segunda-feira, 7 de novembro de 2011







A mulher de roxo

* Por Sandra Mamede

Nasci e cresci aqui nessa cidade maravilhosa que é Salvador, a primeira cidade do Brasil. Foi aqui que os portugueses desembarcaram, onde se rezou a primeira missa, a única cidade do Brasil que está dividida em Cidade Alta e Cidade Baixa, ligadas por um Elevador com 70 metros de altura, por nome , Elevador Lacerda, em homenagem ao seu construtor. As duas cidades também são ligadas por ladeiras centenárias ainda revestidas de pedras, e dois Planos Inclinados.
O centro da cidade era uma pequena rua chamada de Rua Chile, de mais menos uns 500 metros, onde ficavam as melhores lojas de moda, como as Lojas Duas Américas, a primeira loja de Salvador que colocou escada rolante,o Palace Hotel, um hotel luxuoso onde funcionava um cassino freqüentado pela alta sociedade soteropolitana, a loja masculino mais famosa de Salvador, Adamastor. Na praça que dá início a essa rua estão situados o Palácio do Governo, a Prefeitura, e a Câmera de Vereadores, nessa praça também fica o acesso ao Elevador Lacerda, de onde se tem uma belíssima vista de uma grande parte da Comércio e da Baía de Todos os Santos onde se encontra o Forte de São Marcelo, um forte de formato arredondado construído em pleno mar, que era usado para defender a cidade de possíveis invasores.
Enfim, a Rua Chile era considerada como o “Coração da Cidade”, pois todos os eventos importantes aconteciam ali.
A “Loja Sloper” ( nunca acertava pronunciar este nome!!_), era uma Loja de departamentos situada na Rua Chile, próxima a loja Duas Américas. A Sloper era uma loja enorme e completa, direcionada para a casa, moda feminina, brinquedos etc...Sua entrada era bastante arrojada para a época ( mais ou menos há 35 anos atrás), uma vitrine tomava toda a frente da loja, e nessa entrada, entre as vitrines, acontecia uma coisa, se não estranha...bastante incomum...num canto, entre as vitrines, ficava uma mulher vestida de noiva ( ou freira), o vestido longo todo roxo, com véu e uma espécie de capa. Ela deveria ter em torno de 40 anos( quando a conheci!). Alta, morena, cabelos pretos, muito maquiada, sandália rasteira..
Falava muito bem, tinha uma voz suave e meiga, parecia a voz de uma menina, dirigia-se as pessoas pedindo dinheiro. Não incomodava ninguém. Ficava de pé na frente da loja, ou andando entre as vitrines, as vezes cantando, as vezes falando sozinha, ou pedindo dinheiro . Nunca saía dali, dormia e acordava ali. Ninguém conseguia afastá-la dali!!! A não ser para fazer a sua caminhada costumeira até a Praça Tomé de Sousa Nada se sabia sobre ela! Era uma lenda! Cresci, vendo-a ali, envelhecendo gradativamente. O vestido era substituído de vez em quando, mas conservava a mesma cor. Eram muitas as histórias a seu respeito. Falavam que pertencia a uma família tradicional daqui de Salvador, formada em magistério, falava várias línguas, rica , que enlouqueceu porque foi abandonada pelo noivo no altar, outra versão é que tinha sido criada num bordel que pegou fogo, mais outra é que sua mãe seguiu o seu pai encontrando-a com outra, deu um tiro nele e matou-se em seguida na presença dela. E assim, histórias eram contadas, mas nunca soubemos qual era a verdadeira.
Com o passar dos anos e a criação dos shoppings, a Rua Chile deixou de ser o “Coração da Cidade”, aos pouquinhas foi sendo abandonada...suas lojas, na grande maioria fecharam as portas, também deixou de ser caminho obrigatório para alguns pontos da cidade, enfraquecendo ainda mais o comércio...
Eu passava sempre por lá, mas com as mudanças, já não fazia esse caminho...com tristeza acompanhei o declínio da Rua Chile, primeiro foi a loja “Duas Américas” que fechou, algum tempo depois foi a vez da “Sloper”. Confesso que na época nem lembrei da “mulher de roxo”...
Alguns anos depois... li a manchete num jornal local; "MULHER DE ROXO, ESTÁ MORRENDO A MÍNGUA ABANDONADA NUMA CALÇADA”. Nossa!!! Foi um choque, uma surpresa muito grande, eu nem lembrava mais dela!!!
A matéria do jornal continuava explicando a história dela, as suposições de quem ela poderia ter sido, e que depois do fechamento da “Sloper”, ela ficou vagando pelas ruas de Salvador sem destino, tinha perdido a sua identidade. Estava muito doente, jogada numa calçada qualquer da cidade, sem condições de alimentar-se ou de locomover-se. Tentaram encontrar algum parente, mas as tentativas foram inúteis. Com a divulgação do caso pela imprensa,e com a cobrança da população, ela foi removida para o Hospital Santo Antonio (hospital mantido pelas obras assistenciais de Irmã Dulce), para ser tratada, depois de algum tempo veio a falecer, e levou com ela o segredo da sua vida... até hoje aqui em Salvador, todos (digo as pessoas mais antigas), já ouviram falar da “MULHER DE ROXO...

* Professora e escritora baiana

Um comentário:

  1. Perdas sobre perdas. Há pessoas que vivem apenas para cumprir a sina de perdedoras. Mulher de roxo: uma personalidade curiosa e intrigante.

    ResponderExcluir