quarta-feira, 25 de janeiro de 2012







Cais do fedor

* Por Marco Albertim


São dez horas. O sol incide sem dó sobre a calçada na margem do Cais José Mariano. O cimento rachado, à mercê de um recife oculto, embute fissuras por onde, mudos, insinuam-se fios da água do rio Capibaribe. São dez horas de qualquer dia, com exceção da manhã do domingo, quando a população não se liquefaz no cais, funde-se nos arrabaldes. Inda que o caminhante do dia útil tivesse a sola dos pés nua, pouco sentiria o queimor vindo do sol para o cimento. O rio, salvo nas cabeceiras, nunca se curvou ao vapor das temperaturas; sofre dos intestinos, posto que nunca desintoxiquem seu estômago.
O negro que pôs o tabuleiro na superfície superior dos degraus que descem para o rio, mexe-se feito um Napoleão desengonçado, de um lado para o outro; não usa sandálias sobre o chão molhado, à sombra do castanheiro-da-índia. Distingue com os olhos, com os dedos brancos na palma engelhada, fregueses de olho na robustez das tainhas. “São da boca da barra”, apressa-se, apontando para o rio atrás de si, fundindo-se no oceano. O tabuleiro é grande, de madeira, retangular, e apoia-se numa caixa que tem a altura da balaustrada comprida.
As canoas com homens iguais ao negro da calçada, despejam o pescado a partir das 10h. Têm cinco metros de comprimento, dois de largura no meio e movem-se com um motor de rabeta acoplado na popa. A rede de pesca, comprida, amontoa-se junto ao motor, deixando um espaço para o mestre. Do meio para a proa, dois homens, um de feição sanguínea e outro instilando breu, sentam-se no acento de madeira que une as laterais da canoa. Baldes de flandres, de plástico, têm a água do rio; no recipiente a água não se deixa flagrar no verde bacento do leito; é branca com resíduos de sujeira, modo inconfesso de entremear com a água de torneira, da derradeira lavagem do peixe.
Os dois, empunhando cada um uma faca com o gume minguado, amolado, estripam compridos peixes-espadas; o corte é tão afiado quanto o arremesso da ponta do espeto do peixe, na rotina da predação sob as águas. As vísceras não são juntadas para ração – no banquete dos porcos -, são jogadas ali mesmo, a no máximo dez centímetros da canoa. Não se dão o trabalho de esticar os braços. O negro da calçada, com insofrida pressa, roga-lhes pelos nacos sugerindo bifes, sem a espinha do meio. “O japonês do restaurante faz milagres com as postas das espadas”, explica.
Os homens ainda estão na canoa. O vento que sopra do norte sugere o fim do sucoso suor que cobre rostos, peitos e dorsos. Os olhos não mais se comprimem para divisar fios de espinhas deixados na pressa dos cortes. São mefíticos e sorvem apenas o cheiro sebento que vem da lama sob as águas. E os narizes adensam o ar que carrega para cima, para o tabuleiro sem cobrimento, a inhaca de tripas e guelras.
O japonês faz a ronda ao tabuleiro, tão à vontade como se estivesse num mercado de um porto de Tóquio. O negro não entende as palavras, inda que adivinhe-lhe os instintos nos olhos miúdos. Não quer filés de espada. O negro põe em dúvida a observação que fizera do nissei. O freguês abaixa-se, serve-se ele mesmo de uma bolsa de plástico preto, e cata corós pouco maiores que o maior dedo de sua mão de homem de pouco tamanho.
Cinco reais o quilo!
Quase vexado, o freguês fica de costas para o vendedor; cata a cédula precisa para pagar, sem que tenha que receber troco.
À altura, mais filés de espada são despejados no tabuleiro pelos pescadores. Impossível separar o perfume que vem da barra, do negrume dos corpos, do tabuleiro com respingos de sangue.
Ao meio-dia, o ruído da colher na marmita do negro, confunde-se com o marulho das águas. Por toda a tarde ele não grita o pregão, convencido de que o rio afiança seus propósitos de negociante.

*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

Um comentário:

  1. Marco, fez-me lembrar do Ver-o-Peso, aqueles
    barcos atracados no rio, a lama, os urubus dando rasantes, uma visão meio que surreal.
    Abraços

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