O dia de fazer doces-de-Natal
* Por Urda Alice Klueger
Hoje em dia, qualquer supermercado vende doces-de-Natal, em saquinhos de plástico ou bandejinhas, de modo que as donas-de-casa já não precisam mais gastar um precioso domingo de Dezembro para fazê-los.
Na minha infância, porém, fazer doces-de-Natal era um dos rituais do Advento. Eles eram feitos num Domingo, quando toda a família estava em casa e podia ajudar, e gastava-se um dia inteiro na sua confecção.
Eu nunca gostei de acordar cedo, e, assim, quando saía da cama, minha mãe já estava preparando a primeira massa do doce-de-Natal, misturando os ingredientes de uma receita que ainda possuo, antiga receita que, calculo, tenha séculos de existência. Era uma massa amarela, em que ia trigo, ovos, açúcar e outras coisas, e que levedava com sal amoníaco, estranha coisa que se comprava por grama, na venda mais próxima, à qual chamávamos de “salamonico”.
A casa da gente virava de pernas para o ar, no dia de fazer doces-de-Natal, com a mãe da gente a fazer massas e mais massas, o pai da gente a esticar as massas com o rolo de macarrão, e a gente a fazer confusão, cortando as massas esticadas com forminhas de ferro, transformando-a em pinheirinhos, papai-noéis, anjos e estrelas. Cada figura cortada era colocada em formas de fazer cuca, velhas formas enegrecidas pelo tempo e pelo forno, nas quais se passava gordura e se polvilhava com farinha-de-trigo, antes de deitar nelas os docinhos.
Chegava, então, a vez do forno, grande forno de tijolos onde se fazia pão nos tempos normais, nas que naquele dia de confusão ficava lotado de formas e mais formas de doces-de-Natal. Era necessário vigiar-se o forno para que os docinhos não assassem demais, ao mesmo tempo que se continuava fazendo massa, esticando massa, cortando massa, a mãe da gente brigando porque se estava cortando errado a massa, todo mundo ficando nervoso dentro de casa quando a coisa se acelerava com as primeiras formas saindo do forno.
De tarde, vinha a parte melhor: docinhos assados, era tempo de enfeitá-los. Havia uma receita de glacê própria para eles, e punha-se todo o mundo a bater glacê, e nós, crianças, lambíamos mais glacê do que batíamos, e de novo a mãe da gente ficava braba e a gente saia apanhando. Glacê pronto, gente grande, responsável, como minha mãe e meu pai, passavam o glacê cuidadosamente em cada docinho, enquanto que nós, crianças, ficávamos encarregadas de enfeitar os doces com açúcar colorido. Cada cor de açúcar era colocado num tigelinha de pirex, e nós íamos escolhendo as cores e enfeitando os doces. E claro que botávamos tanto açúcar colorido na boca quanto no glacê fresco, ficando com a língua azul, roxa e verde, e antes de acabar a atividade, todos já tínhamos apanhado de novo.
Formas e mais formas de doces enfeitadas voltavam ao forno, para secar o glacê, e lá pelo final da tarde estávamos com um gloriosa coleção de doces-de-Natal prontos. Com um suspiro, minha mãe os guardava em grandes latas que existiam exclusivamente para isso, onde eles se manteriam como novos por muito tempo, e a cada dia comeríamos alguns, e eles durariam até lá por Janeiro ou Fevereiro.
Cansada de se incomodar conosco o dia inteiro, minha mãe nos mandava para o banho e ia fazer o jantar. Continuávamos com as língua roxas, azuis e verdes, e tínhamos, cada um, apanhado diversas vezes naquele dia, mas que dia feliz que tinha sido! Aquele dia de fazer doces-de-Natal era a certeza de que o Natal estava chegando mesmo, de que Papai Noel logo viria, de que a magia chegara definitivamente e estava no ar, acima de nós, esperando pela noite de Natal.
Depois do banho, já com roupas limpas, bem passadas a ferro, dávamos um jeito de nos comunicarmos com os primos da vizinhança – doce-de-Natal era uma coisa que se fazia em quase todas as casas no mesmo dia – e todos eles estavam com as língua coloridas, todo tinham apanhado, e todos estávamos felizes. Então ouvíamos as cigarras cantando nas árvores próximas, e sabíamos o quanto aquele dia fora bom!
Fico com muita pena quando vejo, hoje, os doces-de-Natal prontos, nos supermercados. Perdemos um dia lindo das nossas tradições – as novas gerações já não lambem mais tigelas de glacê, nem apanham mais das mães num dia de Dezembro cheio de cigarras cantando.
• Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR.
Hoje em dia, qualquer supermercado vende doces-de-Natal, em saquinhos de plástico ou bandejinhas, de modo que as donas-de-casa já não precisam mais gastar um precioso domingo de Dezembro para fazê-los.
