Templo das musas
* Por Guilherme Scalzili
Há viajantes que simplesmente detestam museus. Preferem mil vezes mastigar um bom cachorro-quente em qualquer esquina cheia de pombos a vagar por esses depósitos de velharias remotamente familiares. Custam a entrar, quase empurrados, xingando baixinho, e atravessam as galerias com olhares perdidos, procurando as saídas, acusando experiências terrivelmente enfadonhas. Outros não sofrem tanto. Sabem que estão lidando com um divertimento simpático porém traiçoeiro, sempre a minutos de tornar-se um martírio. Por isso encaram a visita com prudência: apreciam as obras mais famosas, comentam relíquias e até assimilam algumas informações, mas fogem antes do arrependimento.
Pois quem são aqueles vultos solitários, dispersos pelos cantos, imóveis e serenos, que chegam antes e vão embora depois da maioria? Estátuas vivas? Policiais à paisana? Vândalos preparando o ataque? Nada disso. Trata-se apenas de fanáticos por museu. Preferem passar seus dias imersos em edifícios silenciosos, alheios ao fervilhante cotidiano e às inúmeras atrações disponíveis lá fora. E não dão a mínima para o turismo ortodoxo. Sua seita exige que vivam reclusos no santuário, prostrados diante dos oráculos, à espera de revelações. Mártires abnegados, sofrem a incompreensão dos amigos, o escárnio dos cônjuges e o desprezo dos outros mortais. Injustiça. Apesar de esquisitos e teimosos como bestas, esses desocupados preservam um hábito instrutivo e bastante agradável.
Realmente, a prática resvala no escapismo. A organização e a cerimônia das galerias
guardam uma incorruptibilidade ausente do “mundo real”. Mas, convenhamos, refugiar-se dos percalços das grandes cidades e do arriscado envolvimento com culturas estranhas não constitui propriamente uma fobia (pedir um café em Praga, assim como escolher um bar em Amsterdã, é muito mais difícil do que parece). E não se trata de mero recolhimento físico. A fuga que os museus propiciam leva a lugares onde o tempo redunda irrelevante, onde o sublime e o reverente se conciliam, onde mistérios, delírios e paixões se realizam. Os sentidos aguçam, as memórias avivam, idéias rebentam, o inconsciente revolve e transforma-se. Melhor que terapia.
Para participar não precisa ser um fundamentalista como eu e chegar ao cúmulo de conservar até canhotos de bilhetes e recibos das lanchonetes. Mas a visita é uma viagem à parte e, como toda viagem, demanda planejamento. Sua duração pode variar de acordo com o cronograma, o humor das crianças, a vastidão do acervo e o grau de perseverança do viajante. Filas são obstáculos corriqueiros. Geralmente existe um limite para a presença de visitantes no interior dos museus, o que deixa a espera ainda mais torturante, pois depende da imponderável disposição dos privilegiados que acordaram mais cedo. Entrar na galeria Uffizi num belo dia de verão florentino custa a leitura de boa parte da Divina Comédia, sem contar o piquenique. De qualquer forma, o sacrifício é bem mais ameno que as batalhas campais na base da torre Eiffel.
Deve-se começar pela própria estrutura física do estabelecimento. Com o perdão dos puristas, não existe museu feio. Alguns estranham as pirâmides do Louvre, as tubulações do George Pompidou e as deformidades do Guggenheim de Bilbao, mas jamais passamos indiferentes a seu arrojo suntuoso. Pode-se dizer que o Belas Artes de Zurique, o Van Gogh de Amsterdã e o Malba de Bueno Aires são realizações austeras ou frias demais. É verdade, mas até na simplicidade geométrica pulsa uma superioridade estóica, de caixa-forte, que parece consciente de seu precioso recheio. As grandes coleções geralmente situam-se em edifícios de valor histórico proporcional. São, além de museus, também monumentos. É possível perder horas de estupefação diante do Kunsthistorisches de Viena, sentado nos maravilhosos jardins externos, se a neve permitir. E é perigoso ignorar as obras deste e de tantos outros palácios restaurados, sob o feitiço de suas inacreditáveis arquiteturas e luxuosas decorações.
