quarta-feira, 1 de julho de 2009


O poema das crianças traídas

* Por Lindolfo Bell

Eu vim de um montão de coisas destroçadas.
Eu tentei unir células e nervos, mas o rebanho morreu.
Eu fui à tarefa num tempo de drama.
Eu cerzi o tambor da ternura, quebrado.
Eu fui às cidades destruídas para viver os soldados mortos.
Eu caminhei no caos com uma mensagem.
Eu fui lírico de granas presas à respiração.
Eu visualizei as perspectivas de cada catacumba.
Eu não levei serragem ao corpo dos ditadores.
Eu recolhi as lágrimas de todas as mães numa bacia de sombra.
Eu tive a função de porta-estandarte nas revoluções.
Eu amei uma menina virgem.
Eu arranquei das pocilgas um brado.
Eu amei os amigos de pés no chão.
Eu fui a criança sem ciranda.
Eu acreditei numa igualdade total.
Eu não fui canção, mas grito de dor.
Eu tive por linguagem materna, roçar de bombas, baionetas.
Eu fechei-me numa redoma para abrir meu coração triste.
Eu fui a metamorfose de Deus.
Eu vasculhei nos lixos para descobrir a pureza.
Eu desci ao centro da terra para colher o girassol que morava no eixo.
Eu descobri que são incontáveis os grãos no fundo do mar.
Mas são raros os que sabem o caminho da pérola.
Eu tentei persistir para além e aquém do ser humano, o que foi errado.
Eu procurei um avião liquidado para fazer a casa.
Eu inventei um brinquedo das molas de um tanque enferrujado.
Eu construí uma flor de arame farpado para levar na solidão.
Eu deixei um balde no poço para salvar o resto do mundo.
Eu nasci conflito para ser amalgama.
Eu sou da geração das crianças traídas.
Eu tenho várias psicoses que me invalidam.
Eu sou o automóvel a duzentos quilômetros por hora
com o vento a bater-me na cara na disputa da última loucura que adoeceu.
Eu sou o anti-mundo na medida em que se procura o não-existir.
Eu faço de tudo a fonte para alimentar a não-limitação.
Eu sei que não posso afastar o corpo que não transcende.
Mas sei que posso fazer dele a catapulta para sublimar-me.
Meu coração é um prisma.
Eu sou o que constrói porque é mais difícil.
Eu sou o que não é contra; mas o que se impõe.
Eu sou o que quando destrói, destrói com ternura.
E quando arranca, arranca até a raiz.
E põe a semente no lugar.
Meu coração é um prisma.
Eu sou o grande delta dos antros.
Os amigos mais atentos são as águas que me acorrem.
Eu sou o que está com você, solitário.
Quando evito a entrega, restrinjo-me.
Quando laboro a superfície é para exaurir-me.
Quando exploro o profundo é para encontrar-me.
Quando estribo os braços e pernas na praça o não é alterável.
É para andar a galope sobre a não liberdade.
Sem bandeiras que indiquem norte qualquer avanço das caliças.
Sem porte fixo a espera, nem lar de maternas mãos,
ou rua de reencontro
instalo os meus adeuses.
Sem credo a não ser a humanidade dos que nos amam e desamam,
anuncio a catarse numa sintaxe de construção.
Eu escreverei para um universo sem concessões.
Eu saberei que a morte não é esterco
mas infinita capacidade de colher no chão menos adubado,
que poderei sorvê-lo como laranja que esqueceu de madurar,
que serei o alimento para o verme primeiro da madrugada,
que a vida é a face que se incorpora em forma de espasmo.
Que tudo será diferente, que tudo será diferente, tão diferente...
Eu quero um plano de vida para conviver.
Ostentarei minha loucura erudita.
Eu manterei meu ódio a todos os cetros, cifras, tiranos e exércitos.
Eu manterei meu ódio a toda a arrogante mediocridade dos covardes.
Eu manterei meu ódio contra a hecatombe do pseudo-amor entre os homens.
Eu manterei meu ódio contra os fabricantes das neuroses de paz.
Eu direi coisas sem nexo em cada crepúsculo de lua nova.
Eu denunciarei todas as fraudes da nossa sobrevivência.
Eu estarei na vanguarda para conferir esplendores.
Eu me abastardarei da espécie humana.
Mas eu farei exceções a todos aqueles que souberam amar.

* Poeta.

Um comentário:

  1. poema muito lindo
    graças ao nosso senhor e salvador jesus cristo esse lindo garoto nao sofre mais agora e so alegria

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