Num piscar de olhos
O haicai (ou haiku ou, ainda, haikai) é, certamente, o tipo de poesia mais sintético que existe. Pelo menos o é entre todas as outras formas de compor que conheço. Em apenas 17 sílabas, distribuídas em três versos de 5, 7 e 5, respectivamente, expressa uma idéia completa que muitas vezes o poeta que recorresse a outra maneira de poetar precisaria de extenso poema, com centenas de versos, utilizando páginas e mais páginas e, até, quem sabe, todo um livro para expressar. Sou fascinado por esse sintetismo, que exige do autor imensa autodisciplina. È a poesia feita (e sobretudo lida) “num piscar de olhos”.
O haicai originou-se no Japão. Sua característica, como já deu para adivinhar, é a valorização da concisão e da objetividade. Deriva do “tanka” ou “waka”, da aristocracia e dos cortesãos japoneses, que o idealizaram como uma espécie de jogo de inteligência, argúcia e observação. Nada nele é supérfluo. Nessa forma de fazer poesia não há espaço para preciosismos verbais. Cada palavra tem seu peso no efeito final do poema.
Em japonês, haiku (plural de haicai) são, geralmente, impressos em uma única linha vertical. Outrossim, não raro, vêm acompanhados de uma pintura (chamada “haiga”), alusiva ao tema desenvolvido. Já em português, consagrou-se a fórmula de se utilizar três linhas paralelas. E nada impede que os poemas sejam, também, ilustrados, embora a maioria não o seja.
Os três versos que compõem o haicai têm, para muitos, uma simbologia, digamos “filosófica”. Sua forma de apresentação refletiria as três principais fases da nossa vida. É mais ou menos a versão oriental do enigma com que a Esfinge, que ficava às portas da cidade egípcia de Tebas, desafiava as pessoas a decifrarem. Assim, os dois versos ímpares de um haicai têm o mesmo tamanho, para simbolizar a similaridade entre infância e velhice. Há uma sabedoria natural nisso. Afinal, estas são fases em que todos nós somos mais frágeis, e suscetíveis, portanto, de maiores atenções e cuidados. São as quatro pernas da manhã e as três da noite do enigma da Esfinge.
Já o verso do meio, maior do que os outros dois, ou seja, de sete sílabas, simboliza a maturidade. É o período da vida de maior vigor, de mais força física (embora nem sempre também intelectual), caracterizado pela ação na consecução da obra a que nos propusermos legar para a posteridade.
No Japão, os poetas que se especializam nesse tipo de poesia são conhecidos como “haijins”. O principal deles, figura até mesmo lendária por sua inspiração, é Matsuô Bashô (que viveu entre os anos de 1644 e 1694). Esse notável haicaidista fez do haicai mais do que produção literária. Tratou-o como prática espiritual.
Há outra corrente que interpreta a estrutura desse tipo de poema com uma simbologia diferente da que citei. Vêem nela uma representação das mudanças ocorridas na natureza sob o influxo de alguma força natural ou de um ato humano. Para estes, as cinco primeiras sílabas de um haicai destinam-se a “desenhar” um cenário, quase que visualmente, determinando as circunstâncias em que ele se apresenta: se é noite ou dia, inverno ou verão etc. O segundo verso, por sua vez, seria o movimento que animaria a cena, o dinamismo, a vida, representada por algum de seus agentes. Finalmente o último teria por objetivo mostrar um resultado, via de regra inesperado, portanto surpreendente, ditado pelo contato com os elementos anteriores.
Aliás nossa vida segue, mais ou menos, esse roteiro. Sua origem, óbvio, depende de circunstâncias alheias à nossa vontade. Não somos nós que decidimos se iremos ou não nascer. Somos lançados no mundo à nossa revelia, para o bem ou para o mal. A maturidade, por seu turno, tem, pelo menos potencialmente, muito de vontade e consciência. Se agirmos e pensarmos de determinada forma poderemos ser bem sucedidos ou fracassados nos objetivos a que nos propusermos a atingir. Finalmente, o “entardecer”, a velhice, é o resultado do que fizemos ou deixamos de fazer, sem esquecer do detalhe “do que outros nos fizeram”.
O haicai, todavia, tem uma regra básica, diria “áurea”: a de jamais abordar temas que descrevam ou mesmo sugiram destruição da vida, em qualquer de suas formas. Estão vedados, portanto, cataclismos naturais, como terremotos, tsunamis, furacões, erupções vulcânicas etc., bem como tragédias provocadas pelo homem, como as guerras. Os sentimentos destrutivos por extensão – tais como ódio, vingança, ciúmes e outras paixões irracionais similares – também são vedados. O haicai é, sobretudo, a exaltação da vida.
A temática dos haicaidistas centraliza-se em três assuntos básicos: numa cena da natureza, numa metáfora positiva ou num estado emocional de alegria ou êxtase. Reproduzo, abaixo, a título de ilustração, seis haicais, sendo três do poeta Roberto Evangelista e três de Luís Bacellar, respectivamente, extraídos do excelente livro “Crisântemo de cem pétalas”.
Borboleta amarela
flores de ameixeira
fada aventureira.
@@@
Noite. Vagalumes
dançam na lanterna de
pedra do parque
@@@
Entre a minha e a tua
janela florescem
tuas samambaias.
