Amor no Ginásio Ipiranga
* Por Urariano Mota
Os professores do Ginásio Ipiranga costumavam dizer que o comportamento dos alunos mudava com as horas, do turno da manhã para o turno da tarde.
Diziam que os alunos à tarde ficavam incendiários. Outros, mais próximos da verdade, corrigiam esse juízo para dizer que os meninos e meninas ficavam incendiáveis, como folhas de papel seco. Se pudessem avaliar a natureza do dano, poderiam notar que o fogo naquelas cabecinhas há muito já prosperara. Fogo lento, de chama baixa que muda de cor acompanhando a mudança dos anos, de promoção nas séries, como se tivesse diante de si a combustão perene por toda a eternidade.
Dona Sara, uma senhora míope a ponto de ter duas faces, uma sem óculos e outra de impor medo, Dona Sara, a diretora do Ginásio, era prosaica. Orientava o nariz como um suporte de periscópio e considerava que o corpo discente assim se comportava porque pela manhã era mais infante e à tarde mais taludo. Os alunos vinham almoçados, mais descansados, às vezes até sonolentos ... perdia-se. Dona Sara e seu prosaísmo iam até o limite de fazer a distinção entre os dois turnos pela idade, ou pela faixa etária, como falava. A ameaça à estabilidade que os alunos vespertinos poderiam despertar era pura visão de corpos mais altos. Mas eram meninos, ponderava, crescidinhos por fora e bobinhos por dentro.
Os professores curvavam-se a esse nada esclarecedor argumento. Até mesmo porque no boletim que preenchiam, na coluna disciplina, eram os alunos da manhã que recebiam as notas baixas. De um ponto de vista claro, prático, objetivo, o turno da manhã era insubordinado, endiabrado, quase violento. Mas de um ponto de vista em sombras, sem alarde, furtivo, eram os alunos da tarde uns verdadeiros demônios.
Não fosse a disciplina, que no caso do Ginásio significava a repressão ao que em humanos, mesmo pequeninos, é da natureza, os professores notariam que o passar das horas apenas acentuava o lirismo da manhã, que à tarde se transformava em desejo.
O Ginásio Ipiranga não era aquele prédio do começo de 1900, que resistia na avenida à mudança de décadas, e crescera pela anexação de casinhas soltas, dispersas, no terreno dos fundos. Não era nem mesmo o currículo, aquilo que os pedagogos acham de fundamental e didática importância para o crescimento do indivíduo, como se o conhecimento fosse um prediozinho de quadrinhos verticalmente postos uns sobre os outros, até onde a saturação der, a saber, regras inflexíveis de escrever, esquisitas formas de contar, relatos de acontecimentos passados, decoração de nomes de estados e cidades, em apostilas de letrinhas azuis. Os educadores não percebiam que o Ginásio era a cuidada farda, um jeito de enfiar a camisa por dentro das calças, o cabelo repartido a um canto, a saia que subia misteriosamente um palmo, a franja, o perfume que aos adultos parecia apenas um sinal exterior de limpeza. O Ginásio era uma tímida e distante corte, ainda que os meninos se separassem, no recreio e na sala de aula, das meninas.
Crianças não namoram, brincam, afirmavam os adultos. Mas os adultos pensam que o poder da força, a autoridade sobre as crianças, é capaz de tornar diferente qualquer impulso vital dos meninos. Os adultos conceituam a infância com ameaça de castigo, de punição, e se dão por satisfeitos. Crianças ingênuas, doces, adultos sábios, azedos. E podem cuidar de coisas mais sérias. Mas a inocência não era a inocência.
Os alunos que adentravam o Ginásio Ipiranga mergulhavam num baile cujo intervalo eram as aulas. Os seus corpos acordavam repletos de energia, mas sem o ardor da tarde. Os seus corpos, na escola, estavam vestidos. Fardados. O ar moral, de catecismo, a competição estimulada dos mais e menos estudiosos, a que chamavam os mais e os menos inteligentes, canalizavam, como um desvio, o instinto, a sensibilidade dos meninos em regime de descoberta. Mas já formavam a sua sociedade secreta. Sem que se dissessem, sem acordo verbalizado, vinham cimentando a sua sociedade.
