terça-feira, 20 de dezembro de 2011







O ninho do João-de-Barro

* Por Fausto Brignol


Fui passar uma tarde com o seu Juca, conforme tinha prometido. Da última vez que ele tinha estado aqui em casa tínhamos conversado sobre a presidente recém eleita e ele demonstrara alguma surpresa. Inclusive chegamos a “filosofar” sobre o feminino de hombridade.

Ao passar pela porteira, verifiquei que o mesmo ninho de joão-de-barro continuava ainda firmemente preso em cima de um dos moirões. Abandonado há muito tempo, mas ali, resistindo a todas as intempéries.

Isso me fez lembrar do tempo em que meu pai me levava para o campo para me ensinar a caçar. “Gaúcho tem que saber atirar desde pequeno”, me dizia. E eu era bem pequeno. Deveria ter 10 ou 11 anos. Íamos caçar perdizes. Algumas vezes com cachorro perdigueiro, outras, no pio. Cada um com a sua arma de chumbo. Ele com uma espingarda calibre 20 de dois canos e eu com uma 36 – arma pra criança.

As caçadas a dois eram mais um pretexto para sairmos para o campo, uma maneira que o meu pai encontrara para me ensinar algumas “coisas de homem”, naquela época do meu descobrir da vida. Eram momentos em que nos sentíamos mais companheiros do que pai e filho.

Naqueles dias de inverno em que todos ficavam à beira de uma lareira ou tiritando na cidade, pra lá e pra cá, nós íamos caçar. Raramente atirávamos em algum bicho e, geralmente, era pra errar. O importante era estar no campo, sentindo aquele frio gostoso no rosto e nas mãos e eu sempre na expectativa de que algo muito misterioso iria acontecer.

Muitas coisas “misteriosas” aconteceram.

Uma delas foi o dia em que estávamos caminhando em silêncio e eu tinha me afastado um pouco na frente. Súbito, ele me disse, sem gritar: - “Fica parado e quieto”. Nem me mexi, enquanto ele largou a arma com rapidez, puxou o revólver do coldre, apontou na minha direção, com aparente calma, e atirou. Do meu lado, capim e barro saltaram. Ele se aproximou e viu que a cobra ainda se retorcia. Deu o segundo tiro, enquanto comentava: - “Uma cruzeira, e das grandes.” Olhei pro lado e quase junto de mim estava a cruzeira morta.

Meu pai pegou um pedaço de pau e a jogou para longe. Depois, ainda em silêncio, sentamos em um tronco quebrado ali perto e ele pediu que lhe alcançasse a bolsa com o mate. Fiquei feliz de tomar mate com ele. Era uma distinção. Em casa, na hora do mate, as crianças não mateavam.

Meio queimando a língua, desajeitado, não aguentei e perguntei: - “Pai, porque tu não atiraste com a espingarda?”. Olhou pra mim, com calma, e respondeu, os olhos azuis luzindo, quase iguais ao céu daquela tarde de inverno: - “Se eu atirasse com a arma, o chumbo se espalhava e tu serias atingido. Tive que arriscar com o revólver. Mas te comportaste bem; não tiveste medo”. Medo eu tinha sentido, mas sempre foi uma palavra proibida lá em casa.

Conversávamos como dois adultos. Faceiro, eu acrescentei – “Mas que pontaria, hein pai?!”. - “Na verdade, o primeiro tiro eu quase errei” – disse, sem me olhar – “O segundo é que foi certeiro”. “O teu tio Pedro teria acertado no primeiro, sem olhar muito.”

Era verdade. O tio Pedro sempre foi famoso pela pontaria. Tanto no revólver como no chicote. Ficou famosa aquela vez em que, sentado, ele deu uma chicotada num galho de árvore, uma cobra caiu, ele sacou a arma e acertou na cabeça.

De outra vez, um desafeto entrou na casa dele com um revólver na mão, dizendo que ia matá-lo. E enquanto o outro perdia tempo em falar, o tio Pedro puxou o seu revólver e deu um tiro na mão dele. Depois, prendeu, amarrou, chamou a polícia e entregou o invasor. Todos na família, dizem que aquele sujeito teve muita sorte por levar só um tiro na mão. Talvez o tio Pedro estivesse de bom humor, naquele dia.

