Idéias utópicas
As várias formas de organização comunitária, desde tempos remotíssimos, quando os homens ainda viviam em cavernas e davam os primeiros passos rumo ao que se convencionou chamar de “civilização”, jamais foram, obviamente, satisfatórias para todos. Caracterizaram-se, invariavelmente, pela prevalência do mais forte, do mais “esperto” e do mais ágil, em detrimento da maioria, que não contava com essas características. A História dos povos – é fácil de se comprovar, à mais ligeira análise –, não passa de mera sucessão de violências, de injustiças, de crueldades de toda a sorte, de patifarias e de corrupção, com raros lampejos de grandeza, de transcendência, de lucidez e de solidariedade.
Esse estado de coisas perpetuou-se e desembocou no mundo atual, com seu desfile cotidiano de horrores, a que temos acesso, diariamente, através dos meios de comunicação (quando não somos as vítimas indefesas desses comportamentos agressivos, injustos e excludentes). Por isso, as pessoas idealistas e bem-informadas, que cultivam valores – aqueles testados e comprovados pelo tempo, que asseguram um mínimo de civilização às mais diversas comunidades –, não se conformam com o que vêem, lêem, ouvem e testemunham ao seu redor, quando não sentem tudo isso na própria carne. E nem poderiam se conformar. A vida não é, e não pode ser, apenas isso que se vê!
Estes inconformados sonham, isto sim, com sociedades ideais, em que imperem a ordem – que seja natural e consensual e nunca imposta à força – a solidariedade, a beleza, a alegria e a proteção dos mais fracos. Ou seja, que idealizam um inefável e perpétuo império da justiça e do bem, que nunca existiu em nenhum tempo e lugar.
São ideais utópicos, sem dúvida, a maioria restrita ao campo da mera fantasia. Algumas idéias nesse sentido, todavia, são perfeitamente viáveis e factíveis. Desde que, claro, sejam bem-divulgadas e defendidas com sabedoria, pertinácia e lucidez por líderes esclarecidos, preparados e comunicativos, que contem com raro poder de convencimento para dobrar até o mais empedernido dos céticos.
Ao contrário do que se pensa, eles existem, e até em número considerável, posto que estejam se omitindo, por várias razões, do seu papel de condutores de povos. São estas idéias que me proponho a analisar, a priori, antes de abordar as utopias mais populares e conhecidas, que atravessaram décadas, séculos, milênios até e chegaram até nós, não raro de forma truncada e/ou distorcida. Via de regra, rimos delas, e as tratamos como coisas “exóticas”, criadas por excêntricos. por malucos ou por desocupados. Evidentemente, não são.
Utilizarei, como fio-condutor dessas considerações, o esclarecedor ensaio do professor Luiz Gonzaga Teixeira, divulgado na internet, intitulado “Utopia, uma cartilha”. O autor, filósofo e sociólogo, é um utopista convicto, que não se limita a teorizar sobre o assunto, mas promove a organização de várias comunidades alternativas. Dedica-se há muitos anos a esse ideal de mudança (para melhor) da sociedade, escrevendo inúmeros textos a respeito e publicando vários livros (entre os quais, “Utopia e Marx”). Procura, sobretudo, construir a teoria da utopia com base em contribuições de clássicos como Pierre Joseph Proudhon e Martin Buber, entre outros.
O professor Luiz Gonzaga Teixeira nos ensina que “algumas pessoas vivem totalmente mergulhadas na sua vida, preocupadas com coisas criadas pelo seu sistema para volvê-las, alegrá-las, angustiá-las. Chamamos essas pessoas de tópicas, isto é, presas no lugar, no nível da situação”. São os que se conformam com o que aí está, ou por concordarem com o sistema, ou por mero conformismo ou, o que é mais freqüente, por comodismo.
Por uma razão ou outra, que não cabe aqui analisar, os que se comportam dessa maneira são a maioria. Foram condicionados, desde crianças, a esse comportamento, pela educação que receberam dos pais e/ou mestres. Ou melhor, foram “adestrados” para encarar o mundo dessa maneira, respeitando hierarquias e abrindo mão da própria vontade, liberdade e anseios ou, pelo menos, de considerável parcela deles.