As aulas que começavam às oito da manhã eram antecipadas para o horário das sete. Um recreio prévio. Dispunham já, a partir das sete, a separação. Meninos para um lado, meninas para o outro. Eles se entreolhavam, mal se cumprimentavam. As meninas, em pequenas rodas, tomavam-se os pontos do dia, para a arguição. Telma dizia, em meio a uma distinção de memória, da apostila, sobre animais vertebrados e invertebrados, que Gilvan era bonitinho. Os risos corriam, contagiantes, a princípio baixinhos, como sussurro de ratinhos, e se alteavam. Gilvan, à distância, de olhos verdes, sentia-se alvo, mas nada comentava. O modelo de beleza, cultuado pelas meninas, eram os artistas de cinema, com trunfas e cabelos em brilhantina, descendo como pequenos e gentis tufos. Havia um código, de namoro não realizado, de flerte, imaginado, e alimentado. Gilvan não se podia destacar do meio dos meninos, onde era aceito. Teria sanções. Às meninas não se juntava, porque seria pouco viril. Sorria então, à distancia de uns onze metros.
As meninas, os meninos julgavam, eram belas porque eram belas. Aparentemente, as meninas eram belas pelo que lembravam de mulher, jovem, de mocinha, na graça e no apuro do vestir. Havia entre os meninos uma divisão de sexo e beleza, ou, se quiserem, uma divisão no corpo das mocinhas, da cintura para baixo, e do pescoço para cima. Sintomaticamente, naquela idade os seios não eram tão fundamentais. Sequer eram sonhados. Eram como um regalo extra, uma sirene que se acrescentava a um vistoso carrinho de corda. Da cintura para baixo chamava-se safadeza. Do pescoço para cima, namoro. A divisão abaixo da cintura reduzia-se a um triângulo, flamejante, que os meninos desenhavam, ou melhor, representavam como um objeto geométrico mesmo, com um vértice no umbigo e base sobre as coxas. A beleza, acima do pescoço, reduzia-se ao rosto, ou a um certo rosto, cujo modelo mais próximo, sequer desconfiado, era o das santas, das mártires da Igreja, das várias personificações do rosto da Virgem Maria, adoradas piamente em contrição. Os meninos se enamoravam de santas, fornicavam à imitação em cima de triângulos, e raramente saltavam esse desastroso equívoco, por força mesmo do isolamento entre seus iguais.
É claro que pela safadeza também se chegava ao namoro, ou a algo próximo dessa representação de amor mirim.
A safadeza no Ginásio tinha o nome de Isaurina. Ela não era bela. Na verdade, Isaurina era feia pelos padrões dos meninos e pelos padrões que vão dos esquimós aos trópicos. Isaurina era uma menina pálida, franzina, de pernas de garrancho, com sardas muito fora de propósito salpicando o rosto. Os cabelos eram rebeldes, derrubados numa franja cerrada, que se assemelhava ao luto que depois de séculos perdesse a cor. E que mais? Se nosso relato fosse uma caricatura, poderíamos doar a Isaurina uns óculos de lentes garrafais, que lhe escondessem os olhos. Mas o real basta: os olhos em Isaurina não eram sequer vistos, pela rejeição que causava seu rostinho de trapézio invertido. Mas Isaurina, apesar de toda feiúra de retrato 3 x 4, tinha luz. Na lembrança de todos os meninos que passaram pelo Ginásio Ipiranga, ela sempre está num dia de sol, pela manhã, passeando ao sol naquela saia de vermelho zarcão, blusa engomada, branca, inutilmente cobrindo-lhe o corpo, onde muitos imaginavam pontinhos de sardas, de que todos tinham fome.
Ela já representava a transição. Ela já estimulava a passagem dos meninos, de dez, onze anos, para o turno da tarde. Todos os meninos sabiam que Isaurina dava. O quê, ninguém sabia exatamente, com precisão o quê. Se beijos na boca, coisa nunca sentida, se se deixava penetrar nas nádegas, se retirava do corpo aquela farda e se deixava brincar naquele triângulo. Nas brincadeiras do recreio, a qualquer pretexto, numa rodada, a saia de Isaurina subia mais alto. E ninguém mais lhe via a feiúra, as pernas finas, garranchos, a franja enlutada. Ela era a carne. Magra, descorada, vital.