- “Mas pai, tu também atira muito bem” – disse eu, meio que bajulando – “até estiveste na guerra!”. - “Na revolução.” – ele corrigiu. - “E mataste muita gente?” – perguntei, inocentemente. - “Não sei, meu filho”, respondeu, um pouco mais tenso. – “Como não sabe, pai?” – insisti, impertinente. – “O sargento mandava apontar a metralhadora para a frente e atirar. E era o que eu fazia. Espero não ter matado ninguém, mas vi muita gente morrer”, concluiu.

Tinha sido na revolução de 1932. Meu pai foi ferido e mandado para um hospital em Rio Grande. Quando todos pensavam que ele estava morto, apareceu em casa, esquelético, mas vivo.

Naquela tarde, ficamos em silêncio por um bom tempo, enquanto o céu descaía e a passarada cantava, procurando ninho. Depois, ele olhou pra mim, sorriu e disse: “Mas tu não deste nenhum tiro ainda. Vamos procurar um alvo.” Levantou, deu uns passos, olhou pros lados e me chamou.

- Estás vendo aquele ninho de joão-de-barro, lá naquela árvore?

- Tô.

- Tu achas que consegues acertar ele?

- Claro, pai, mas e os passarinhos?

- É um ninho abandonado. Pode atirar sem medo. Mesmo que tu acertes, ele não vai cair.

- Por que, pai?

- O ninho de joão-de-barro é uma das coisas mais fortes da natureza. Um exemplo para o homem. Mesmo depois de abandonado durante muito tempo, nada derruba ele – nem vento, nem chuva, nem tiro.

Depois, supervisionou enquanto eu abria e carregava a minha arma. Fez isso por três vezes, sempre orientando o posicionamento da arma no meu ombro. Dei três tiros e, pelo menos, duas vezes acertei dentro do ninho. O galho sacudia, mas do ninho de joão-de-barro não saía nem farelo. Fiquei espantado com a sabedoria do meu pai. Como é que ele sabia tanto sobre as coisas da campanha?

Quando eu quis dar o quarto tiro – e teria ficado atirando até gastar o último cartucho – ele sorriu pra mim e disse que estava na hora de ir embora.

- Temos que respeitar a natureza; os bichinhos já estão se recolhendo e daqui a pouco vai escurecer. Fiquei até triste por ter matado aquela pobre cobra, mas ela poderia ter te picado. Mas foi uma boa caçada, não foi meu filho?

Tinha sido a melhor de todas. Quanta coisa eu tinha aprendido! Não tínhamos matado nenhuma perdiz, mas o objetivo das nossas “caçadas” a dois nunca tinha sido matar nenhum bicho - só muito tempo depois é que eu descobri isso.

E mal sabíamos nós que alguns meses depois – e acho que foi no ano de1965 – todas as armas da loja do meu pai seriam recolhidas pelo exército, inclusive a minha. Armas e munição. Nunca mais devolveram. Só ficou o revólver do meu pai, porque ele era tenente da reserva e tinha direito à sua arma própria.

Amargurado, o pai costumava dizer, naquelas tardes de sol de inverno, quando íamos comer bergamotas na calçada em frente de casa, e dava aquela vontade de um passeio pelo campo, uma caçada das nossas, que os gorilas, além de golpistas eram ladrões. Pura verdade! Que medo que eles tinham do povo! Principalmente, porque naquele tempo o povo era consciente e falava-se em uma reação “janguista”.

Pura desculpa. Jango estava em sua fazenda em São Borja e o pessoal do PTB que tinha ficado no Brasil por uma ou outra razão, estava sendo preso, torturado e vigiado passo a passo, como aconteceu com o meu pai. E nos roubaram armas e munições. Até hoje, nem sinal. O pai dizia que isso não era digno de militares, mas parece que existem militares indignos.

E naquele dia, quando fui visitar o seu Juca na sua chácara e vi aquele ninho de joão-de-barro abandonado há muito tempo, mas firme em cima de um dos moirões da porteira, me veio à lembrança aquela caçada com o meu pai e todos os mistérios que eu descobria a cada passo que dávamos no campo.

Quanto ao seu Juca... Tivemos outra ótima conversa. Mas eu conto em uma próxima vez.


Texto extraído do Blog do Fausto Brignol –
HTTP://fausto-diogenes,blogspot.com


• Jornalista e escritor

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