Happy family
* Por Marcelo Sguassábia
A casa perfeita da família feliz recebia, de dois em dois anos, uma demão de tinta na parte externa e nos madeiramentos. A cada seis meses, dedetização e limpeza da caixa d’água. De 45 em 45 dias, o jardineiro para aparar a grama. Diariamente, a perua escolar e suas duas buzinadinhas regulamentares para buscar filhinho e filhinha.
Havia pichações por todo o bairro, menos no imenso muro caiado da casa feliz. Nem sinal de sujeira de pomba, fuligem de queimada ou formigueiro. Asséptica e harmônica em suas formas, a casa feliz era quase música, uma figura etérea em meio à feiúra do quarteirão. Tinha chaminé, cerquinha, floreiras nas janelas e o caminhozinho sinuoso que saía da porta em direção à rua.
Como de hábito, após dar lustro à coleção de miniaturas papai colocava os planos familiares em planilhas do Excel. Ali ficava horas com seus cálculos e projeções. Mamãe evocava a proteção divina em preces e cânticos. Depois, recolhia as roupas do varal com altivez de matriarca honesta, realizada por dar conta do seu fardo. No armário, as camisas polo de filhinho eram empilhadas por cores, em nuances que iam do vermelho vivo ao bege claro. As pretas e as brancas ficavam em gavetas separadas. Papai mantinha a caixa de ferramentas providencialmente organizada, com um sortido estoque de brocas e buchas. Sobre o rack, o controle do som, o controle do vídeo e o controle da vida ao alcance da mão. No lavabo e nos banheiros as toalhas eram rosa, com monogramas bordados.
As fotos da família feliz eram acondicionadas em compartimentos, de acordo com o tipo de comemoração: casamento, batizados, formaturas, aniversários, natais e férias. Ao lado da caixa de retratos, canhotos de talões de cheque acumulados desde 1981, recibos de contas pagas, cópias de declarações de imposto de renda, boletins escolares.
Era com nítido orgulho que filhinho se projetava alistando-se aos 18. Filhinha, por sua vez, gastava folhas e mais folhas de papel vegetal a desenhar grinaldas e buquês de noiva. Na casa perfeita, ao romper da aurora, a família fazia seu desjejum com farinha láctea, mel e mamão papaia. Verduras hidropônicas e legumes sem agrotóxicos faziam as delícias do almoço e do jantar. Mais ou menos por essa época, filhinha foi debutante e filhinho escoteiro.
A felicidade, ali, se alastrava como fogo em mato seco. Vizinho nenhum jamais ouviu um palavrão saído de dentro daquela casa. Nem um “cala a boca”, um “anda logo”, um “caramba” ou coisa assim. O carro estava sempre limpo e a mecânica em ótimo estado. Todas as revisões feitas nas quilometragens e prazos recomendados pelo fabricante. Dizem as más línguas que um dia, em outubro de 1993, papai esqueceu o guarda-chuva em casa. Mas um boy da firma logo apareceu para buscar.
Por volta das três – com margem de tolerância de cinco minutos, para mais ou para menos, filhinha sentava-se ao piano e interpretava com doçura e sentimento uma peça de Clementi. Não constam registros de estouros de champanhe, gritos de gol ou fumaça de churrasco vindos da casa perfeita da família feliz. Eram três, e não mais que três, as ocasiões semanais em que todos saíam juntos: para o culto dominical, para a visita aos pais de mamãe e para divertirem-se a valer vendo os aviões pousando no aeroporto.
No aconchego daquelas quatro paredes, os narizes eram assoados silenciosamente, o piso era encerado com regularidade monástica, os travesseiros exalavam a alfazema mais pura desse mundo. As contas nunca eram pagas na data de vencimento - no mais tardar dois dias antes. Os vestidos de mamãe eram todos 4 dedos abaixo do joelho. Os cachimbos de papai eram escovados e acondicionados em saquinhos de veludo. Filhinho não sabia o que era cotovelo ralado. Filhinha não sabia o que era amasso no portão. Mamãe era professora mas não exercia a profissão. A família feliz sabia que roupa suja se lava em casa, mas nunca havia roupa suja para se lavar. Papai e mamãe não se esqueciam e se saudavam mutuamente no aniversario de noivado. Com menos entusiasmo que no aniversário de casamento e mais calorosamente que no aniversário de namoro. Por sua conduta exemplar, papai foi várias vezes convocado a compor júri no fórum. Era sócio benemérito do conselho para o bem-estar comunitário. Mamãe colaborava com as obras do berço.
Um belo dia papai reuniu a família feliz, pegou os 20 metros de pisca-pisca natalino guardados numa gaveta da edícula, dividiu-os em 4 partes de 5 metros, distribuiu uma parte para cada um. Foram os quatro encontrados na sala de estar, os corpos dispostos de maneira simétrica e em ordem cronológica decrescente.
• Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: www.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) www.letraeme.blogspot.com (portfólio)
* Por Marcelo Sguassábia
A casa perfeita da família feliz recebia, de dois em dois anos, uma demão de tinta na parte externa e nos madeiramentos. A cada seis meses, dedetização e limpeza da caixa d’água. De 45 em 45 dias, o jardineiro para aparar a grama. Diariamente, a perua escolar e suas duas buzinadinhas regulamentares para buscar filhinho e filhinha.
Havia pichações por todo o bairro, menos no imenso muro caiado da casa feliz. Nem sinal de sujeira de pomba, fuligem de queimada ou formigueiro. Asséptica e harmônica em suas formas, a casa feliz era quase música, uma figura etérea em meio à feiúra do quarteirão. Tinha chaminé, cerquinha, floreiras nas janelas e o caminhozinho sinuoso que saía da porta em direção à rua.
Como de hábito, após dar lustro à coleção de miniaturas papai colocava os planos familiares em planilhas do Excel. Ali ficava horas com seus cálculos e projeções. Mamãe evocava a proteção divina em preces e cânticos. Depois, recolhia as roupas do varal com altivez de matriarca honesta, realizada por dar conta do seu fardo. No armário, as camisas polo de filhinho eram empilhadas por cores, em nuances que iam do vermelho vivo ao bege claro. As pretas e as brancas ficavam em gavetas separadas. Papai mantinha a caixa de ferramentas providencialmente organizada, com um sortido estoque de brocas e buchas. Sobre o rack, o controle do som, o controle do vídeo e o controle da vida ao alcance da mão. No lavabo e nos banheiros as toalhas eram rosa, com monogramas bordados.
As fotos da família feliz eram acondicionadas em compartimentos, de acordo com o tipo de comemoração: casamento, batizados, formaturas, aniversários, natais e férias. Ao lado da caixa de retratos, canhotos de talões de cheque acumulados desde 1981, recibos de contas pagas, cópias de declarações de imposto de renda, boletins escolares.
Era com nítido orgulho que filhinho se projetava alistando-se aos 18. Filhinha, por sua vez, gastava folhas e mais folhas de papel vegetal a desenhar grinaldas e buquês de noiva. Na casa perfeita, ao romper da aurora, a família fazia seu desjejum com farinha láctea, mel e mamão papaia. Verduras hidropônicas e legumes sem agrotóxicos faziam as delícias do almoço e do jantar. Mais ou menos por essa época, filhinha foi debutante e filhinho escoteiro.
A felicidade, ali, se alastrava como fogo em mato seco. Vizinho nenhum jamais ouviu um palavrão saído de dentro daquela casa. Nem um “cala a boca”, um “anda logo”, um “caramba” ou coisa assim. O carro estava sempre limpo e a mecânica em ótimo estado. Todas as revisões feitas nas quilometragens e prazos recomendados pelo fabricante. Dizem as más línguas que um dia, em outubro de 1993, papai esqueceu o guarda-chuva em casa. Mas um boy da firma logo apareceu para buscar.
Por volta das três – com margem de tolerância de cinco minutos, para mais ou para menos, filhinha sentava-se ao piano e interpretava com doçura e sentimento uma peça de Clementi. Não constam registros de estouros de champanhe, gritos de gol ou fumaça de churrasco vindos da casa perfeita da família feliz. Eram três, e não mais que três, as ocasiões semanais em que todos saíam juntos: para o culto dominical, para a visita aos pais de mamãe e para divertirem-se a valer vendo os aviões pousando no aeroporto.
No aconchego daquelas quatro paredes, os narizes eram assoados silenciosamente, o piso era encerado com regularidade monástica, os travesseiros exalavam a alfazema mais pura desse mundo. As contas nunca eram pagas na data de vencimento - no mais tardar dois dias antes. Os vestidos de mamãe eram todos 4 dedos abaixo do joelho. Os cachimbos de papai eram escovados e acondicionados em saquinhos de veludo. Filhinho não sabia o que era cotovelo ralado. Filhinha não sabia o que era amasso no portão. Mamãe era professora mas não exercia a profissão. A família feliz sabia que roupa suja se lava em casa, mas nunca havia roupa suja para se lavar. Papai e mamãe não se esqueciam e se saudavam mutuamente no aniversario de noivado. Com menos entusiasmo que no aniversário de casamento e mais calorosamente que no aniversário de namoro. Por sua conduta exemplar, papai foi várias vezes convocado a compor júri no fórum. Era sócio benemérito do conselho para o bem-estar comunitário. Mamãe colaborava com as obras do berço.
Um belo dia papai reuniu a família feliz, pegou os 20 metros de pisca-pisca natalino guardados numa gaveta da edícula, dividiu-os em 4 partes de 5 metros, distribuiu uma parte para cada um. Foram os quatro encontrados na sala de estar, os corpos dispostos de maneira simétrica e em ordem cronológica decrescente.
• Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: www.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) www.letraeme.blogspot.com (portfólio)
Quem atingiu a perfeição já deu sua contribuição ao mundo.
ResponderExcluirTraços escondidos sob o manto da organização podem ser interessantes, no entanto, o transtorno obsessivo compulsivo tem seus rituais e seus escravos. Mas você, Marcelo, acabou encontrando liberdade para nós e as borboletas.
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