“Digamos que essa pessoa se conforme com as possibilidades oferecidas, que viva aquém do horizonte oferecido por sua cultura e pelo seu sistema”, prossegue Teixeira. Afinal, é o que invariavelmente acontece com esse tipo de indivíduo. Conforma-se em viver aquém da sua possibilidade, dissolve-se na massa e se despersonaliza. Não raro, essas pessoas até são relativamente cultas, têm razoável senso crítico, mas carecem de iniciativa. Não são condutoras, mas conduzidas. Embora achem que um dia devam ocorrer mudanças, torcem para que estas não ocorram enquanto viverem, pois, no íntimo, as temem.
“Mas nem todas as pessoas são assim. Algumas são mais inquietas, acham que algumas coisas estão escondidas, que deve ser possível ir além do horizonte oferecido, tentam colocar o pescoço da sua situação. Essas são as pessoas utópicas”, acrescenta o professor. “Quer dizer, são ‘u-não’, elas negam a sua situação, o seu topos. As pessoas tópicas, então, ficam dentro da situação, vivem aquém do horizonte. E as pessoas utópicas negam a situação, procuram ir além do horizonte”, completa Luiz Gonzaga Teixeira.
Ocorre que não há consenso sobre a natureza, abrangência e profundidade das mudanças necessárias para a criação de uma sociedade que pelo menos se aproxime da ideal. Há, por exemplo, os que propõem a anulação de todos os princípios e comportamentos que caracterizam as mais diversas comunidades existentes, locais, regionais ou nacionais, e que se comece tudo de novo, do “zero”, o que, claro, raia o impossível.
Teixeira, porém, pondera em seu ensaio: “Algumas questões são praticamente obrigatórias para quem toma essa atitude (de inconformismo e de procura por se ir além do horizonte). Por exemplo: ‘Como é ou como funciona esse lugar que buscamos?’. ‘Como chegar lá, qual é a técnica necessária para chegar lá?’. ‘Baseados em que valores, em que, vamos agir e vamos construir esse outro lugar?’. ‘Quando começa a luta ou a construção, é uma obra grandiosa ou é uma porção de coisinhas que podem ser começadas imediatamente?’”.
As várias utopias já propostas (e as que ainda, certamente, vão se propor) não objetivam mudar, apenas, a sociedade. Têm por escopo, sobretudo, a mudança “da vida”, quer a de cada indivíduo, quer a social e comportamental. O leitor pode ponderar: “as religiões e as ideologias não têm, também, essas mesmas propostas?”. De fato, têm. Mas cada uma delas restringe-se, apenas, ao seu próprio âmbito. A Utopia, por seu turno, leva em consideração tanto o indivíduo, quanto o grupo.
Luiz Gonzaga Teixeira pondera a propósito: “Para mudar a vida é preciso levar em conta que a vida social tem três níveis: a) Individual; b) Das relações entre as pessoas e c) O nível político-econômico. Nisso a Utopia difere, por exemplo, das religiões e do marxismo”. E prossegue: “As religiões, em geral, atuam só sobre o nível primeiro, o individual. As religiões acreditam que os outros níveis dependem desse primeiro: que basta mudar o indivíduo, o coração, para que as relações e a sociedade também mudem. Além disso, de nada adiantam as mudanças de qualquer tipo se o coração das pessoas não mudar. A Utopia, embora insista na importância dessas mudanças dentro das pessoas, no afeto, na mentalidade, educação etc., não acredita que baste isso, nem que isso baste para atingir os outros níveis, nem que todo o problema seja só esse. Já o marxismo (e algumas outras ideologias), pelo contrário, acredita que os dois primeiros níveis dependem do último, que as pessoas, por dentro, e as relações entre as pessoas, dependem do todo social, da política e da economia. A Utopia discorda disso também, ainda mais profundamente. Nenhum dos três níveis é mais importante”. Voltarei, certamente, a este fascinante assunto.
Boa leitura.
O Editor.
