terça-feira, 27 de dezembro de 2011



Um berço de escritores

* Por José Ribamar Bessa Freire

Numa rádio qualquer Simone canta pegajosamente “Então é Natal, e o que você fez?”. É ao som dessa música que, desesperada, uma jovem mãe arranca o fio pisca-pisca da árvore e, com ele, enforca o próprio filho aleijado, de menos de um ano, sob o olhar de um risonho Papai Noel que adorna o quarto do Abrigo Moacyr Alves no bairro Alvorada I, em Manaus. A mãe é ainda uma menina, iniciando sua adolescência.
Não, senhores! Nem tudo está perdido! De vez em quando faíscas riscam os céus e anunciam que outro mundo é possível, renovando nossas esperanças. Foi o que aconteceu, quando outra adolescente, Caroline Pacheco, aluna do ensino médio, pareceu ouvir recomendação do cronista Fernando Sabino: – “Se estou sem assunto, lanço um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica”.
Caroline fez isso. Saiu de casa, foi buscar essa história no Abrigo e decidiu contá-la por escrito para compartilhá-la, refletindo sobre a gravidez indesejada, mães solteiras, a vida e a morte, menores abandonados, deficientes. Mas ela não foi a única. Vários alunos do ensino médio escreveram sobre o mesmo tema, depois de participarem da visita organizada ao Abrigo Moacyr Alves, uma instituição vinculada à Secretaria Estadual de Assistência Social, que acolhe crianças e adolescentes portadores de deficiências.
Durante o ano, esses alunos realizaram diversas experiências, indo buscar fora deles assunto para crônicas. Em maio, por exemplo, foram ao Tribunal de Júri do Amazonas e lá assistiram ao julgamento de um policial, acusado de homicídio qualificado. “O réu, embora sentenciado, não foi afastado do seu cargo de militar, ao contrário, foi promovido de soldado para cabo” – escreveu, perplexa, a aluna Dayna Kate Pereira.
No mês seguinte, esses jovens escritores conheceram a reserva indígena Beija-flor, localizada no município do Rio Preto da Eva, a 80 km de Manaus, percorreram as roças dos índios e observaram o funcionamento de uma casa de farinha. Uma vez mais, registraram o que viram. Um deles, Charles Deivison Silva observou “um povo simples, sensível e inteligente que luta para ter seus direitos reconhecidos, não mais com o arco e flecha, mas com papel, caneta e inteligência”.
Em agosto, eles pegaram uma lancha, atravessaram o rio Negro, contornaram a praia da Lua e visitaram a comunidade ribeirinha do Livramento. Lá, “fomos à casa da Dona Nair, que nos falou de sua origem e de sua história, ela é indígena, da tribo Miranha, seu nome é Anacá, que significa pássaro. Seu Luis contou que conheceu Gabriel, um pajé, um índio intelectual que gostava de relatar para o mundo os mitos do povo Tukano” – escreveu Adenilde da Silva.
Nada escapa a esses jovens: o desmatamento, a biodiversidade, a luta dos ambientalistas, o movimento SOS Encontro das Águas, a diversidade cultural, a água potável, o uso de drogas. Carlos Wendell Lira, aluno do 1º ano do ensino médio, depois de uma dessas incursões, exclama em seu ‘Relato de Vida’:
- “Descobri que em Manaus tem museu. Eu não sabia que aqui tinha museu e palacete! Quando fomos ao abrigo e ao cemitério foi uma aprendizagem diferente pra mim. O cemitério, para mim era só para momentos de tristeza e não para estudá-lo. Fiz uma poesia. Nunca pensei que sabia fazer isso!”.


