Lá se foi o seu Chico
* Por Elaine Tavares
A tarde era de sol e abafada. Um dia triste. Encantava aquele que acordou o Campeche nos anos 80, para a alegria, para a política, para vida. Seu Chico. A praia era raiz, tinha pouco rauli e o que era um rancho de pesca virou um bar. Lugar de acolhimento, de sombra, de água fresca e de histórias. Quando ninguém na cidade abrigava o povo da esquerda era ali que se faziam reuniões e festas. Ali se conspirava e sonhava.
A figura simples e direta do Seu Chico atuava como um regaço, onde as gentes que faziam a luta podiam descansar. Chico era homem do mar, lançava o barco, puxava a rede, trazia o peixe. Foi assim que, junto com Eva, criou 16 filhos. E os criou gente de bem, de responsabilidade, de valentia. Um bom exemplo é o Lázaro, que até vereador foi, e como incomodou os poderosos. Deles vieram netos, bisnetos e tataranetos.
Chico amava o mar do Campeche, as dunas, a restinga. Era deles seu primeiro sorriso, a cada manhã, quando vinha tomar o banho gelado que lhe dava vigor e saúde. Chico era doce como mel e seu sorriso derretia qualquer coração. Não tinham maiores ambições que a de criar os filhos, encaminhá-los e ficar ali, na beira do mar, vendo a vida passar. Não foi sem razão que o pequeno cemitério do Campeche ficou repleto para a despedida.
Chico encantou na tarde do dia 20 de dezembro depois de alguns dias lutando no hospital. O velho pescador tinha um câncer, mas, com certeza, a tristeza de ver o seu bar derrubado pelas máquinas da prefeitura lhe entristeceu demais os últimos dias. O bar era o seu mirante para o mar, lugar que não mais dominava no remo e na rede. O bar era seu refúgio.
Não era dinheiro o que buscava ali. Tanto que a construção era simples, de madeira velha, bem raiz, como cabia ao Campeche. Não era um projeto capitalista. Era um espaço de aconchego e partilha. Ali se festejavam os carnavais, o natal, o ano-novo, os aniversários, qualquer coisa que alguém quisesse. Ainda assim as máquinas vieram...
As máquinas que nunca derrubaram a casa do Guga, nas dunas, nem o Costão do Santinho, onde veraneiam os ricos, ou os hotéis de luxo nas restingas. Não, apenas o bar do Chico era “ilegal”. Espaço histórico da comunidade: ilegal. Veio abaixo. Por birra, por vingança. No seu lugar tentaram erguer o deck de um condomínio. O povo revoltou: botou abaixo. Ainda assim, o bar do Chico não voltou e ele ficou mais triste.
Hoje, o dia abafado deu lugar à brisa suave, que começou a soprar na hora em que o frágil corpo do Chico descansava na beira do mar. Havia um cheiro de maresia, grito de pássaros e aquela aragem boa. A natureza oferecia o que de melhor tem para receber o amigo de tantos anos. O padre Vilson fez a missa, amarrou as palavras. A família se despediu, sem desespero, porque aquela era uma vida que tinha se cumprido em plenitude. Chico fez sua história, virou história. Morto que não morre, figura imortal. Como bem lembrou o Ataíde, surfista das antigas, em cada entardecer ainda se ouvirão as palavras do velho pescador a dizer: “ rapaze, rapaze, sai da água”.
Com o encantamento do seu Chico, o Campeche também encerra um ciclo. Hoje, o lugar bucólico onde ele fincou o seu bar já está invadido por condomínios, asfalto, grandes empreendimentos. Há luta, mas as máquinas parecem mais fortes. Resta aos novos moradores - nativos ou não – decidirem o que querem para suas vidas. Um lugar sem alma, sem identidade, poluído e intransitável ou um bairro jardim, de casas baixas, com cachorros, gatos e passarinhos, onde as pessoas se conhecem e se amparam?
Muito já foi destruído, mas ainda há tempo de parar. No silêncio da noite que se aproximava, parada na beira do mar, eu pedi ao meu deusinho que recebesse o seu Chico nos braços e que olhasse por nós aqui embaixo, no meio de tantos vilões, pelos quais, como ensinava Cruz e Souza, temos de ter ódio, ódio são, ódio que move. Na imensidão do céu do Campeche se foi o seu Chico, remando a canoa invisível. Vai em paz. companheiro, que aqui a gente continua. Tu cumpriste teu destino e o fizestes bem.