As várias formas de organização comunitária, desde tempos remotíssimos, quando os homens ainda viviam em cavernas e davam os primeiros passos rumo ao que se convencionou chamar de “civilização”, jamais foram, obviamente, satisfatórias para todos. Caracterizaram-se, invariavelmente, pela prevalência do mais forte, do mais “esperto” e do mais ágil, em detrimento da maioria, que não contava com essas características. A História dos povos – é fácil de se comprovar, à mais ligeira análise –, não passa de mera sucessão de violências, de injustiças, de crueldades de toda a sorte, de patifarias e de corrupção, com raros lampejos de grandeza, de transcendência, de lucidez e de solidariedade.
Esse estado de coisas perpetuou-se e desembocou no mundo atual, com seu desfile cotidiano de horrores, a que temos acesso, diariamente, através dos meios de comunicação (quando não somos as vítimas indefesas desses comportamentos agressivos, injustos e excludentes). Por isso, as pessoas idealistas e bem-informadas, que cultivam valores – aqueles testados e comprovados pelo tempo, que asseguram um mínimo de civilização às mais diversas comunidades –, não se conformam com o que vêem, lêem, ouvem e testemunham ao seu redor, quando não sentem tudo isso na própria carne. E nem poderiam se conformar. A vida não é, e não pode ser, apenas isso que se vê!
Estes inconformados sonham, isto sim, com sociedades ideais, em que imperem a ordem – que seja natural e consensual e nunca imposta à força – a solidariedade, a beleza, a alegria e a proteção dos mais fracos. Ou seja, que idealizam um inefável e perpétuo império da justiça e do bem, que nunca existiu em nenhum tempo e lugar.
São ideais utópicos, sem dúvida, a maioria restrita ao campo da mera fantasia. Algumas idéias nesse sentido, todavia, são perfeitamente viáveis e factíveis. Desde que, claro, sejam bem-divulgadas e defendidas com sabedoria, pertinácia e lucidez por líderes esclarecidos, preparados e comunicativos, que contem com raro poder de convencimento para dobrar até o mais empedernido dos céticos.
Ao contrário do que se pensa, eles existem, e até em número considerável, posto que estejam se omitindo, por várias razões, do seu papel de condutores de povos. São estas idéias que me proponho a analisar, a priori, antes de abordar as utopias mais populares e conhecidas, que atravessaram décadas, séculos, milênios até e chegaram até nós, não raro de forma truncada e/ou distorcida. Via de regra, rimos delas, e as tratamos como coisas “exóticas”, criadas por excêntricos. por malucos ou por desocupados. Evidentemente, não são.
Utilizarei, como fio-condutor dessas considerações, o esclarecedor ensaio do professor Luiz Gonzaga Teixeira, divulgado na internet, intitulado “Utopia, uma cartilha”. O autor, filósofo e sociólogo, é um utopista convicto, que não se limita a teorizar sobre o assunto, mas promove a organização de várias comunidades alternativas. Dedica-se há muitos anos a esse ideal de mudança (para melhor) da sociedade, escrevendo inúmeros textos a respeito e publicando vários livros (entre os quais, “Utopia e Marx”). Procura, sobretudo, construir a teoria da utopia com base em contribuições de clássicos como Pierre Joseph Proudhon e Martin Buber, entre outros.
O professor Luiz Gonzaga Teixeira nos ensina que “algumas pessoas vivem totalmente mergulhadas na sua vida, preocupadas com coisas criadas pelo seu sistema para volvê-las, alegrá-las, angustiá-las. Chamamos essas pessoas de tópicas, isto é, presas no lugar, no nível da situação”. São os que se conformam com o que aí está, ou por concordarem com o sistema, ou por mero conformismo ou, o que é mais freqüente, por comodismo.
Por uma razão ou outra, que não cabe aqui analisar, os que se comportam dessa maneira são a maioria. Foram condicionados, desde crianças, a esse comportamento, pela educação que receberam dos pais e/ou mestres. Ou melhor, foram “adestrados” para encarar o mundo dessa maneira, respeitando hierarquias e abrindo mão da própria vontade, liberdade e anseios ou, pelo menos, de considerável parcela deles.