Compreendo sinceramente os afoitos, mas lamento informar que em uma ou duas horas é impossível saborear qualquer acervo – talvez a simples tentativa de sair do Louvre demore mais do que isso. O colosso parisiense, aliás, é caso emblemático de museu-cidade, que precisa de meses, talvez anos, quiçá encarnações, para ser completamente decifrado (inútil tentar vencê-lo). Trata-se, portanto, de estabelecer prioridades. A melhor estratégia é imediatamente comprar um guia com mapa do local. Existem diversas versões, de panfletos gratuitos a livros belíssimos (e caros), verdadeiras peças de colecionador. Vale qualquer critério para escolher o melhor caminho. Começar pelo mais interessante evita a horrível frustração de sair sem ter conseguido encontrar aquela obra que motivou a visita ou mesmo toda a viagem. Já a seqüência cronológica proporciona uma inestimável jornada pela história das civilizações e ensina muito sobre a evolução do espírito artístico.
Mesmo que o atrativo da visita seja difuso e generalizado, convém manter certa regularidade nas paradas. A grande armadilha dos neófitos é o interesse por absolutamente tudo que aparecer. Isso vale especialmente para museus de acervo quase todo maravilhoso, como o indefectível Louvre, o Rijksmuseum de Amsterdã, a Galeria de Arte Moderna de Munique, o Belas Artes de Zurique, o Prado de Madri, a Uffizi e a Accademia de Florença. Os guias impressos também ajudam a descobrir raridades: perto da tábua de Hamurabi (Louvre), dentro de um mostruário, repousam inacreditáveis dados sumérios. Sim, pequeninos dados sumérios podem mudar uma vida.
Os limites humanos exigem certa precaução. Um grande museu significa razoável esforço aeróbico e muscular, não apenas pelas imensidões de corredores e pátios a serem percorridos, mas também por causa das vastas escadarias (as do Belas Artes de Budapeste são particularmente desumanas). Recomenda-se um leve alongamento, desde que realizado ainda no quarto do hotel, para evitar vexames. O vestuário deve ser condizente com o desafio físico. Volumes desnecessários, principalmente casacos, podem se transformar em monstruosidades insuportáveis.
É importante saber parar, espairecer, planejar os próximos movimentos. As solas dos pés agradecem. Mas o cansaço não é o único inimigo da concentração. Existem hordas de visitantes alucinados, cujo excursionismo ruidoso pode arruinar momentos sublimes. Em várias situações, será praticamente impossível evitá-los – por exemplo, nas esplendorosas salas de Rafael e na capela Sistina (Vaticano), diante da “Mona Lisa” (Louvre) ou dos impressionistas no d’Orsay (Paris). A aglomeração chega a atingir os limites da agressão física e certas algazarras podem levar ao choro convulsivo. Bons antídotos contra essas violências são o fone de ouvido e doses cavalares de paciência. Cabe atenção para não ignorar preciosidades menos célebres e ocultas pela multidão, como “A virgem e o menino com Santa Ana”, de Leonardo da Vinci (costuma ficar ao lado da Gioconda), e o “Calvário”, do russo Nikolay Gay, numa sombra remota do d’Orsay.
Um museu vive. Parte fundamental da visita consiste em sentar diante das galerias, analisando a fauna heterogênea, tentando adivinhar nacionalidades, ouvindo o suave tumulto de burburinhos, que pulsa como uma respiração feita de ecos. Personagens e eventos curiosos surgem por toda parte. Sempre há estudantes e jovens artistas copiando as obras-primas com esmero surpreendente. Em Viena, um senhor bastante idoso fotografava pacientemente cada tela do imenso acervo, com tripé e disparador, acompanhado por sua compenetrada esposa, que anotava os títulos. No Arsenal de Berlim (museu de história alemã), uma família inteira, filhos inclusos, chorava perante imagens de campos de concentração. Em plena ala Richelieu do Louvre (aposentos de Napoleão III), dois pontepretanos desconhecidos reconheceram-se pelas camisetas do time e trocaram saudações efusivas. Juro. Eu vi.
