quarta-feira, 25 de janeiro de 2012



Mansidão

* Por Rubem Alves


Eu era menino, lá em Minas, bola de gude no chão, pipa voando no ar, pião rodando na mão... De dia brincando naquela terra, de noite lutando distante guerra... Os homens da vizinhança se reuniam à frente da nossa casa para ouvir o rádio – era o único da redondeza – notícias da guerra na Europa. E o Carlos Frias dizia com sua voz dramática, fundo musical de “Moonlight Serenade”: “E Stalingrado continua a resistir.” Ao que, ouvindo isso o Zé da Cotinha – a Cotinha era uma vizinha velha desdentada maledicente que estava sempre pedindo uns pauzinhos de lenha emprestados – o Zé da Cotinha anunciava com voz solene que ninguém ousava contestar: “Pois hoje, à meia-noite, Stalingrado vai mudar de nome. Vai se chamar Hitlerlogrado...”

Era emocionante. O pai ia me mostrando, no enorme mapa da Europa pendurado na parede da sala, os lugares que tinham sido mencionados no rádio, lugares onde as metralhadoras e os canhões faziam soar a “sinistra melodia” da guerra. E eu imaginava a música do pistão a tocar languidamente o “toque de silêncio”, ao cair da noite, em memória daqueles que haviam sido silenciados para sempre.


Quando a guerra acabou – eu tinha 12 anos – perguntei ao meu pai: “Agora quais serão as notícias que vão aparecer nos jornais?” Meu pai respondeu: “Os jornais vão falar sobre política.” Pensei: “Então vai ser muito chato...” Fiquei triste porque a guerra tinha acabado. A guerra é mais emocionante que a paz. Agora os jornais estão interessantes de novo. Não mais as banalidades da corrupção de políticos grotescos que vomitam eloquência com dedo em riste. Emoção de verdade. Adrenalina. Ação. Guerra. Guerra com prenúncios de fim do mundo. Fico hipnotizado pelas manchetes. Elas me colocam no meio da emoção da ação. Essa é a razão porque os filmes de guerra são campeões de bilheteria: todo mundo quer experimentar as emoções da guerra sem correr os seus perigos. A ação é rápida. Meu pensamento, lerdo, não consegue segui-la. As imagens tomam o lugar das idéias. Sou espectador de um filme de guerra – um mero espectador. Foram outros os que escreveram o “script”. Eu nada posso fazer além de contemplar. Estou estupidificado intelectualmente e paralisado praticamente.

* * *

O professor Bento Prado Jr. é filósofo, talvez o maior filósofo brasileiro. Velho, mais ou menos a minha idade. Escreve com clareza. Escreve com beleza. Professor, pensou e ensinou o pensamento de outros. Sábio, pensa e ensina os seus próprios pensamentos. Sabe que sabedoria se ensina com poesia. Assim, virou poeta e escreveu: “Na minha vida tão agitada, / na alma exposta ao tormento de tanto vento – o lençol, no varal, lá fora, que estala violento / contra si mesmo e contra o Bento - , eis-me, finalmente, velho e sem idade / com o vendava l que, desde sempre, estrala, no espaço onde se dispersam as estrelas. / Que fazer? Mudar o mundo, justo em seu fim, ou, mais custoso ainda, a mim? / Nem um, nem outro: - cultivar docemente meu jardim.”


Esse poeminha me deu grande “felicidade de palavras”: ele diz o que sinto. Lá fora, o vendaval que estala violento, indiferente ao que sinto, indiferente ao que penso. Nada posso fazer. Ele só faz me emocionar, uma emoção estéril, uma ereção do pensamento sem que haja ato de amor, orgasmo e fecundação. Assim, fecho os jornais com suas manchetes de guerra que me deixam na condição de espectador inútil, e me volto para aquilo que posso fazer. Posso fazer amor com o meu jardim. Meus pensamentos sobre o meu jardim não serão inúteis. Do meu jardim eu posso cuidar.


Nas manchetes dos jornais, as emoções fortes da morte, rápida e barulhenta. Minhas idéias perturbadas. Nas plantas do meu jardim, as emoções brandas da vida, mansa e silenciosa. Penso pensamentos alegres.

* * *


Quem terá sido? De uma coisa estou certo: tinha de ser jardineiro, tinha de ser poeta e tinha de ser educador. Tudo junto. Se jardineiro, poeta e educador não estivessem juntos a metáfora não teria aparecido. “Jardim de Infância!” Foi isso o que esse desconhecido exclamou ao ver a criançada alegremente aprendendo. E todos concordaram. “É isso mesmo!” - responderam em coro. Tanto que o nome ficou, muito embora o nome do poeta-jardineiro-educador tenha sido esquecido.


Crianças e jardins – como se parecem! Nos dois a vida aparece, exuberante, alegre e mansa. Alguns não gostaram do nome “jardim”. Acharam que o ensino dos saberes é coisa séria, não é brinquedo, não é coisa de criança, ensinam-se os saberes às crianças precisamente para que elas deixem de ser crianças e se tornem adultos produtivos. Jardim não é espaço produtivo. Produtivas são as hortas. Assim, trataram de fazer com que o nome “jardim de infância” tivesse vida curta – como uma bolha de sabão. Logo as crianças saem do jardim e entram para a escola de verdade que não é jardim. Se fosse, se chamaria jardim. Se não se chama jardim é porque não é. Que coisa é essa escola que não é jardim eu não sei direito. Às vezes imagino que ela é uma linha de montagem – as crianças-flores sendo transformadas em peças de uma máquina.


Pois estou muito alegre porque Campinas, nesse momento em que as manchetes dos jornais estão cheias de violência, crimes e morte, está recebendo a visita de um educador que acha que a escola tem de ser um jardim, do princípio ao fim. É o professor José Pacheco, acompanhado da esposa Fátima – da Escola da Ponte, aquela sobre que escrevi, em Portugal: a escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir...


