Planejamento é a mãe
* Por André Falavigna
Vamos lá. Ainda sobre a indigência intelectual, psicológica e espiritual de nossa cobertura futebolística. Eu gostaria de me aprofundar um pouco na questão do vocabulário-fetiche que tomou conta de nossas mesas-redondas, colunas semanais, blogs, programação pós-jogo das rádios e comentários durante a partida. Chegou-se no ponto de total descolamento entre a palavra utilizada e o sentido do que se quer dizer quando se a utiliza.
Por exemplo: a palavra planejamento. Palavrinha boa. Eu, pessoalmente, adoro o planejamento, especialmente no trabalho. Planejar é executar um exercício de previsão, baseado na experiência e no conhecimento, a fim de se obter um determinado roteiro de ação mais seguro do que o que se poderia obter sem esse exercício, tendo em vista a consecução de um determinado fim. Na prática, o tal exercício pode ser bom ou ruim. Por isso, há até um esforço científico em se desenvolver técnicas que proporcionem planos sempre bons. Ainda assim, mesmo planos excepcionalmente bons podem, perfeitamente, resultar em monumentais cagadas que só se verificam previsíveis após a implementação do plano. Essa é uma realidade bem conhecida. Por isso, quando você ouve um setorista do Corinthians dizer que a atual crise alvinegra é resultado, dentre outras coisas, de falta de planejamento, desconfie: o rapaz não sabe o que está dizendo. Ele pode até ter razão, mas já não é capaz de explicar o porquê. Vamos ver porque.
O caso é que, às vezes, eu fico pensando se a sedução que a idéia de plano exerce sobre nossas classes letradas não é proveniente do fato de essa classe letrada e nossa ser quase toda de esquerda. Assim, nossos jornalistas esportivos, que já não são lá os grandes campeões do amor próprio, não poderiam mesmo utilizar-se de um vocabulário que deixasse de refletir, em certa medida, o viés ideológico do meio ao qual eles gostariam de se filiar: o dos Sapientíssimos. Esse é um processo até muito aceitável. Mas há outros, subjacentes, que tornam tudo infernal. Um deles é o fato de que, quando há unanimismo em torno de uma idéia, as gerações distantes no tempo da criação dessa idéia já não sabem que ela é só uma idéia e não uma verdade auto-evidente. Assim, repetem-na por cacoete. Assim, não é a idéia de plano que é boa, e sim o fato de que alguém, em algum lugar, transmita a sensação de plano, os sinais de que tudo está sob controle.
Planos não se aplicam a tudo. Todas as tentativas de planificar a Economia, em qualquer época e em quaisquer condições, acabaram em choro e ranger de dentes. Ninguém pode planejar a vida como um todo, nem a própria nem as dos outros. Porque a planificação não é um bem em si, é só uma técnica, aplicável ou não, a um ou outro fim. Há, ademais, o fato de que a imensa maioria dos atos da vida exigirem certo improviso, estejam eles dentro de um plano ou não. O campo da aplicação implacável do plano é sempre um recorte de uma visão utilitária da realidade: não é a vida.
Daí o absurdo de se utilizar a palavra “plano” como se utiliza a palavra “sodomia”, e tudo dar no mesmo no final. Em 1994, às vésperas da Copa do Mundo dos EUA, a Gazeta Esportiva publicou um artigo no qual dizia que a preparação da seleção havia melhorado um pouco, mas não o suficiente. O motivo? Moracy Santana havia assumido a preparação física do escrete, o que denotava um planejamento moderno. Mas nem tudo estava perfeito: a CBF havia descurado da necessidade de se contratar... “uma nutricionista”! Estava escrito assim mesmo: “uma” nutricionista. A obsessão com o preenchimento de pré-requisitos de cartilha era tão grande que o articulista dava a entender que, se contássemos com um macho na nutrição, estaríamos perdidos. E se fosse viado, podia? Isso não ficou claro. O que ficou claro é que o nome de Moracy exercia efeitos hipnóticos no animal, porque estava associado ao verbete “planejamento”, marca registrada do marketing do Morumbi.
Não estou dizendo que planejar não seja bom, ou que os clubes devam agir como se fossem a quitanda do bairro. Também não estou dizendo que o São Paulo não planeje nada ou que seus planos só possuam cunho publicitário. Percebam o que eu digo: o planejamento do São Paulo é elogiado porque o clube ganha; quando vencem o Palmeiras ou o Corinthians, porque montaram equipes mais fortes, subitamente a “modernidade” deixa de ser a razão de tudo - e aí, enfim, a gente pode falar um pouco de futebol. O caso é que os times, ao longo dos anos, fazem planos felizes ou infelizes, têm times bons e maus, são mais ou menos fortes politicamente, mas se diferenciam minimamente no que diz respeito à organização, à disponibilidade material e mesmo, por último mas não somente, à qualidade técnica de suas equipes. E há exceções mesmo nesses ciclos. Quando tanto Palmeiras quanto Corinthians obtiveram recursos para montar equipes infinitamente mais fortes que as do São Paulo, como nas eras Parmalat/HMTF, nem todo o planejamento, estrutura e organização do mundo puderam fazer com que o São Paulo vencesse mais do que dois campeonatos regionais, enquanto seus adversários refestelavam-se com Campeonatos Brasileiros, Libertadores, Copas do Brasil e Mercosul e, ainda, mais regionais que o próprio São Paulo. Naquela época, o São Paulo trocava de técnico como um verdadeiro Corinthians e sua torcida humilhava jogadores qual fosse uma verdadeira Mancha Alviverde no cio. Houve desorganização? Faltou planejamento? Faltou estrutura? Na medida dos clubes brasileiros, não. Não, não e não. O que faltava era time. E Palmeiras e Corinthians, teriam vencido o que venceram sem organização, estrutura e planejamento? Não, não e não. Mas sem time não teriam feito nada.
Há um problema de comunicação com nossos jornalistas esportivos. Se Palmeiras e Corinthians inventarem umas siglas bem boas para seus departamentos e arrumarem uns sujeitos bem pedantes para dar entrevistas, com o tempo, quem sabe, poderão converter-se em paradigmas supimpas de organização estrutural planejada retal. Ganhando, todos elogiarão seus respectivos pompoarismos institucionais. Perdendo, passarão por maus bocados, mas poderão se consolar vendo a imprensa chateada com essa torcida irascível que xinga o fofo do Cacá (me recuso, de hoje em diante, a lançar mão da grafia diversa da original de um apelido horroroso, cuja modificação se deu sob a orientação de marqueteiros semi-analfabetos) ou coisa similarmente fofinha e doce.
Melhor do que isso seria ver nossos cronistas largarem de frescura e começarem a fazer as cosias por gosto, não por servilismo.
É só ligar a palavra ao seu sentido e tudo fica mais calmo. A gente pode até parar de falar merda e começar a conversar sobre futebol.
(*) André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.
* Por André Falavigna
Vamos lá. Ainda sobre a indigência intelectual, psicológica e espiritual de nossa cobertura futebolística. Eu gostaria de me aprofundar um pouco na questão do vocabulário-fetiche que tomou conta de nossas mesas-redondas, colunas semanais, blogs, programação pós-jogo das rádios e comentários durante a partida. Chegou-se no ponto de total descolamento entre a palavra utilizada e o sentido do que se quer dizer quando se a utiliza.
Por exemplo: a palavra planejamento. Palavrinha boa. Eu, pessoalmente, adoro o planejamento, especialmente no trabalho. Planejar é executar um exercício de previsão, baseado na experiência e no conhecimento, a fim de se obter um determinado roteiro de ação mais seguro do que o que se poderia obter sem esse exercício, tendo em vista a consecução de um determinado fim. Na prática, o tal exercício pode ser bom ou ruim. Por isso, há até um esforço científico em se desenvolver técnicas que proporcionem planos sempre bons. Ainda assim, mesmo planos excepcionalmente bons podem, perfeitamente, resultar em monumentais cagadas que só se verificam previsíveis após a implementação do plano. Essa é uma realidade bem conhecida. Por isso, quando você ouve um setorista do Corinthians dizer que a atual crise alvinegra é resultado, dentre outras coisas, de falta de planejamento, desconfie: o rapaz não sabe o que está dizendo. Ele pode até ter razão, mas já não é capaz de explicar o porquê. Vamos ver porque.
O caso é que, às vezes, eu fico pensando se a sedução que a idéia de plano exerce sobre nossas classes letradas não é proveniente do fato de essa classe letrada e nossa ser quase toda de esquerda. Assim, nossos jornalistas esportivos, que já não são lá os grandes campeões do amor próprio, não poderiam mesmo utilizar-se de um vocabulário que deixasse de refletir, em certa medida, o viés ideológico do meio ao qual eles gostariam de se filiar: o dos Sapientíssimos. Esse é um processo até muito aceitável. Mas há outros, subjacentes, que tornam tudo infernal. Um deles é o fato de que, quando há unanimismo em torno de uma idéia, as gerações distantes no tempo da criação dessa idéia já não sabem que ela é só uma idéia e não uma verdade auto-evidente. Assim, repetem-na por cacoete. Assim, não é a idéia de plano que é boa, e sim o fato de que alguém, em algum lugar, transmita a sensação de plano, os sinais de que tudo está sob controle.
Planos não se aplicam a tudo. Todas as tentativas de planificar a Economia, em qualquer época e em quaisquer condições, acabaram em choro e ranger de dentes. Ninguém pode planejar a vida como um todo, nem a própria nem as dos outros. Porque a planificação não é um bem em si, é só uma técnica, aplicável ou não, a um ou outro fim. Há, ademais, o fato de que a imensa maioria dos atos da vida exigirem certo improviso, estejam eles dentro de um plano ou não. O campo da aplicação implacável do plano é sempre um recorte de uma visão utilitária da realidade: não é a vida.
Daí o absurdo de se utilizar a palavra “plano” como se utiliza a palavra “sodomia”, e tudo dar no mesmo no final. Em 1994, às vésperas da Copa do Mundo dos EUA, a Gazeta Esportiva publicou um artigo no qual dizia que a preparação da seleção havia melhorado um pouco, mas não o suficiente. O motivo? Moracy Santana havia assumido a preparação física do escrete, o que denotava um planejamento moderno. Mas nem tudo estava perfeito: a CBF havia descurado da necessidade de se contratar... “uma nutricionista”! Estava escrito assim mesmo: “uma” nutricionista. A obsessão com o preenchimento de pré-requisitos de cartilha era tão grande que o articulista dava a entender que, se contássemos com um macho na nutrição, estaríamos perdidos. E se fosse viado, podia? Isso não ficou claro. O que ficou claro é que o nome de Moracy exercia efeitos hipnóticos no animal, porque estava associado ao verbete “planejamento”, marca registrada do marketing do Morumbi.
Não estou dizendo que planejar não seja bom, ou que os clubes devam agir como se fossem a quitanda do bairro. Também não estou dizendo que o São Paulo não planeje nada ou que seus planos só possuam cunho publicitário. Percebam o que eu digo: o planejamento do São Paulo é elogiado porque o clube ganha; quando vencem o Palmeiras ou o Corinthians, porque montaram equipes mais fortes, subitamente a “modernidade” deixa de ser a razão de tudo - e aí, enfim, a gente pode falar um pouco de futebol. O caso é que os times, ao longo dos anos, fazem planos felizes ou infelizes, têm times bons e maus, são mais ou menos fortes politicamente, mas se diferenciam minimamente no que diz respeito à organização, à disponibilidade material e mesmo, por último mas não somente, à qualidade técnica de suas equipes. E há exceções mesmo nesses ciclos. Quando tanto Palmeiras quanto Corinthians obtiveram recursos para montar equipes infinitamente mais fortes que as do São Paulo, como nas eras Parmalat/HMTF, nem todo o planejamento, estrutura e organização do mundo puderam fazer com que o São Paulo vencesse mais do que dois campeonatos regionais, enquanto seus adversários refestelavam-se com Campeonatos Brasileiros, Libertadores, Copas do Brasil e Mercosul e, ainda, mais regionais que o próprio São Paulo. Naquela época, o São Paulo trocava de técnico como um verdadeiro Corinthians e sua torcida humilhava jogadores qual fosse uma verdadeira Mancha Alviverde no cio. Houve desorganização? Faltou planejamento? Faltou estrutura? Na medida dos clubes brasileiros, não. Não, não e não. O que faltava era time. E Palmeiras e Corinthians, teriam vencido o que venceram sem organização, estrutura e planejamento? Não, não e não. Mas sem time não teriam feito nada.
Há um problema de comunicação com nossos jornalistas esportivos. Se Palmeiras e Corinthians inventarem umas siglas bem boas para seus departamentos e arrumarem uns sujeitos bem pedantes para dar entrevistas, com o tempo, quem sabe, poderão converter-se em paradigmas supimpas de organização estrutural planejada retal. Ganhando, todos elogiarão seus respectivos pompoarismos institucionais. Perdendo, passarão por maus bocados, mas poderão se consolar vendo a imprensa chateada com essa torcida irascível que xinga o fofo do Cacá (me recuso, de hoje em diante, a lançar mão da grafia diversa da original de um apelido horroroso, cuja modificação se deu sob a orientação de marqueteiros semi-analfabetos) ou coisa similarmente fofinha e doce.
Melhor do que isso seria ver nossos cronistas largarem de frescura e começarem a fazer as cosias por gosto, não por servilismo.
É só ligar a palavra ao seu sentido e tudo fica mais calmo. A gente pode até parar de falar merda e começar a conversar sobre futebol.
(*) André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas publicações eletrônicas.
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