“Digamos que essa pessoa se conforme com as possibilidades oferecidas, que viva aquém do horizonte oferecido por sua cultura e pelo seu sistema”, prossegue Teixeira. Afinal, é o que invariavelmente acontece com esse tipo de indivíduo. Conforma-se em viver aquém da sua possibilidade, dissolve-se na massa e se despersonaliza. Não raro, essas pessoas até são relativamente cultas, têm razoável senso crítico, mas carecem de iniciativa. Não são condutoras, mas conduzidas. Embora achem que um dia devam ocorrer mudanças, torcem para que estas não ocorram enquanto viverem, pois, no íntimo, as temem.
“Mas nem todas as pessoas são assim. Algumas são mais inquietas, acham que algumas coisas estão escondidas, que deve ser possível ir além do horizonte oferecido, tentam colocar o pescoço da sua situação. Essas são as pessoas utópicas”, acrescenta o professor. “Quer dizer, são ‘u-não’, elas negam a sua situação, o seu topos. As pessoas tópicas, então, ficam dentro da situação, vivem aquém do horizonte. E as pessoas utópicas negam a situação, procuram ir além do horizonte”, completa Luiz Gonzaga Teixeira.
Ocorre que não há consenso sobre a natureza, abrangência e profundidade das mudanças necessárias para a criação de uma sociedade que pelo menos se aproxime da ideal. Há, por exemplo, os que propõem a anulação de todos os princípios e comportamentos que caracterizam as mais diversas comunidades existentes, locais, regionais ou nacionais, e que se comece tudo de novo, do “zero”, o que, claro, raia o impossível.
Teixeira, porém, pondera em seu ensaio: “Algumas questões são praticamente obrigatórias para quem toma essa atitude (de inconformismo e de procura por se ir além do horizonte). Por exemplo: ‘Como é ou como funciona esse lugar que buscamos?’. ‘Como chegar lá, qual é a técnica necessária para chegar lá?’. ‘Baseados em que valores, em que, vamos agir e vamos construir esse outro lugar?’. ‘Quando começa a luta ou a construção, é uma obra grandiosa ou é uma porção de coisinhas que podem ser começadas imediatamente?’”.
As várias utopias já propostas (e as que ainda, certamente, vão se propor) não objetivam mudar, apenas, a sociedade. Têm por escopo, sobretudo, a mudança “da vida”, quer a de cada indivíduo, quer a social e comportamental. O leitor pode ponderar: “as religiões e as ideologias não têm, também, essas mesmas propostas?”. De fato, têm. Mas cada uma delas restringe-se, apenas, ao seu próprio âmbito. A Utopia, por seu turno, leva em consideração tanto o indivíduo, quanto o grupo.
Luiz Gonzaga Teixeira pondera a propósito: “Para mudar a vida é preciso levar em conta que a vida social tem três níveis: a) Individual; b) Das relações entre as pessoas e c) O nível político-econômico. Nisso a Utopia difere, por exemplo, das religiões e do marxismo”. E prossegue: “As religiões, em geral, atuam só sobre o nível primeiro, o individual. As religiões acreditam que os outros níveis dependem desse primeiro: que basta mudar o indivíduo, o coração, para que as relações e a sociedade também mudem. Além disso, de nada adiantam as mudanças de qualquer tipo se o coração das pessoas não mudar. A Utopia, embora insista na importância dessas mudanças dentro das pessoas, no afeto, na mentalidade, educação etc., não acredita que baste isso, nem que isso baste para atingir os outros níveis, nem que todo o problema seja só esse. Já o marxismo (e algumas outras ideologias), pelo contrário, acredita que os dois primeiros níveis dependem do último, que as pessoas, por dentro, e as relações entre as pessoas, dependem do todo social, da política e da economia. A Utopia discorda disso também, ainda mais profundamente. Nenhum dos três níveis é mais importante”. Voltarei, certamente, a este fascinante assunto.
Boa leitura.
O Editor.
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Curioso. Não entendia utopia assim, mas como algo idealizado, impossível e inalcançável. E os tópicos? São os acomodados. Quem muda o mundo são os utópicos. Interessante!
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