domingo, 18 de dezembro de 2011







Duas digressões

* Por Sergio Vilas Boas


No primeiro dos nossos melhores dias, amanhecemos juntos em geografias e fusos-horários diferentes. Trazíamos nos ombros as culpas e as manias dos casamentos em curso. Sonos frágeis, enxergáramos a madrugada anterior várias vezes por uma greta logo depois do amanhecer. E planos adiados há séculos: café da manhã no Richard’s talvez com brioches e geléias de cores exóticas; toalha para deitarmos na grama orvalhada do Ibirapuera enquanto nossos chefes se descabelavam de raiva; um livro sobre a sabedoria dos índios norte-americanos – As Cartas do Caminho Sagrado. Claro, levamos as cartas também; e versos de Carpinejar salteados; e nossas melhores roupas para uma manhã nevoenta, turva, nem fria nem quente. Fáceis de tirar, se for o caso. Quarta-feira? Sim. Outono. Os sonhos assaltaram nossa realidade às nove em ponto. Nossos beijos simplesmente não tinham um fim, tampouco um começo”.
(Trecho de minha digressão sobre o florescer interior).

“Mas entro em casa sem grandes vontades após entrevistas de emprego inúteis. Isadora estava na cozinha, por acaso. Se fosse anos antes, ela viria até a saleta e me perguntaria, ansiosa: E então? E então, nada. Mas ela não me pergunta mais coisa alguma. Entre me olhar no espelho e enfrentar a dissolução, puxo a cadeira e retomo a tal carta que até hoje não consegui terminar. Imperioso escrevê-la antes que Isadora a escreva. Ah, um brinde às melhores últimas horas de nossas vidas! As frustrações e o desemprego me deixaram assim: meio ácido. Até porque era tarde demais. Os apontamentos ficariam guardados na gaveta tanto tempo que o clipe deixaria uma feia mancha ferruginosa na primeira e na última página. Por que não nos falamos? Agora que a perdi definitivamente, sinto-me seguro de que, naquela manhã de quarta-feira, no Ibirapuera, nossos beijos emendados continham sim um fim”.
(Trecho de digressão sobre o adeus – neste caso, parte importante, infelizmente, da digressão sobre o florescer interior).

* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis” (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.

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