Evidentemente, algo imprescindível nessa vivência mágica é prostrar-se diante das obras, sem medo nem pressa. Entregar-se à hipnose. Flutuar sob os efeitos do realismo, das narrativas, dos detalhes. Sentir o sangue fluindo nas veias dos personagens de David. Ouvir o tumulto da “Escola de Atenas” (Vaticano) e o trovão da misteriosa tempestade de Giorgone (Accademia de Veneza). Intumescer os olhos com a serenidade de Hodler. Sorver os idílios de Botticelli, os enigmas resplandecentes de Klimt, o jogo de cores de Mondrian. Mas cuidado: os Bruegels de Viena podem sugá-lo direto ao século XVI e talvez não seja fácil voltar; alguns já saíram correndo da Pinacoteca de Munique depois que o Goethe de Stieler mandou-lhes uma piscadela.
Também é necessário aproximar-se, o máximo possível, até onde for permitido – na pior das hipóteses, soará uma campainha ou o sentinela carrancudo balbuciará qualquer coisa¬. Dar-se ao luxo de procurar as digitais dos grandes mestres, de distinguir os esboços originais sob as últimas camadas de tinta. Perceber que o leite entornado de Vermeer (Rijksmuseum) parece ainda mais real quando analisamos de muito perto suas pouquíssimas pinceladas. Mergulhar nos redemoinhos de borrões luminosos que originam as paisagens de Monet e os maremotos de Turner. Roçar a aspereza frenética mas inexplicavelmente precisa dos van Goghs. Constatar que os sombrios Caravaggios são realmente feitos de tinta e descobrir aquelas sutis fissuras do entalhe, comprovando que o Davi de Michelangelo (Accademia de Florença) não passa de um gigantesco bloco de mármore. E no entanto ele respira...
Tais epopéias não exigem profundas noções históricas ou estéticas, justamente porque os verdadeiros conhecimentos estão ali, entre os tesouros dos museus, e não nas fotografias redutoras dos livros. São banquetes permanentemente montados, abertos a todos que tenham apetite e paciência para saboreá-los. E coragem de sair à rua sob as vertigens do espírito saciado, num êxtase que custará a dissipar-se.
O único problema é que vicia.
Publicado na revista Viagem & Turismo, edição de julho de 2006
*Jornalista e escritor, autor dos livros “O colar da Carol ta na grama”, “A colina da Providência”, “Pantomima”, “Acrimônia” e “Crisálida”.
* Por Guilherme Scalzili
Há viajantes que simplesmente detestam museus. Preferem mil vezes mastigar um bom cachorro-quente em qualquer esquina cheia de pombos a vagar por esses depósitos de velharias remotamente familiares. Custam a entrar, quase empurrados, xingando baixinho, e atravessam as galerias com olhares perdidos, procurando as saídas, acusando experiências terrivelmente enfadonhas. Outros não sofrem tanto. Sabem que estão lidando com um divertimento simpático porém traiçoeiro, sempre a minutos de tornar-se um martírio. Por isso encaram a visita com prudência: apreciam as obras mais famosas, comentam relíquias e até assimilam algumas informações, mas fogem antes do arrependimento.
Pois quem são aqueles vultos solitários, dispersos pelos cantos, imóveis e serenos, que chegam antes e vão embora depois da maioria? Estátuas vivas? Policiais à paisana? Vândalos preparando o ataque? Nada disso. Trata-se apenas de fanáticos por museu. Preferem passar seus dias imersos em edifícios silenciosos, alheios ao fervilhante cotidiano e às inúmeras atrações disponíveis lá fora. E não dão a mínima para o turismo ortodoxo. Sua seita exige que vivam reclusos no santuário, prostrados diante dos oráculos, à espera de revelações. Mártires abnegados, sofrem a incompreensão dos amigos, o escárnio dos cônjuges e o desprezo dos outros mortais. Injustiça. Apesar de esquisitos e teimosos como bestas, esses desocupados preservam um hábito instrutivo e bastante agradável.
Realmente, a prática resvala no escapismo. A organização e a cerimônia das galerias
guardam uma incorruptibilidade ausente do “mundo real”. Mas, convenhamos, refugiar-se dos percalços das grandes cidades e do arriscado envolvimento com culturas estranhas não constitui propriamente uma fobia (pedir um café em Praga, assim como escolher um bar em Amsterdã, é muito mais difícil do que parece). E não se trata de mero recolhimento físico. A fuga que os museus propiciam leva a lugares onde o tempo redunda irrelevante, onde o sublime e o reverente se conciliam, onde mistérios, delírios e paixões se realizam. Os sentidos aguçam, as memórias avivam, idéias rebentam, o inconsciente revolve e transforma-se. Melhor que terapia.
Para participar não precisa ser um fundamentalista como eu e chegar ao cúmulo de conservar até canhotos de bilhetes e recibos das lanchonetes. Mas a visita é uma viagem à parte e, como toda viagem, demanda planejamento. Sua duração pode variar de acordo com o cronograma, o humor das crianças, a vastidão do acervo e o grau de perseverança do viajante. Filas são obstáculos corriqueiros. Geralmente existe um limite para a presença de visitantes no interior dos museus, o que deixa a espera ainda mais torturante, pois depende da imponderável disposição dos privilegiados que acordaram mais cedo. Entrar na galeria Uffizi num belo dia de verão florentino custa a leitura de boa parte da Divina Comédia, sem contar o piquenique. De qualquer forma, o sacrifício é bem mais ameno que as batalhas campais na base da torre Eiffel.
Deve-se começar pela própria estrutura física do estabelecimento. Com o perdão dos puristas, não existe museu feio. Alguns estranham as pirâmides do Louvre, as tubulações do George Pompidou e as deformidades do Guggenheim de Bilbao, mas jamais passamos indiferentes a seu arrojo suntuoso. Pode-se dizer que o Belas Artes de Zurique, o Van Gogh de Amsterdã e o Malba de Bueno Aires são realizações austeras ou frias demais. É verdade, mas até na simplicidade geométrica pulsa uma superioridade estóica, de caixa-forte, que parece consciente de seu precioso recheio. As grandes coleções geralmente situam-se em edifícios de valor histórico proporcional. São, além de museus, também monumentos. É possível perder horas de estupefação diante do Kunsthistorisches de Viena, sentado nos maravilhosos jardins externos, se a neve permitir. E é perigoso ignorar as obras deste e de tantos outros palácios restaurados, sob o feitiço de suas inacreditáveis arquiteturas e luxuosas decorações.
Compreendo sinceramente os afoitos, mas lamento informar que em uma ou duas horas é impossível saborear qualquer acervo – talvez a simples tentativa de sair do Louvre demore mais do que isso. O colosso parisiense, aliás, é caso emblemático de museu-cidade, que precisa de meses, talvez anos, quiçá encarnações, para ser completamente decifrado (inútil tentar vencê-lo). Trata-se, portanto, de estabelecer prioridades. A melhor estratégia é imediatamente comprar um guia com mapa do local. Existem diversas versões, de panfletos gratuitos a livros belíssimos (e caros), verdadeiras peças de colecionador. Vale qualquer critério para escolher o melhor caminho. Começar pelo mais interessante evita a horrível frustração de sair sem ter conseguido encontrar aquela obra que motivou a visita ou mesmo toda a viagem. Já a seqüência cronológica proporciona uma inestimável jornada pela história das civilizações e ensina muito sobre a evolução do espírito artístico.
Mesmo que o atrativo da visita seja difuso e generalizado, convém manter certa regularidade nas paradas. A grande armadilha dos neófitos é o interesse por absolutamente tudo que aparecer. Isso vale especialmente para museus de acervo quase todo maravilhoso, como o indefectível Louvre, o Rijksmuseum de Amsterdã, a Galeria de Arte Moderna de Munique, o Belas Artes de Zurique, o Prado de Madri, a Uffizi e a Accademia de Florença. Os guias impressos também ajudam a descobrir raridades: perto da tábua de Hamurabi (Louvre), dentro de um mostruário, repousam inacreditáveis dados sumérios. Sim, pequeninos dados sumérios podem mudar uma vida.
Os limites humanos exigem certa precaução. Um grande museu significa razoável esforço aeróbico e muscular, não apenas pelas imensidões de corredores e pátios a serem percorridos, mas também por causa das vastas escadarias (as do Belas Artes de Budapeste são particularmente desumanas). Recomenda-se um leve alongamento, desde que realizado ainda no quarto do hotel, para evitar vexames. O vestuário deve ser condizente com o desafio físico. Volumes desnecessários, principalmente casacos, podem se transformar em monstruosidades insuportáveis.
