domingo, 18 de dezembro de 2011







De novo, Anunciato...

* Por Lêda Selma

Anunciato, o mensageiro-mor das notícias indesejadas e especialista na arte de “encurtar a distância com o primeiro atalho”. Sim, aquele que, incumbido de comunicar a certa mulher o falecimento do marido, chegou, tocou a campainha e foi logo “desembrulhando a incumbência”: – A senhora é a viúva do Zequinha Amado? –. Naturalmente, desentendida e alarmada, a mulher disse “Não!”. E ele: – Não? Hum... Quer apostar?!
Pois bem, Anunciato, com aquele seu jeito mal-ajambrado, olhar faiscante e nenhum riso atrás do humor desajeitado, não se constrangia em carregar as “malfeitanças da vida” e entregá-las, fresquinhas e de supetão, a quem de direito ou de merecimento.
Também foi assim com o velho Leocárdio, homem solitário, carente de posses e plantador de milho. Bem cedinho, e já na lida, foi abordado por Anunciato: – Olá, velho madrugador! –. Recebido com um alegre “Bom-dia!”, o desapiedado transportador das funestas notícias retrucou num fôlego só: – Eu ouvi “bom-dia!”? Se eu fosse o amigo, desaceleraria esse tom alegre e tamanha empolgação... A propósito, ao sair de casa, hoje de madrugadinha, a tal ainda estava de pé? Pois esse é o problema: não está mais... Por obra e culpa de um incêndio besta, a pobrezinha arriou... Foi-se, mas sossegue, ela deixou vestígios.
Por tudo isso e muito mais, Anunciato recebeu vários epítetos: “Reencarnação do azucrim”, “Possuído das trevas”, “Mensageiro dos infernos”... Mas nunca se abalou com isso, convencido de que simplesmente cumpria o que sua lúgubre sina lhe determinava. E sempre com a mesma justificativa: “O pior é o acontecido e não, o repassado. E o melhor é engolir tudo de uma só vez do que ficar engasgado”. E, enquanto filosofava com certo deboche, esperava a chegada do imprevisível para, de novo, entregá-lo a seu destinatário.
Anunciato tinha lá seus vícios. Chegadinho numa água que mandacuru abençoa, ou seja, a famosa cachaça, Anunciato também se afeiçoou ao jogo, de forma perigosa. Jogava tudo e de tudo, tanto na calada das noites, quanto na barulhada dos dias. O importante era jogar e, se possível, maquiavelar estratégias para encher os próprios bolsos e os de seus parceiros; naturalmente, um ato “patriótico”, ora! E o Brasil deveria orgulhar-se disso, apregoava, afinal, “encher os bolsos é um jogo que sempre anda muito em voga cá e acolá”, era seu mais consistente argumento.
Todavia, é sabido que, nem sempre, o mar, ou melhor, a mesa está para jogo. E nunca é demais saber: um dia é do vivaldino e o outro, do destino. E Anunciato, como todo jogador, foi surpreendido, certo dia, em altíssimo tom, para alegria de muitos. Uma surpresa e tanto, daquelas de despachar qualquer um, às pressas, para os domínios de pra lá de bem depois, vulgo, além. Qualquer um...? Não Anunciato.
Mesmo perdido quase tudo o que tinha, o que não tinha e o que pretendia ter – ficou mais liso que búndegas de recém-nascido –, ainda se valeu do curinga saído de um de seus esconderijos, tão logo o ganhador concedeu-lhe um prazo para a quitação, apesar da exigência de um imóvel para salvaguardar a dívida.
Anunciato não se fez de pressionado. Prontamente, acedeu à exigência de seu credor, porém, com uma ressalva: que não fosse a casa onde residi, há mais de sessenta anos, herança paterna de valor afetivo inavaliável. Hipotecaria outro imóvel, de valor apenas pecuniário, situado em avenida tranquila, arborizada e de fácil acesso. Congestionamento? Só de pedestres, às vezes. Assim, acertaram o dia e o horário em que iriam ao cartório efetivar a transação. E foram..
Dois dias após o encontro – malfadado encontro, frise-se –, Anunciato acordou com o corpo ainda bastante dolorido e a cabeça bem confusa. Três espreguiçadas e algumas bocejadas depois, heurecou: o motivo de toda aquela estropiação corporal, umas coronhadas generalizadas, por obra e desgraça do tal credor. O homem, furioso, coronhou a cabeça, adjacências e periferias do agourento devedor, ao descobrir o tipo e a localização do imóvel que lhe foi dado como pagamento da dívida: um jazigo, com três hóspedes, no cemitério local.

• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”, “Erro Médico”, “A dor da gente”, “Pois é filho”, “Fuligens do sonho”, “Migrações das Horas”, “Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não!”, entre outros.

Um comentário: