domingo, 25 de julho de 2010




O falso poema de Borges



* Por Eustáquio Gomes

Vá lá que você não goste de ler poemas; pouca gente gosta. Não é um defeito irreparável. Mas daquele poema póstumo de Borges, ah, desse você iria gostar. Intitula-se "Instantes" e começa assim:

Se eu pudesse viver novamente a minha vida,
na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.


Nunca tive o impulso de levar um poema no bolso, como se faz com os documentos e retratinhos de família, mas esse eu levaria sim. Arrependi-me de não tê-lo recortado daquele jornal onde um dia o li, encantado mas distraído, como se poemas assim houvesse por aí aos quilos. Tinha-me agradado sobretudo aquele trecho em que Borges dizia:


Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um termômetro
sem uma bolsa d'água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas;
se voltasse a viver, viajaria mais leve.


Mais tarde andei procurando esse poema nos livros e antologias de Borges, mas não o encontrei em parte alguma. Lembrava-me vagamente de um ou outro verso assim ou assado, em que o poeta dizia que se tivesse a chance de começar de novo "correria mais riscos, viajaria mais, tomaria mais sorvete e menos lentilha, teria mais problemas reais e menos problemas imaginários".


Outro dia descobri que o meu mestre e amigo Isolino Siqueira leva há anos o mesmíssimo poema dobrado na carteira, como um talismã, uma oração. Vez por outra o desdobra e lê. Segundo me disse, seu verso preferido é aquele que reza:


Se eu pudesse voltar a viver,
começaria a andar descalço no começo da primavera
e continuaria assim até o fim do outono

Naturalmente, fiquei contentíssimo por ele ser devoto de Borges e ainda mais por reencontrar o poema. Concordamos nisso: aquele era o ponto alto do poeta argentino. Desta vez não deixei passar a ocasião: pedi o recorte emprestado e tirei uma cópia.


E agora esta: uma notícia de jornal pretende que o poema não é de Borges, que se trata de uma falsificação, que Borges nunca o escreveu e que seu verdadeiro autor é uma certa Nadine Stair.




Minha primeira reação foi de ceticismo, recuso-me a crer nisso. Mas o jornal diz que a própria viúva de Borges é que veio a público denunciar a fraude: Borges não só não seria o autor do poema como tampouco seria capaz de silogismos tão simplórios. Embasbaquei. Vá lá que não estejam ali os tigres, os labirintos e os espelhos. Mas mandar o poema assim ao limbo da mediocridade, isso me parece um pouco demais.


Procuro o Isolino para desabafar:
— Logo agora que estava me acostumando sem os sapatos.
E ele, imperturbável:
— Para mim não faz a menor diferença. Vou continuar a levar o poema na carteira.


Não só ia continuar agindo assim, como o leria com fé toda vez que lhe desse na telha. Do contrário teria de voltar à velha conduta de não correr riscos, de nunca subir uma montanha, jamais nadar num rio. Depois de refletir um pouco, sou obrigado a concordar com ele. Sim, talvez seja melhor preservar a ilusão de vir a ser um alpinista ou de poder nadar contra a corrente a sacrificar-se em nome da verdade literária. Portanto, abaixo Borges! Viva Nadine Stair.


Mas quem diabo é Nadine Stair?


• Jornalista e escritor mineiro, radicado em Campinas/SP, autor dos livros “A febre amorosa” (romance), “Cavalo inundado” (poesia), “Mulher que virou canoa” (contos), “Os jogos de junho” (novela) e “Hemmingway: sete encontros com o leão” (ensaio biográfico).

Um comentário:

  1. Nessa altura, de fato não importa o autor. A mensagem tornou-se maior do que ele.

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