Os bilhetes choviam. Dizia-lhe Jorge, secretamente, sem fazer conhecimento nem aos amigos mais íntimos: “Isaurina, posso falar com você, de noite, na frente da Igreja? Responda Sim ou Não”. Dizia-lhe Gilvan, o galã da turma, e por isso muito à vontade para a mentira: “Isaurina, você é a menina mais bonita do Ginásio”. E continuava: “ Espero você no Cine Olímpia de seis e meia. Responda Sim ou Não. Gilvan”. O problema é que a ninguém Isaurina respondia. O único efeito dos bilhetes era uma piscada de olho ao remetente, que se sentia mais esperançoso, e com a chama e fome ativadas.
Sabia-se remotamente que um certo Agostinho, que ninguém conhecia, um dia tinha feito safadeza com Isaurina. Dessa coisa remota fazia-se uma porta, um céu aberto para todos os meninos, que se sentiam também no direito. Mas esse direito era uma coisa ideal. É bem possível que se Isaurina tivesse respondido afirmativamente a algum bilhete, e fosse ao encontro, com o objetivo da safadeza, um frio imenso teria corrido a espinha de qualquer menino. E ali mesmo a aventura chegaria ao fim. A safadeza,como projeto, era um crime planejado. Um passo grande demais. Ela, Isaurina, seria sempre a desejada. Coisa de pássaro na gaiola sonhando com o céu. Talvez ela própria se sentisse bem, gratificada, realizada dessa maneira. A sua safadeza eram os suspiros que os meninos lhe mandavam. A beleza de santa de Igreja, que não possuía, tão presente em Rute, Telma, em seus rostinhos finos, castos, delicados, autorizava em Isaurina a malícia, com acenos para um gozoso encantamento. Ela, à sua maneira, fazia-se namorada.
Os meninos da manhã diziam, repetindo o que ouviam dos meninos da tarde, que meninas como Telma, Rute, de tão lindas não depunham fezes. Meninas assim cagavam pudins. E sentindo-se mais altos pela repetição, entusiasmavam-se com o achado.
Foi então nessa arena que se avolumaram, cresceram e foram zombadas as sobrancelhas do rosto gordo de um menino da tarde. Em Daniel, como ainda o veremos. Por ora, apenas adiantamos.
Os meninos da tarde evitavam Daniel. Ao mesmo tempo sentiam-se atraídos. Porque Daniel era um rapazinho a quem uma expressão grosseira, ainda que espirituosa, deitava repugnância. Dizendo melhor, a linguagem chula que expressasse com eloquência uma situação íntima, fazia-o dar mostras escandalosas de repulsa. A obscenidade pura e simples ele desconhecia. Era como um Cristo, que andando sobre as águas desconhecesse que o terreno fosse liquido. À obscenidade que ele sentisse mais funda, ele reagia com gestos e caretas e falas de “cala essa boca”. No entanto, punha-se a escutá-la, atentamente, e levantava perguntas enojadas, que aprofundavam o obsceno. Pelos gestos ele mandava que parassem, pelo interesse ele mandava que fossem adiante. Calem essa boca e não parem, assim andavam juntas, paralelas, às vezes às cotoveladas, o seu pudor e a sua carência.
Apesar dos seus quinze anos, Daniel tinha defesas de um menino na primeira infância. Agindo sem hipocrisia era um desastre. Agindo com hipocrisia era ingênuo. Não que ele fosse um ser plano, estúpido, transparente. É que Daniel sofria de uma inadaptação básica, que a muitos parecia um retardamento: ele não sabia competir. Os jogos, a gramática, a aritmética, pareciam-lhe uma boa coisa até o ponto em que não fosse necessária uma aferição, uma medição com terceiros. Ele se negava à luta. Ora para não usar de meios inescrupulosos, ora para não ser magoado por um golpe baixo, Daniel não competia. Os professores do Ginásio, medindo-o pelas notas, e pelos risos que causava, diziam-no débil mental. É natural que em situações assim, a pessoa procure um refugio: Daniel lia dicionários. Ela era possuidor de um grandioso vocabulário. Mas como não tinha oportunidade de empregá-lo, ou quando o fazia, na turma, no recreio, tornava-se um marciano, ele fez das palavras uma coleção de animais galácticos, mortos, sem referência na terra, e terminou por ser, ao invés de um possuidor de vocábulos falados com propriedade, apenas um léxico de memória. O dono de um esperanto sem uso. E por acréscimo, era gordo.
Estavam portanto dadas as condições para que se apaixonasse perdida, louca e desastradamente por Iara..
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
* Por Urariano Mota
Os professores do Ginásio Ipiranga costumavam dizer que o comportamento dos alunos mudava com as horas, do turno da manhã para o turno da tarde.