Na minha infância, porém, fazer doces-de-Natal era um dos rituais do Advento. Eles eram feitos num Domingo, quando toda a família estava em casa e podia ajudar, e gastava-se um dia inteiro na sua confecção.
Eu nunca gostei de acordar cedo, e, assim, quando saía da cama, minha mãe já estava preparando a primeira massa do doce-de-Natal, misturando os ingredientes de uma receita que ainda possuo, antiga receita que, calculo, tenha séculos de existência. Era uma massa amarela, em que ia trigo, ovos, açúcar e outras coisas, e que levedava com sal amoníaco, estranha coisa que se comprava por grama, na venda mais próxima, à qual chamávamos de “salamonico”.
A casa da gente virava de pernas para o ar, no dia de fazer doces-de-Natal, com a mãe da gente a fazer massas e mais massas, o pai da gente a esticar as massas com o rolo de macarrão, e a gente a fazer confusão, cortando as massas esticadas com forminhas de ferro, transformando-a em pinheirinhos, papai-noéis, anjos e estrelas. Cada figura cortada era colocada em formas de fazer cuca, velhas formas enegrecidas pelo tempo e pelo forno, nas quais se passava gordura e se polvilhava com farinha-de-trigo, antes de deitar nelas os docinhos.
Chegava, então, a vez do forno, grande forno de tijolos onde se fazia pão nos tempos normais, nas que naquele dia de confusão ficava lotado de formas e mais formas de doces-de-Natal. Era necessário vigiar-se o forno para que os docinhos não assassem demais, ao mesmo tempo que se continuava fazendo massa, esticando massa, cortando massa, a mãe da gente brigando porque se estava cortando errado a massa, todo mundo ficando nervoso dentro de casa quando a coisa se acelerava com as primeiras formas saindo do forno.
De tarde, vinha a parte melhor: docinhos assados, era tempo de enfeitá-los. Havia uma receita de glacê própria para eles, e punha-se todo o mundo a bater glacê, e nós, crianças, lambíamos mais glacê do que batíamos, e de novo a mãe da gente ficava braba e a gente saia apanhando. Glacê pronto, gente grande, responsável, como minha mãe e meu pai, passavam o glacê cuidadosamente em cada docinho, enquanto que nós, crianças, ficávamos encarregadas de enfeitar os doces com açúcar colorido. Cada cor de açúcar era colocado num tigelinha de pirex, e nós íamos escolhendo as cores e enfeitando os doces. E claro que botávamos tanto açúcar colorido na boca quanto no glacê fresco, ficando com a língua azul, roxa e verde, e antes de acabar a atividade, todos já tínhamos apanhado de novo.
Formas e mais formas de doces enfeitadas voltavam ao forno, para secar o glacê, e lá pelo final da tarde estávamos com um gloriosa coleção de doces-de-Natal prontos. Com um suspiro, minha mãe os guardava em grandes latas que existiam exclusivamente para isso, onde eles se manteriam como novos por muito tempo, e a cada dia comeríamos alguns, e eles durariam até lá por Janeiro ou Fevereiro.
Cansada de se incomodar conosco o dia inteiro, minha mãe nos mandava para o banho e ia fazer o jantar. Continuávamos com as língua roxas, azuis e verdes, e tínhamos, cada um, apanhado diversas vezes naquele dia, mas que dia feliz que tinha sido! Aquele dia de fazer doces-de-Natal era a certeza de que o Natal estava chegando mesmo, de que Papai Noel logo viria, de que a magia chegara definitivamente e estava no ar, acima de nós, esperando pela noite de Natal.
Depois do banho, já com roupas limpas, bem passadas a ferro, dávamos um jeito de nos comunicarmos com os primos da vizinhança – doce-de-Natal era uma coisa que se fazia em quase todas as casas no mesmo dia – e todos eles estavam com as língua coloridas, todo tinham apanhado, e todos estávamos felizes. Então ouvíamos as cigarras cantando nas árvores próximas, e sabíamos o quanto aquele dia fora bom!
Fico com muita pena quando vejo, hoje, os doces-de-Natal prontos, nos supermercados. Perdemos um dia lindo das nossas tradições – as novas gerações já não lambem mais tigelas de glacê, nem apanham mais das mães num dia de Dezembro cheio de cigarras cantando.
• Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR.
Será que o serviço não renderia mais apenas sendo feito pela mãe e pelo pai, com as crianças olhando? Não se gastaria tanta glacê e nem tanta surra, se é que de pode chamar uns tapinhas de surra. Aqui no norte de Minas não tinha essa tradição, mas havia a pintura dos papeis de montar o presépio. Eu adorava ajudar a minha avó nesse serviço. Era maravilhoso!
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