• Jornalista de Florianópolis/SC
* Por Elaine Tavares
A tarde era de sol e abafada. Um dia triste. Encantava aquele que acordou o Campeche nos anos 80, para a alegria, para a política, para vida. Seu Chico. A praia era raiz, tinha pouco rauli e o que era um rancho de pesca virou um bar. Lugar de acolhimento, de sombra, de água fresca e de histórias. Quando ninguém na cidade abrigava o povo da esquerda era ali que se faziam reuniões e festas. Ali se conspirava e sonhava.
A figura simples e direta do Seu Chico atuava como um regaço, onde as gentes que faziam a luta podiam descansar. Chico era homem do mar, lançava o barco, puxava a rede, trazia o peixe. Foi assim que, junto com Eva, criou 16 filhos. E os criou gente de bem, de responsabilidade, de valentia. Um bom exemplo é o Lázaro, que até vereador foi, e como incomodou os poderosos. Deles vieram netos, bisnetos e tataranetos.
Chico amava o mar do Campeche, as dunas, a restinga. Era deles seu primeiro sorriso, a cada manhã, quando vinha tomar o banho gelado que lhe dava vigor e saúde. Chico era doce como mel e seu sorriso derretia qualquer coração. Não tinham maiores ambições que a de criar os filhos, encaminhá-los e ficar ali, na beira do mar, vendo a vida passar. Não foi sem razão que o pequeno cemitério do Campeche ficou repleto para a despedida.
Chico encantou na tarde do dia 20 de dezembro depois de alguns dias lutando no hospital. O velho pescador tinha um câncer, mas, com certeza, a tristeza de ver o seu bar derrubado pelas máquinas da prefeitura lhe entristeceu demais os últimos dias. O bar era o seu mirante para o mar, lugar que não mais dominava no remo e na rede. O bar era seu refúgio.
Não era dinheiro o que buscava ali. Tanto que a construção era simples, de madeira velha, bem raiz, como cabia ao Campeche. Não era um projeto capitalista. Era um espaço de aconchego e partilha. Ali se festejavam os carnavais, o natal, o ano-novo, os aniversários, qualquer coisa que alguém quisesse. Ainda assim as máquinas vieram...
As máquinas que nunca derrubaram a casa do Guga, nas dunas, nem o Costão do Santinho, onde veraneiam os ricos, ou os hotéis de luxo nas restingas. Não, apenas o bar do Chico era “ilegal”. Espaço histórico da comunidade: ilegal. Veio abaixo. Por birra, por vingança. No seu lugar tentaram erguer o deck de um condomínio. O povo revoltou: botou abaixo. Ainda assim, o bar do Chico não voltou e ele ficou mais triste.
Hoje, o dia abafado deu lugar à brisa suave, que começou a soprar na hora em que o frágil corpo do Chico descansava na beira do mar. Havia um cheiro de maresia, grito de pássaros e aquela aragem boa. A natureza oferecia o que de melhor tem para receber o amigo de tantos anos. O padre Vilson fez a missa, amarrou as palavras. A família se despediu, sem desespero, porque aquela era uma vida que tinha se cumprido em plenitude. Chico fez sua história, virou história. Morto que não morre, figura imortal. Como bem lembrou o Ataíde, surfista das antigas, em cada entardecer ainda se ouvirão as palavras do velho pescador a dizer: “ rapaze, rapaze, sai da água”.
Com o encantamento do seu Chico, o Campeche também encerra um ciclo. Hoje, o lugar bucólico onde ele fincou o seu bar já está invadido por condomínios, asfalto, grandes empreendimentos. Há luta, mas as máquinas parecem mais fortes. Resta aos novos moradores - nativos ou não – decidirem o que querem para suas vidas. Um lugar sem alma, sem identidade, poluído e intransitável ou um bairro jardim, de casas baixas, com cachorros, gatos e passarinhos, onde as pessoas se conhecem e se amparam?
Muito já foi destruído, mas ainda há tempo de parar. No silêncio da noite que se aproximava, parada na beira do mar, eu pedi ao meu deusinho que recebesse o seu Chico nos braços e que olhasse por nós aqui embaixo, no meio de tantos vilões, pelos quais, como ensinava Cruz e Souza, temos de ter ódio, ódio são, ódio que move. Na imensidão do céu do Campeche se foi o seu Chico, remando a canoa invisível. Vai em paz. companheiro, que aqui a gente continua. Tu cumpriste teu destino e o fizestes bem.
• Jornalista de Florianópolis/SC
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