Diziam que os alunos à tarde ficavam incendiários. Outros, mais próximos da verdade, corrigiam esse juízo para dizer que os meninos e meninas ficavam incendiáveis, como folhas de papel seco. Se pudessem avaliar a natureza do dano, poderiam notar que o fogo naquelas cabecinhas há muito já prosperara. Fogo lento, de chama baixa que muda de cor acompanhando a mudança dos anos, de promoção nas séries, como se tivesse diante de si a combustão perene por toda a eternidade.
Dona Sara, uma senhora míope a ponto de ter duas faces, uma sem óculos e outra de impor medo, Dona Sara, a diretora do Ginásio, era prosaica. Orientava o nariz como um suporte de periscópio e considerava que o corpo discente assim se comportava porque pela manhã era mais infante e à tarde mais taludo. Os alunos vinham almoçados, mais descansados, às vezes até sonolentos ... perdia-se. Dona Sara e seu prosaísmo iam até o limite de fazer a distinção entre os dois turnos pela idade, ou pela faixa etária, como falava. A ameaça à estabilidade que os alunos vespertinos poderiam despertar era pura visão de corpos mais altos. Mas eram meninos, ponderava, crescidinhos por fora e bobinhos por dentro.
Os professores curvavam-se a esse nada esclarecedor argumento. Até mesmo porque no boletim que preenchiam, na coluna disciplina, eram os alunos da manhã que recebiam as notas baixas. De um ponto de vista claro, prático, objetivo, o turno da manhã era insubordinado, endiabrado, quase violento. Mas de um ponto de vista em sombras, sem alarde, furtivo, eram os alunos da tarde uns verdadeiros demônios.
Não fosse a disciplina, que no caso do Ginásio significava a repressão ao que em humanos, mesmo pequeninos, é da natureza, os professores notariam que o passar das horas apenas acentuava o lirismo da manhã, que à tarde se transformava em desejo.
O Ginásio Ipiranga não era aquele prédio do começo de 1900, que resistia na avenida à mudança de décadas, e crescera pela anexação de casinhas soltas, dispersas, no terreno dos fundos. Não era nem mesmo o currículo, aquilo que os pedagogos acham de fundamental e didática importância para o crescimento do indivíduo, como se o conhecimento fosse um prediozinho de quadrinhos verticalmente postos uns sobre os outros, até onde a saturação der, a saber, regras inflexíveis de escrever, esquisitas formas de contar, relatos de acontecimentos passados, decoração de nomes de estados e cidades, em apostilas de letrinhas azuis. Os educadores não percebiam que o Ginásio era a cuidada farda, um jeito de enfiar a camisa por dentro das calças, o cabelo repartido a um canto, a saia que subia misteriosamente um palmo, a franja, o perfume que aos adultos parecia apenas um sinal exterior de limpeza. O Ginásio era uma tímida e distante corte, ainda que os meninos se separassem, no recreio e na sala de aula, das meninas.
Crianças não namoram, brincam, afirmavam os adultos. Mas os adultos pensam que o poder da força, a autoridade sobre as crianças, é capaz de tornar diferente qualquer impulso vital dos meninos. Os adultos conceituam a infância com ameaça de castigo, de punição, e se dão por satisfeitos. Crianças ingênuas, doces, adultos sábios, azedos. E podem cuidar de coisas mais sérias. Mas a inocência não era a inocência.
Os alunos que adentravam o Ginásio Ipiranga mergulhavam num baile cujo intervalo eram as aulas. Os seus corpos acordavam repletos de energia, mas sem o ardor da tarde. Os seus corpos, na escola, estavam vestidos. Fardados. O ar moral, de catecismo, a competição estimulada dos mais e menos estudiosos, a que chamavam os mais e os menos inteligentes, canalizavam, como um desvio, o instinto, a sensibilidade dos meninos em regime de descoberta. Mas já formavam a sua sociedade secreta. Sem que se dissessem, sem acordo verbalizado, vinham cimentando a sua sociedade.