Imagino que todo mundo deve estar curioso sobre os princípios básicos da sua jardinagem pedagógica... Isso é fácil.


Posso resumir os princípios pedagógicos da Escola da Ponte em poucas palavras.

Posso também resumir os princípios da jardinagem em poucas palavras.


E os princípios do casamento feliz em poucas palavras.


Até mesmo os princípios da arte de escrever em poucas palavras.


Mas há um problema que não sei resolver: o conhecimento dos princípios nem faz jardins bonitos, nem casamentos felizes e nem literatura bonita. Princípios funcionam bem quando o que se deseja é a produção de uma linha de montagem. Não funcionam bem quando o que se deseja é a criação de um jardim... Princípios pedagógicos não fazem escolas-jardins...


Martin Buber, um maravilhoso filósofo que pôs palavras nos meus sentimentos, disse que o que faz o mundo humano não são as coisas. São as relações. O Paraíso era um lugar maravilhoso, onde se encontravam todas as coisas capazes de trazer felicidade. Mas houve um momento em que a beleza do jardim foi destruída por uma perturbação nas relações. Homem e mulher se olharam com olhos tortos, tiveram vergonha um do outro, e se cobriram. Tiveram medo de Deus, e se esconderam. E o Paraíso foi perdido. Veja o nosso mundo. Com a riqueza que temos e o conhecimento que produzimos, temos condições de reconstruir o Paraíso. E, no entanto, nossa riqueza e nossa ciência produziram um Inferno. Por quê? Porque as relações entre as pessoas e os povos estão podres, vazias de amor, cheias de morte. Isso vale para tudo. Assim acontece com países, empresas, universidades, casas, escolas...


O segredo da Escola da Ponte não se encontra nos seus princípios pedagógicos. Ele se encontra nas relações entre pessoas que ali convivem e trabalham. Acontece que a qualidade das relações não pode ser produzida por princípios que se ensinam em cursos de capacitação. “Mundos melhores não são feitos; eles simplesmente nascem” – disse Cummings. A mesma coisa vale para as instituições e organizações: é preciso que a relações nasçam... Uma planta, para nascer, tem de ser plantada. E que semente é essa que foi plantada, nasceu e floresce na Escola da Ponte?


Eu acho que é uma semente que o José Pacheco plantou, sem saber que estava plantando. Plantou sem intenção, simplesmente sendo o que ele é, sem precisar fazer força. O José Pacheco plantou mansidão...


Mansidão é o abandono voluntário do exercício do poder. “Professor José Pacheco” – uma pessoa conversava com ele ao telefone, faz uns dias – “tenho de preencher formulários relativos à sua vinda ao Brasil. No item relativo à sua função o que coloco? Diretor?” Responde José Pacheco do outro lado do oceano, quase gaguejando: “Não... não... Aqui não temos um diretor. Todos os professores são diretores. Coloque ...” segue-se um silêncio – “coloque ‘coordenador de projetos’”. É verdade. Na Escola da Ponte não há uma pessoa que tenha a última palavra. O poder não pertence a ninguém; pertence a todos. As idéias não são monopólio de ninguém. São propriedade de todos. O poder não estando localizado numa diretoria, não existe tensão entre “diretoria” e subordinados. E nem a possibilidade de greve... por não haver um detentor do poder a ser dobrado pela força. E nem uma instância superior que use força para intimidar os mais fracos: o professor que manda o aluno para a diretoria... Se há questões de disciplina a serem resolvidas, serão os próprios alunos que as resolverão – pois são eles que cuidam que ninguém estrague o seu jardim. E se todos participam, em igualdade, do cuidado desse jardim, o solo não é propício para o desenvolvimento da grande praga, responsável pelo envenenamento das relações humanas: a inveja. Não digo que ela não exista... Mas, se aparece, brota mirrada, envergonhada, não tem tempo de se transformar em maledicência e conspiração, é fácil de ser arrancada...


Visão do profeta Isaías (cap. 6:11-13). Estas eram as manchetes dos jornais no tempo em que ele vivia: as cidades devastadas, sem habitantes; as casas vazias, sem moradores; e os campos totalmente assolados. Nesse cenário de fim de mundo Deus lhe diz: será como o carvalho, que mesmo depois de cortado, continua a brotar...


A Escola da Ponte é um broto verde, um anúncio de jardim em meio ao deserto.


Bem-vindos, José Pacheco e Fátima...


Aperitivos

1. “Bem-aventurados os mansos porque eles herdarão a terra”.


2. “São as palavras mais tranquilas que trazem a tempestade. Pensamentos que caminham com pés de pés de pomba – são eles que guiam o mundo.” (Nietzsche)


3. Albert Camus: “Já se disse que as grandes idéias vêm ao mundo mansamente, como pombas. Talvez, então, se ouvirmos com atenção, escutaremos, em meio ao estrépito de impérios e nações, um discreto bater de asas, o suave acordar da vida e da esperança. Alguns dirão que tal esperança jaz numa nação; outros, num homem. Eu creio, ao contrário, que ela é despertada, revivificada, alimentada por milhões de indivíduos solitários, cujos atos e trabalho, diariamente, negam as fronteiras e as implicações mais cruas da história. Como resultado, brilha por um breve momento a verdade sempre ameaçada de que cada e todo homem, sobre a base dos seus próprios sofrimentos e alegrias, constrói para todos...” (Albert Camus)


4. “Não há império que valha que por ele se parta uma boneca de criança.” (Bernardo Soares)


(Correio Popular, Caderno C, 30/09/2001.)

* Rubem Alves é escritor, teólogo e educador

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