sexta-feira, 30 de dezembro de 2011







Calendário na lixeira

* Por Urariano Mota


Ao passar pela cozinha, os olhos foram atraídos para o saco azul claro pendurado na maçaneta da porta. Lá, brilhando na transparência do plástico, destacava-se um calendário. Coisa mais boba, trivial, direis, um amontoado de garrafas descartáveis, quinquilharias, e no meio delas um calendário de um ano findo. Coisa boba, talvez, mas em outras circunstâncias. Não estivesse nos dias finais desse ano que se vai, e já vai tarde, essa coisa de um calendário jogado ao lixo não seria notada. Pois nesta época, sem querer, estamos sempre mais sensíveis, mais suscetíveis ao passar leve de uma sombra, às superstições, aos assaltos do acaso, porque um ano que se vai é sempre um ano que nos aproxima do nosso último calendário.

Certo, direis, que palavras sombrias, que catilinária mais imprópria para esta época do ano. Seria melhor uma construção assim, ou para ser mais próprio, o período:

“Como por encanto, dezembro foi embora. Como se não houvéssemos transcorrido um espaço, chegamos ao fim deste ano. Queremos todos esquecer os dias, as angústias, as ânsias passadas, e festejar, que é bom, um novo ano. Desejamos e vamos recomeçar de um marco zero de felicidade. Creiam, é possível renascer nas células velhas da nossa história. Estamos todos novos na aparente velha carcaça. Atiremos portanto o calendário, este, sim, velho, atiremos este calendário antiquíssimo ao lixo assim como nos despimos e despedimos desta velha pele, que se vai misturada aos dias puídos das folhinhas dos meses a que jamais tornaremos.”

Difícil é achar o tom justo. O leitor reconhece que as linhas acima são apenas, boa ou má, uma mensagem de Boas Festas. Uma das mensagens, estas, sim, bobas, rituais, que nos desejamos ora crédulos, ora hipócritas, com frequência hipócritas, todos os anos. O calendário que foi ao lixo resiste a tais celebrações. Ele nos pergunta, duro, com a sua folhinha crua de dezembro: - “o que foste, o que fizeste?”. Ou então nos pergunta, se estamos na graça do papel de vítima, que na vida quase sempre quer dizer, aquele que sofre, que sem agir é paciente: - “o que te aconteceu neste ano?”.

Ainda que não façamos um balanço, e balanço, em se tratando da vida, acusa sempre um déficit, um valor negativo em razão do montante superior de perdas, ainda assim somos forçados a lembrar que nem sempre a fraternidade universal nos alcançou, se não neste calendário, pelo menos em outros que o lixo e a reciclagem dos anos levou. Houve com certeza algum 25 ou 31 de dezembro em que, apesar dos fogos e dos gritos de júbilo em torno, nos dissemos, “esta festa não me pertence, para esta comunhão eu não sou convidado”. E sozinhos, certamente ao canto, choramos, o que, na atmosfera da fugaz alegria que se esvaiu no gás do champanhe, foi tomado como um choro de felicidade. Então lembramos que essas datas são, do convívio humano, as mais cruéis. Lembramos Péricles, o desenhista de O Amigo da Onça, que fazia rir o Brasil inteiro com as suas piadas, lembramos Péricles que numa noite assim abriu o gás em seu apartamento fechado. E nos poupou a todos da última piada do seu personagem, o falso amigo sem escrúpulos, ao deixar na porta o aviso: “Cuidado...”.

Lembramos que nesta data, indivíduos solitários sentem-se flagrantemente expulsos de qualquer convívio. Alguns dormem muito cedo, outros se embriagam até a perda da consciência, alternativas precárias de se apagarem do mundo sem suicídio. No Natal, no fim do ano, no consumo, na ceia lauta, farta, como não lembrar A Pequena Vendedora de Fósforos, do imortal Andersen? Como não lembrar o Natal da menininha faminta, enregelada, que sobe ao céu e vira uma estrela? Essas coisas nos vêm nestes dias em que a felicidade se torna um dever, em vez de uma conquista. Como não lembrar que o velho gordo e barbudo não chega para todos, que seus presentes e bondade têm eleitos? Aqui mesmo, próximo a mim, no lixão que é fonte de sobrevivência para os miseráveis, o bom velhinho não se atreveria a caminhar por entre meninos que se misturam a urubus. O bom velhinho sofreria um justo assalto, e, com o devido perdão do espírito fraterno, poderia ser morto e transformado no primeiro peru gordo que esses meninos já comeram.

Lembramos. E como uma das funções da memória é esquecer, o particular esquecemos. E como esquecer é uma forma de não identificar o que vemos, deixamos de compreender. O que será mesmo que nos diz este calendário na lixeira? Talvez que naquele ano houve uma sucessão de luas, de fases, que se repetem em dias diferentes deste que já vai, tarde. Talvez, outra verdade prosaica, que a Terra fez rotação e translação naqueles 12 meses findos. Talvez que o Nilo voltou a encher, que o Amazonas voltou a inundar, que outros fenômenos da natureza, básicos, repetiram-se, naquele ano como neste. Que a periodização de acontecimentos físicos têm repercussões importantes na vida dos homens. Que nessa periodização, vidas vão, vidas vêm. Como num hotel, em que hóspedes novos chegam para ocupar os apartamentos vazios dos que se vão. Então nesse encadeamento, nessa associação, voltamos a compreender. Num hotel, homens chegam, homens partem. Thomas Mann dizia, numa feliz metáfora, que um hotel lembra a morte. Ainda que numa vista geral da memória, num voo à distância, que não individualiza o particular, este calendários nos diz:

“Dias passei contigo. Fizeste planos, modificaste planos, não realizaste planos. Sofreste terríveis provas nesses meses. Riste também. Se não o riso pleno, pletórico, puro, riste alguns segundos nesses 365 dias. Fechaste os olhos para dormir. Ilusão, nas zonas escuras do sono, continuaste em vigília, cavalo negro solto escoiceando sem rumo. Quiseste levantar voo, mas tuas asas eram as de um albatroz pescado, abatido. Sobreviveste, é certo, mas a que preço? Como foste canalha nesses dias. Quanta covardia em troca da ração diária. Quantas mentiras, quantas traições a ti mesmo. Quanto amor submerso, afundado em pântano, que não vicejou na força da flor. E, fundamentalmente, inscreveste o quê nesses dias? Que verdade boa disseste que valesse a pena passar por essas folhinhas? Algum ato bom, bom em seu começo, meio e fim. Que ato bom, em teu prejuízo, te deixou risonho e contente pela felicidade a outros causada? Que solidariedade cometeste para reduzir o teu excedente de carnes, essa gordura que te cobre os ossos? Estive contigo, estiveste comigo, e se um desses dias foi ruim, a noite não foi melhor. A jornada foi longa, muito longa, somente longa”.

Dá-nos vontade de lhe responder, num esconjuro: - Para o inferno, calendário! E com mais ênfase: - Para o inferno, este ano! E somente não lhe respondemos assim porque parte de nós também desceria às profundas. Atados nos sentimos por esse olhar à folhinha no desprezo. Calendário na lixeira? Seria bom, fosse apenas um calendário ao lixo. Nós próprios vamos nesse saquinho plástico.


* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

Um comentário:

  1. Quanta amargura, oposta aos "desejos" que se ouve nesta época do ano, porém, infelizmente, identifico-me com essa visão. Para mim é um ano a menos. Será que os jovens também têm esse pensamento, digo os pessimistas, ou apenas quem já vai de meio-dia para a tarde é que pensa assim?

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