A incubadora


Todos esses jovens estão descobrindo que “sabem fazer isso”. Convivi com eles agora no I Forum sobre Educação Popular, realizado nos dias 20 e 21 de dezembro, no Centro de Formação da Arquidiocese de Manaus. Alguns recitaram seus poemas, leram seus relatos, mostraram seus escritos, apresentaram peças de teatro e números musicais durante o evento que contou ainda com palestra da professora Lucíola Cavalcante Pessoa, da Universidade Federal do Amazonas, e dos professores Roberto Porto e Cristopher Dalgais.
São escritores que estão nascendo, estão rompendo a casca do ovo. Tive a sorte de ver de perto a rede onde são embalados, uma espécie de berço que tem endereço certo. Este berço está localizado na terra de Thiago de Melo, Márcio Souza, Milton Hatoum, Luiz Bacellar, Aldisio Filgueiras. Fica mais precisamente no bairro São José Operário, Zona Leste de Manaus.
É lá, na periferia, longe do centro, que jovens alunos do ensino médio, quase todos menores de idade, estão reinventando a palavra, escrevendo poemas, crônicas, contos, pequenos ensaios, foto novela e relatos diversos. Eles acabam de publicar um livro com 110 páginas intitulado “Escritores Alternativos: escrevendo com liberdade alternativa”, editado artesanalmente pela Escola da Fundação Fé e Alegria do Amazonas.
A Escola, que funciona desde 2008, acompanha, anualmente, no contra-turno escolar, uma média de 300 alunos matriculados em escolas públicas, nos três anos de ensino médio, com o objetivo, entre outros, de facilitar o ingresso no ensino superior de jovens de classes menos favorecidas. Ela oferece espaços e ferramentas de aprendizagem nas áreas de História, Química, Matemática, Física, Biologia, Ecologia, Artes e Expressão Verbal. Já contribuiu para a entrada de alunos na UFAM e na UEA, com porcentagem de aprovação de 73%.
Uma dessas alunas é Juliana Duarte, que ingressou na UFAM no curso de Ciências da Natureza: “Mesmo tendo sido estudante de uma escola em um bairro periférico, lutei e alcancei o direito de entrar em uma universidade pública. Ter estudado três anos na Escola Alternativa me proporcionou um novo olhar crítico e um novo modo de conviver dentro da sociedade, me ajudou a cursar uma universidade, mas também me ensinou a lutar, a ser digna e respeitada e a respeitar”.
Por que esses jovens sentem necessidade de escrever? Na oficina de produção de textos que ministrei nesse berço de escritores, buscamos respostas a essa pergunta, com auxílio de quem entende do riscado. O poeta angloamericano W.H. Auden foi citado: – “Escrevo para saber o que penso”. Também o poeta amazonense Aldisio Filgueira: “Pois o homem é palavra / que inventa / e assina embaixo /para não esquecer”.
Na oficina, com o apoio de dois poemas, discutimos a necessidade que tem o escritor de trabalhar a palavra. Um, de Carlos Drummond, ‘O Lutador’:“Lutar com palavras / É luta mais vã / Entanto lutamos /Mal rompe a manhã”. O outro, do poeta peruano César Vallejo: “Quiero escribir, pero me sale espuma, / quiero decir muchísimo y me atollo. Quiero escribir, pero me siento puma; / quiero laurearme, pero me encebollo”.
Os participantes da oficina se deram conta que o problema de lutar com as palavras não é só deles, mas também dos grandes poetas de várias línguas. Conheceram Bertold Brecht, autor de um texto sobre as dificuldades de escrever a verdade, e se pronunciaram, ainda, sobre a letra de uma música de Sidney Miller: “Só faz um verso de verdade, quem tiver verdades pra dizer”.
O processo de formação desses jovens conta com o trabalho pedagógico das professoras Margareth Abtibol e Ana Maria de Araújo e de toda uma equipe dedicada da Escola Alternativa, responsáveis pela criação de uma incubadora, que fornece calor, ventilação e condições favoráveis ao crescimento desses escritores recém-nascidos.
Conversar com esses jovens nos abre janelas de esperança “nesse tempo que é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera” nas palavras de Drummond. De qualquer forma, não há dúvidas de que no berço dos escritores no bairro São José Operário está nascendo uma flor, ainda em botão, “mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”.
A escrita desses meninos e meninas representa uma faísca de esperança, porque exorciza nossos demônios e contribui para que os fios pisca-pisca sirvam apenas para iluminar árvores de natal. Essa escrita traz dona Nair e seu Luis até nós, para que nos ensinem o que sabem. Quem sabe, os textos desses meninos e meninas não ajudem as emissoras de rádio – pelo amor de Deus – a trocar o disco da Simone, que a gente não agüenta mais! (Ah, ia esquecendo, a criança que foi efetivamente enforcada, conseguiu sobreviver!).


P.S, Esse texto não pode deixar de nomear, mesmo com letra com fonte de tamanho menor, cada um dos ESCRITORES ALTERNATIVOS que escreveram textos para o livro: Adelson Auzier, Adenilde da Silva, André Paz da Silva, Andreilsson Pereira, Andreza Santana, Beatriz Dias, Bruna Ferreira, Barbara Santana, Carlos Wendell Lira da Silva, Caroline Pacheco, Charles Deivison Santos da Silva, Cintia do Nascimento Moreno, Daiana Simeão, Dayna Kate Pereira, Deivisson Mendes, Erick Almeida, Franciane Lark, Frank William, Janayna Duarte de Andrade, Jeniffer Pereira, Jessé Ribeiro Lessa, Jheina Costa, Joicyene Mota, Joiciane Santos, Joseph Emanuel Rosa, Juliana Duarte de Andrade, Gabriel costa, Leonardo Santana, Luana Alves, Lucas de Souza, Moisés Roberto Araújo, Rayane S. de Oliveira, Vitor Murilo Nogueira Cabral, Taynara Castro.

Publicado no “Diário do Amazonas”, em 25 de dezembro de 2011

• Jornalista

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