sábado, 31 de dezembro de 2011







Chegando a Iquique

* Por Urda Alice Klueger

(Excerto do livro "Viagem ao Umbigo do Mundo", publicado em 2006)


Então, 10 quilômetros antes de chegarmos à cidade seguinte, estava lá a garrafa de Coca-Cola.

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Num país como aquele, de leveza, beleza, colorido e mistérios, acho que fica bastante complicado para o Capital mostrar quem é que manda (ou pensa que manda). Assim, 10 quilômetros antes de cada cidade chilena, pelo menos na parte que conheci, o Capital tem que botar a sua marca, tão forte como um cachorro que demarca seu território em todos os postes do entorno. Então, 10 quilômetros antes há uma grande, enorme garrafa de Coca-Cola, creio que de uns 10 metros de altura, com uma placa indicando: “Cidade tal – 10 km”. Dessa vez a cidade era Iquique, e a marca estava ali entre o mar e o deserto bem como tinham estado os mistérios. Bem como o cachorro e o poste.
Passou a haver alguns vestígios de que haveria uma cidade: alguém andava fazendo tentativas de fazer viver no deserto uns pobre fiapos verdes que talvez um dia se tornassem árvores. Alguém construíra ... UM CAMPO DE GOLFE na areia colorida e revolta do deserto – quem seriam os fanáticos por golfe que jogariam naquele lugar? Aquilo era muito estranho para mim – na minha cabeça, campos de golfe eram sempre feitos de grama verdinha e bem aparada.
Para quem anda a 110 km/h, os 10 km que faltavam para Iquique passaram num instante, e daí a pouquinho estacionávamos em luxuoso posto de gasolina onde harleyros chilenos já nos esperavam, naquela cidade balneária tão bonita, cercada por detrás por uma duna tão imensa que se pode pular de asa delta do alto dela. Se um dia aquela duna começar a se mexer, penso que Iquique sumirá do mapa rapidamente, apesar de ser uma cidade bastante grande. Quem nos esperava era o harleyro Francisco Martinic com sua esposa e mais outro companheiro, e eles nos prestaram diversos serviços, como fazer uma revisão geral no Land-Rover, por exemplo, além de já ter providenciado reservas de hotel para nós, etc. .
Diria que os donos de Harley-Davidson funcionam como uma confraria, e se um harleyro ou um grupo deles passa por uma cidade ou país onde há outro ou outros harleyros, aqueles fazem tudo para facilitar a vida do viajante. Assim, quando fomos recebidos naquele posto de gasolina por Francisco Martinic e sua gente, diversas necessidades já haviam sido aplainadas para nós. Tudo estava tão bem programado que não tínhamos nada com que nos preocupar. Como ainda era um pouco cedo, e só dali a umas duas horas poderíamos nos apossar dos nossos aposentos no hotel próximo, simplesmente fomos passear. Deixamos as motos num estacionamento e combinamos nos encontrarmos todos, de novo, na hora tal, no lugar tal. E cada um tomou seu rumo, quer dizer, não foi bem assim. Eu tomei meu rumo, mas pelo que soube depois, todos os outros companheiros foram juntos para um shopping-center, e depois fiquei um tanto quanto escandalizada ao saber que os meus amigos tinham ido a Iquique nas garras do consumismo, e no shopping-center haviam comprado coisas que poderiam ter comprado sem problemas no Brasil, como botas e jaquetas. Estaria errada eu ou estariam errados eles? Está aí uma coisa para você decidir, pois quem sou eu, também, para dizer o que os amigos devem fazer? O fato é que dei uma espiada no shopping-center e vi que ele era igualzinho a qualquer outro no mundo, e então retrocedi rápido, fui à vida, fui espiar uma manifestação que estava acontecendo na rua principal, por causa de uma greve de funcionários públicos. Fiquei um bocado de tempo ali, vendo as pessoas e ouvindo os discursos e as palavras de ordem, e entendi que as gentes chilenas eram bastante parecidas com as gentes brasileiras, quando se tratava de tais coisas.
Procurei saber mais, então: havia um museu de Arqueologia naquela cidade? Poxa, se havia, e era até bem perto! Em pleno centro da cidade havia toda uma região que era como uma viagem ao passado, conservada como deve ter sido, talvez, no século XIX ou começo do século XX, com lindas casas perfeitamente conservadas, separadas umas das outras por largos espaços que sugerem que um dia foram jardins, e calçadas e calçamento que também devem ser originais dos tempos das casas – é um visual muito lindo e romântico, e naquela região há uma comprida feira de artesanato ao longo da rua. O museu que eu procurava era um pouco mais adiante.
Uau, que museu! Era dirigido por um padre arqueólogo, com quem conversei um pouquinho, mas que estava muito ocupado. O padre organizara a história daquele oásis habitado há milhares de anos em forma de cenários que se auto-explicavam, e eu não queria mais sair de lá! Só que não podia ficar sempre – havia o encontro com os companheiros, e o meu tempo já estava curto.
Registro que quando nos reencontramos os companheiros estavam preocupados comigo, achando que eu talvez houvesse me perdido. Nossos elos aumentavam, o espírito de família que acabaríamos formando se acentuava. Os seres humanos são solidários.
Hospedamo-nos num lindo hotel que ficava de frente para uma linda praia, com direito a todas à muitas mordomias, inclusive Internet livre, etc. Em pouco tempo eu verificava a minha caixa-postal e escrevia o diário que mandava para o Brasil, e vi-me sem ter o que fazer. Estava num enorme e agradabilíssimo apartamento muito bem bem decorado em cores claras, numa imensa cama onde caberiam umas cinco pessoas, sozinha e isolada como a gente costuma ficar em hotéis. Quando viajo do meu jeito costumo ficar em Albergues da Juventude, onde as amizades acontecem rápida e facilmente, mas aos meus companheiros agradava mais os hotéis. Li um pouquinho de um livro de Teoria Política que levara junto, mas não estava me concentrando. Então fui até os amplos janelões e fiquei a observar o mar, aquela praia rara na costa do norte do Chile, e por fim voltei à Internet. Passei uma mensagem para meu sobrinho que vive em Joanesburgo, África do Sul: “Mteka, entra na página do Hotel Holiday Inn e procura o hotel de Iquique, Chile. No quarto andar, numa das janelas, a tua tia está te abanando.” Coisas que a gente inventa quando não tem o que fazer.

• Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR.

Um comentário:

  1. Saborear o Chile pelo seu relato traz um grande prazer. Caso tivesse a sua coragem, iria lá algum dia.

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