As aulas que começavam às oito da manhã eram antecipadas para o horário das sete. Um recreio prévio. Dispunham já, a partir das sete, a separação. Meninos para um lado, meninas para o outro. Eles se entreolhavam, mal se cumprimentavam. As meninas, em pequenas rodas, tomavam-se os pontos do dia, para a arguição. Telma dizia, em meio a uma distinção de memória, da apostila, sobre animais vertebrados e invertebrados, que Gilvan era bonitinho. Os risos corriam, contagiantes, a princípio baixinhos, como sussurro de ratinhos, e se alteavam. Gilvan, à distância, de olhos verdes, sentia-se alvo, mas nada comentava. O modelo de beleza, cultuado pelas meninas, eram os artistas de cinema, com trunfas e cabelos em brilhantina, descendo como pequenos e gentis tufos. Havia um código, de namoro não realizado, de flerte, imaginado, e alimentado. Gilvan não se podia destacar do meio dos meninos, onde era aceito. Teria sanções. Às meninas não se juntava, porque seria pouco viril. Sorria então, à distancia de uns onze metros.
As meninas, os meninos julgavam, eram belas porque eram belas. Aparentemente, as meninas eram belas pelo que lembravam de mulher, jovem, de mocinha, na graça e no apuro do vestir. Havia entre os meninos uma divisão de sexo e beleza, ou, se quiserem, uma divisão no corpo das mocinhas, da cintura para baixo, e do pescoço para cima. Sintomaticamente, naquela idade os seios não eram tão fundamentais. Sequer eram sonhados. Eram como um regalo extra, uma sirene que se acrescentava a um vistoso carrinho de corda. Da cintura para baixo chamava-se safadeza. Do pescoço para cima, namoro. A divisão abaixo da cintura reduzia-se a um triângulo, flamejante, que os meninos desenhavam, ou melhor, representavam como um objeto geométrico mesmo, com um vértice no umbigo e base sobre as coxas. A beleza, acima do pescoço, reduzia-se ao rosto, ou a um certo rosto, cujo modelo mais próximo, sequer desconfiado, era o das santas, das mártires da Igreja, das várias personificações do rosto da Virgem Maria, adoradas piamente em contrição. Os meninos se enamoravam de santas, fornicavam à imitação em cima de triângulos, e raramente saltavam esse desastroso equívoco, por força mesmo do isolamento entre seus iguais.
É claro que pela safadeza também se chegava ao namoro, ou a algo próximo dessa representação de amor mirim.
A safadeza no Ginásio tinha o nome de Isaurina. Ela não era bela. Na verdade, Isaurina era feia pelos padrões dos meninos e pelos padrões que vão dos esquimós aos trópicos. Isaurina era uma menina pálida, franzina, de pernas de garrancho, com sardas muito fora de propósito salpicando o rosto. Os cabelos eram rebeldes, derrubados numa franja cerrada, que se assemelhava ao luto que depois de séculos perdesse a cor. E que mais? Se nosso relato fosse uma caricatura, poderíamos doar a Isaurina uns óculos de lentes garrafais, que lhe escondessem os olhos. Mas o real basta: os olhos em Isaurina não eram sequer vistos, pela rejeição que causava seu rostinho de trapézio invertido. Mas Isaurina, apesar de toda feiúra de retrato 3 x 4, tinha luz. Na lembrança de todos os meninos que passaram pelo Ginásio Ipiranga, ela sempre está num dia de sol, pela manhã, passeando ao sol naquela saia de vermelho zarcão, blusa engomada, branca, inutilmente cobrindo-lhe o corpo, onde muitos imaginavam pontinhos de sardas, de que todos tinham fome.
Ela já representava a transição. Ela já estimulava a passagem dos meninos, de dez, onze anos, para o turno da tarde. Todos os meninos sabiam que Isaurina dava. O quê, ninguém sabia exatamente, com precisão o quê. Se beijos na boca, coisa nunca sentida, se se deixava penetrar nas nádegas, se retirava do corpo aquela farda e se deixava brincar naquele triângulo. Nas brincadeiras do recreio, a qualquer pretexto, numa rodada, a saia de Isaurina subia mais alto. E ninguém mais lhe via a feiúra, as pernas finas, garranchos, a franja enlutada. Ela era a carne. Magra, descorada, vital.
Os bilhetes choviam. Dizia-lhe Jorge, secretamente, sem fazer conhecimento nem aos amigos mais íntimos: “Isaurina, posso falar com você, de noite, na frente da Igreja? Responda Sim ou Não”. Dizia-lhe Gilvan, o galã da turma, e por isso muito à vontade para a mentira: “Isaurina, você é a menina mais bonita do Ginásio”. E continuava: “ Espero você no Cine Olímpia de seis e meia. Responda Sim ou Não. Gilvan”. O problema é que a ninguém Isaurina respondia. O único efeito dos bilhetes era uma piscada de olho ao remetente, que se sentia mais esperançoso, e com a chama e fome ativadas.