É importante saber parar, espairecer, planejar os próximos movimentos. As solas dos pés agradecem. Mas o cansaço não é o único inimigo da concentração. Existem hordas de visitantes alucinados, cujo excursionismo ruidoso pode arruinar momentos sublimes. Em várias situações, será praticamente impossível evitá-los – por exemplo, nas esplendorosas salas de Rafael e na capela Sistina (Vaticano), diante da “Mona Lisa” (Louvre) ou dos impressionistas no d’Orsay (Paris). A aglomeração chega a atingir os limites da agressão física e certas algazarras podem levar ao choro convulsivo. Bons antídotos contra essas violências são o fone de ouvido e doses cavalares de paciência. Cabe atenção para não ignorar preciosidades menos célebres e ocultas pela multidão, como “A virgem e o menino com Santa Ana”, de Leonardo da Vinci (costuma ficar ao lado da Gioconda), e o “Calvário”, do russo Nikolay Gay, numa sombra remota do d’Orsay.
Um museu vive. Parte fundamental da visita consiste em sentar diante das galerias, analisando a fauna heterogênea, tentando adivinhar nacionalidades, ouvindo o suave tumulto de burburinhos, que pulsa como uma respiração feita de ecos. Personagens e eventos curiosos surgem por toda parte. Sempre há estudantes e jovens artistas copiando as obras-primas com esmero surpreendente. Em Viena, um senhor bastante idoso fotografava pacientemente cada tela do imenso acervo, com tripé e disparador, acompanhado por sua compenetrada esposa, que anotava os títulos. No Arsenal de Berlim (museu de história alemã), uma família inteira, filhos inclusos, chorava perante imagens de campos de concentração. Em plena ala Richelieu do Louvre (aposentos de Napoleão III), dois pontepretanos desconhecidos reconheceram-se pelas camisetas do time e trocaram saudações efusivas. Juro. Eu vi.
Evidentemente, algo imprescindível nessa vivência mágica é prostrar-se diante das obras, sem medo nem pressa. Entregar-se à hipnose. Flutuar sob os efeitos do realismo, das narrativas, dos detalhes. Sentir o sangue fluindo nas veias dos personagens de David. Ouvir o tumulto da “Escola de Atenas” (Vaticano) e o trovão da misteriosa tempestade de Giorgone (Accademia de Veneza). Intumescer os olhos com a serenidade de Hodler. Sorver os idílios de Botticelli, os enigmas resplandecentes de Klimt, o jogo de cores de Mondrian. Mas cuidado: os Bruegels de Viena podem sugá-lo direto ao século XVI e talvez não seja fácil voltar; alguns já saíram correndo da Pinacoteca de Munique depois que o Goethe de Stieler mandou-lhes uma piscadela.
Também é necessário aproximar-se, o máximo possível, até onde for permitido – na pior das hipóteses, soará uma campainha ou o sentinela carrancudo balbuciará qualquer coisa¬. Dar-se ao luxo de procurar as digitais dos grandes mestres, de distinguir os esboços originais sob as últimas camadas de tinta. Perceber que o leite entornado de Vermeer (Rijksmuseum) parece ainda mais real quando analisamos de muito perto suas pouquíssimas pinceladas. Mergulhar nos redemoinhos de borrões luminosos que originam as paisagens de Monet e os maremotos de Turner. Roçar a aspereza frenética mas inexplicavelmente precisa dos van Goghs. Constatar que os sombrios Caravaggios são realmente feitos de tinta e descobrir aquelas sutis fissuras do entalhe, comprovando que o Davi de Michelangelo (Accademia de Florença) não passa de um gigantesco bloco de mármore. E no entanto ele respira...
Tais epopéias não exigem profundas noções históricas ou estéticas, justamente porque os verdadeiros conhecimentos estão ali, entre os tesouros dos museus, e não nas fotografias redutoras dos livros. São banquetes permanentemente montados, abertos a todos que tenham apetite e paciência para saboreá-los. E coragem de sair à rua sob as vertigens do espírito saciado, num êxtase que custará a dissipar-se.
O único problema é que vicia.
Publicado na revista Viagem & Turismo, edição de julho de 2006
*Jornalista e escritor, autor dos livros “O colar da Carol ta na grama”, “A colina da Providência”, “Pantomima”, “Acrimônia” e “Crisálida”.
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