de mistério, é usado de uma ponta a outra do romance; ele resgata a evaporação em que se converteu o sumiço da professora de química da USP. Ela e o marido, Wilson Silva.
Os 28 capítulos não se entrelaçam ou não têm unidade orgânica, mas se bicam com a presença física ou o espectro de K., à procura da filha dileta dos Kucinski. O autor, sem intentos subjacentes, não se finge de historiador; embute-se na redoma de romancista ao advertir: “Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu.” Ana está morta, o sistema sabe e se mantém indiferente ao rumo que deram a seu corpo. A compreensão do fato se dá com a interpretação do autor às reiteradas correspondências ao antigo endereço da professora. “Ele é a síntese do sistema, da solidez fingida em mármore; o banco que não negocia com rostos e pessoas, e sim com listagens de computador.” Há aqui a síntese do observador, amarga, profunda. Se a indiferença do sistema mostra-se no silêncio, nem tanto quanto aos responsáveis pela “desaparição” de Ana; porquanto, ainda hoje, estão imbricados nos órgãos de informações. K., ao acercar-se de pistas dando conta de onde a filha poderia estar enterrada, recebe telefonemas informando-o de “novas descobertas.” Distinguindo o passado, mas com os pés no presente, arremata o narrador referindo-se a K.: “Ele não podia saber que quarenta anos depois esse muro ainda estará de pé, intocado. Mas já sabia que estava tudo muito amarrado, para ninguém saber de nada.” O livro termina com o Post Scriptum; não é peça de ficção, posto que informa sobre o telefonema de uma brasileira no Canadá, que teria encontrado Ana numa roda de amigos num restaurante. “O telefonema da suposta turista brasileira veio do sistema repressivo, ainda articulado.” Bernardo Kucinski escreveu isso em 31 de dezembro de 2010.
O narrador é oculto e não menciona o nome da “desaparecida”, mas não poupa críticas ao pai:”Um absurdo ele não ter questionado isso de só visitar se for grave, de só telefonar se for urgente. Onde ele estava com a cabeça, meu Deus?” Refere-se à recomendação de Ana, de ser procurada só em caso de extrema gravidade. K. vive o segundo casamento quando dos fatos. O autor sentencia: ”A segunda esposa, uma inútil.” O parágrafo conforma o cenário da perda: ”Pronto, estava instalada a tragédia.”
A procura perto do fim expõe o personagem cansado, conformado com os poucos resultados das buscas. “Deixa de ser um ícone. Já não é mais nada. É o tronco inútil de uma árvore seca.”
Jesuína é uma ex-detenta, funcionária da Casa das Mortes em Petrópolis, indicada pelo delegado Fleury. Tem visões, pesadelos e sangramentos. À frente da terapeuta que a pressiona a uma confissão, protagoniza: “Jesuína põe-se a soluçar, de início um gemido surdo; logo o choro se acelera e ela é tomada por convulsões, escorregando lentamente da cadeira; a terapeuta a agarra antes que desabe e a põe de pé, abraçando-a. Ambas choram.” No resumo, a auxiliar incumbida de ouvir a conversa dos presos, expõe a alma insofrida, sôfrega.
O último cenário é o Presídio do Barro Branco. K. visita presos políticos, lhes traz cigarros, chocolates; súbito, desfalece. Os presos o deitam num beliche “(...) avistou atrás deles, no alto da parede dos fundos, a familiar janelinha gradeada da cela trazendo de fora promessas de sol e liberdade. Sentiu-se em paz. Muito cansado, mas em paz. Estendeu aos presos o pacote de cigarros. Depois, suas mãos se abriram e seus olhos se cerraram.” Epílogo sem conciliação.



*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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