Sabia-se remotamente que um certo Agostinho, que ninguém conhecia, um dia tinha feito safadeza com Isaurina. Dessa coisa remota fazia-se uma porta, um céu aberto para todos os meninos, que se sentiam também no direito. Mas esse direito era uma coisa ideal. É bem possível que se Isaurina tivesse respondido afirmativamente a algum bilhete, e fosse ao encontro, com o objetivo da safadeza, um frio imenso teria corrido a espinha de qualquer menino. E ali mesmo a aventura chegaria ao fim. A safadeza,como projeto, era um crime planejado. Um passo grande demais. Ela, Isaurina, seria sempre a desejada. Coisa de pássaro na gaiola sonhando com o céu. Talvez ela própria se sentisse bem, gratificada, realizada dessa maneira. A sua safadeza eram os suspiros que os meninos lhe mandavam. A beleza de santa de Igreja, que não possuía, tão presente em Rute, Telma, em seus rostinhos finos, castos, delicados, autorizava em Isaurina a malícia, com acenos para um gozoso encantamento. Ela, à sua maneira, fazia-se namorada.
Os meninos da manhã diziam, repetindo o que ouviam dos meninos da tarde, que meninas como Telma, Rute, de tão lindas não depunham fezes. Meninas assim cagavam pudins. E sentindo-se mais altos pela repetição, entusiasmavam-se com o achado.
Foi então nessa arena que se avolumaram, cresceram e foram zombadas as sobrancelhas do rosto gordo de um menino da tarde. Em Daniel, como ainda o veremos. Por ora, apenas adiantamos.
Os meninos da tarde evitavam Daniel. Ao mesmo tempo sentiam-se atraídos. Porque Daniel era um rapazinho a quem uma expressão grosseira, ainda que espirituosa, deitava repugnância. Dizendo melhor, a linguagem chula que expressasse com eloquência uma situação íntima, fazia-o dar mostras escandalosas de repulsa. A obscenidade pura e simples ele desconhecia. Era como um Cristo, que andando sobre as águas desconhecesse que o terreno fosse liquido. À obscenidade que ele sentisse mais funda, ele reagia com gestos e caretas e falas de “cala essa boca”. No entanto, punha-se a escutá-la, atentamente, e levantava perguntas enojadas, que aprofundavam o obsceno. Pelos gestos ele mandava que parassem, pelo interesse ele mandava que fossem adiante. Calem essa boca e não parem, assim andavam juntas, paralelas, às vezes às cotoveladas, o seu pudor e a sua carência.
Apesar dos seus quinze anos, Daniel tinha defesas de um menino na primeira infância. Agindo sem hipocrisia era um desastre. Agindo com hipocrisia era ingênuo. Não que ele fosse um ser plano, estúpido, transparente. É que Daniel sofria de uma inadaptação básica, que a muitos parecia um retardamento: ele não sabia competir. Os jogos, a gramática, a aritmética, pareciam-lhe uma boa coisa até o ponto em que não fosse necessária uma aferição, uma medição com terceiros. Ele se negava à luta. Ora para não usar de meios inescrupulosos, ora para não ser magoado por um golpe baixo, Daniel não competia. Os professores do Ginásio, medindo-o pelas notas, e pelos risos que causava, diziam-no débil mental. É natural que em situações assim, a pessoa procure um refugio: Daniel lia dicionários. Ela era possuidor de um grandioso vocabulário. Mas como não tinha oportunidade de empregá-lo, ou quando o fazia, na turma, no recreio, tornava-se um marciano, ele fez das palavras uma coleção de animais galácticos, mortos, sem referência na terra, e terminou por ser, ao invés de um possuidor de vocábulos falados com propriedade, apenas um léxico de memória. O dono de um esperanto sem uso. E por acréscimo, era gordo.
Estavam portanto dadas as condições para que se apaixonasse perdida, louca e desastradamente por Iara..
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
O passeio pelo ginásio carregou-me nos braços para o meu passado escolar, com direito a alguns sorrisos. Isaurina é uma menina plena que sabe seduzir pela promessa e Daniel, o menino obeso das sobrancelhas esvoaçantes, já nos foi apresentando aqui. Num ímpeto raspou a sua marca registrada. Lembro-me.Perdeu quem não leu.
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