O haicai (ou haiku ou, ainda, haikai) é, certamente, o tipo de poesia mais sintético que existe. Pelo menos o é entre todas as outras formas de compor que conheço. Em apenas 17 sílabas, distribuídas em três versos de 5, 7 e 5, respectivamente, expressa uma idéia completa que muitas vezes o poeta que recorresse a outra maneira de poetar precisaria de extenso poema, com centenas de versos, utilizando páginas e mais páginas e, até, quem sabe, todo um livro para expressar. Sou fascinado por esse sintetismo, que exige do autor imensa autodisciplina. È a poesia feita (e sobretudo lida) “num piscar de olhos”.
O haicai originou-se no Japão. Sua característica, como já deu para adivinhar, é a valorização da concisão e da objetividade. Deriva do “tanka” ou “waka”, da aristocracia e dos cortesãos japoneses, que o idealizaram como uma espécie de jogo de inteligência, argúcia e observação. Nada nele é supérfluo. Nessa forma de fazer poesia não há espaço para preciosismos verbais. Cada palavra tem seu peso no efeito final do poema.
Em japonês, haiku (plural de haicai) são, geralmente, impressos em uma única linha vertical. Outrossim, não raro, vêm acompanhados de uma pintura (chamada “haiga”), alusiva ao tema desenvolvido. Já em português, consagrou-se a fórmula de se utilizar três linhas paralelas. E nada impede que os poemas sejam, também, ilustrados, embora a maioria não o seja.
Os três versos que compõem o haicai têm, para muitos, uma simbologia, digamos “filosófica”. Sua forma de apresentação refletiria as três principais fases da nossa vida. É mais ou menos a versão oriental do enigma com que a Esfinge, que ficava às portas da cidade egípcia de Tebas, desafiava as pessoas a decifrarem. Assim, os dois versos ímpares de um haicai têm o mesmo tamanho, para simbolizar a similaridade entre infância e velhice. Há uma sabedoria natural nisso. Afinal, estas são fases em que todos nós somos mais frágeis, e suscetíveis, portanto, de maiores atenções e cuidados. São as quatro pernas da manhã e as três da noite do enigma da Esfinge.
Já o verso do meio, maior do que os outros dois, ou seja, de sete sílabas, simboliza a maturidade. É o período da vida de maior vigor, de mais força física (embora nem sempre também intelectual), caracterizado pela ação na consecução da obra a que nos propusermos legar para a posteridade.
No Japão, os poetas que se especializam nesse tipo de poesia são conhecidos como “haijins”. O principal deles, figura até mesmo lendária por sua inspiração, é Matsuô Bashô (que viveu entre os anos de 1644 e 1694). Esse notável haicaidista fez do haicai mais do que produção literária. Tratou-o como prática espiritual.
Há outra corrente que interpreta a estrutura desse tipo de poema com uma simbologia diferente da que citei. Vêem nela uma representação das mudanças ocorridas na natureza sob o influxo de alguma força natural ou de um ato humano. Para estes, as cinco primeiras sílabas de um haicai destinam-se a “desenhar” um cenário, quase que visualmente, determinando as circunstâncias em que ele se apresenta: se é noite ou dia, inverno ou verão etc. O segundo verso, por sua vez, seria o movimento que animaria a cena, o dinamismo, a vida, representada por algum de seus agentes. Finalmente o último teria por objetivo mostrar um resultado, via de regra inesperado, portanto surpreendente, ditado pelo contato com os elementos anteriores.
Aliás nossa vida segue, mais ou menos, esse roteiro. Sua origem, óbvio, depende de circunstâncias alheias à nossa vontade. Não somos nós que decidimos se iremos ou não nascer. Somos lançados no mundo à nossa revelia, para o bem ou para o mal. A maturidade, por seu turno, tem, pelo menos potencialmente, muito de vontade e consciência. Se agirmos e pensarmos de determinada forma poderemos ser bem sucedidos ou fracassados nos objetivos a que nos propusermos a atingir. Finalmente, o “entardecer”, a velhice, é o resultado do que fizemos ou deixamos de fazer, sem esquecer do detalhe “do que outros nos fizeram”.
O haicai, todavia, tem uma regra básica, diria “áurea”: a de jamais abordar temas que descrevam ou mesmo sugiram destruição da vida, em qualquer de suas formas. Estão vedados, portanto, cataclismos naturais, como terremotos, tsunamis, furacões, erupções vulcânicas etc., bem como tragédias provocadas pelo homem, como as guerras. Os sentimentos destrutivos por extensão – tais como ódio, vingança, ciúmes e outras paixões irracionais similares – também são vedados. O haicai é, sobretudo, a exaltação da vida.
A temática dos haicaidistas centraliza-se em três assuntos básicos: numa cena da natureza, numa metáfora positiva ou num estado emocional de alegria ou êxtase. Reproduzo, abaixo, a título de ilustração, seis haicais, sendo três do poeta Roberto Evangelista e três de Luís Bacellar, respectivamente, extraídos do excelente livro “Crisântemo de cem pétalas”.
Borboleta amarela
flores de ameixeira
fada aventureira.
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Noite. Vagalumes
dançam na lanterna de
pedra do parque
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Entre a minha e a tua
janela florescem
tuas samambaias.
@@@
A água rola
seixos e arredonda a terra
seixos rolantes
@@@
Árvore sem nome
e sem frutos, ah,
delícia de sombra!
@@@
O vôo poente
das andorinhas enverga
o horizonte.
Boa leitura.
O Editor.
A água rola
seixos e arredonda a terra
seixos rolantes
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Árvore sem nome
e sem frutos, ah,
delícia de sombra!
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O vôo poente
das andorinhas enverga
o horizonte.
Boa leitura.
O Editor.
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