

Deem uma nova razão ao sol
* Por Eduardo Murta
Ai dos que erguessem a voz contra aquilo. Que fizessem tão-somente reverências ao ritual para lá de secular nos Brejeiros de Verdelândia. Ninguém jamais ousara contestar o modelo que, no fundo, criara dois tipos de existência no lugarejo. Parte da gente era dedicada ao ofício de viver a vida puxando a corda ao limite, como se amanhã fosse se despedir dos prazeres de rever os amigos, bebericar, jogar baralho, fazer turnês gastronômicas e, prazer dos prazeres, variar de parceiros à cama.
Outra cota arrastada a uma atmosfera soturna. Praguejando dores nas juntas, tosses que perduravam como fossem maldição, e um desconfortável namoro com a morte. Ali, ninguém era assim por querer próprio. Mas por força de tradição. Começara na linha dos tataravós dos tataravós e viera reinando como um decreto. Era prerrogativa do Conselho de Notáveis, e de ninguém mais, a decisão sobre os que tinham direito a viver ou morrer.
A mais discreta reação era paga com lição pública. Zé Pedro, beirando os 12 anos, fase de bodoques, provara da fúria quatrocentona. Comentara, ingênuo, sobre injustiças e incompreensões. Era ele, nu, ponta-cabeça, em exposição dia seguinte na praça central. E a comunidade convocada sumariamente a bodoqueá-lo ao ponto em que compreendesse como era sagrada a carta de princípios local.
Um dos olhos já havia saltado das órbitas, e pelo menos quatro dentes pendiam-lhe em sangue, quando assinalou que sim, que estava de acordo com todas as normas. E que reconhecia os notáveis como figuras acima do bem e do mal. Teve ainda que retornar aos bancos de escola, a que reestudasse os princípios da comunidade, relesse sobre a visão de Dom Felício e a confirmação dele como guardião de Brejeiros de Verdelândia. Mais: que visse como natural o sacrifício de um dos moradores à chegada de cada verão.
Assim, em crédito com o sol, salvariam a lavoura. Os eleitos eram postados sobre plataformas ao topo das árvores. Experimentavam dolorosa espera, a que o astro rei exaurisse-lhes até a última gota de suor. Desidratasse-lhes a alma. E que a tudo se assistisse com reverência tumular. Por lá os costumes seguiram assim, até que, timidamente, fossem aflorando os sinais de resistência. As primeiras reuniões aos porões e, por fim, a decisão de atacar os símbolos que eram mais caros ao governo.
Foi que o Museu dos Sacrifícios, em que os corpos ressequidos ornavam câmaras inteiras, acabou saqueado. Os mortos retirados dali e, em minutos, o fogaréu se anunciava como clarão desafiador, plena madrugada. As labaredas arderam até que o dia esquadrinhasse os cenários: os revoltosos brandindo a carcaça tosca dos sacrificados. Noutra ponta, o Conselho de Notáveis, em camisolões, perplexo.
Pior. Cercado em toda a circunferência da praça, vendo a guarda especial estrategicamente se afastar. Pronto surgiram as pás, a que cuidassem de prover sepultura digna àquela gente. E sem direito sequer a uma gota de água ou à interrupção das escavações. Era dia de sol escaldante, e o grupo emoldurou contraluz que jamais será esquecido naquelas terras. As silhuetas estranhamente namorando a morte.
E se tanto acreditavam naquilo, mal nenhum fariam se partissem para um encontro definitivo com tudo de bom ou ruim que simbolizasse uma entrega ao astro rei. A quarta-feira, então, foi lugar de definitiva celebração pagã. Os 15 conselheiros decorando o cume das gameleiras, a que acertassem suas contas com a história. E o povaréu agora crendo que o sol jamais baixaria de novo ali para subtrair-lhes. Mas para dar o de prover.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
* Por Eduardo Murta
Ai dos que erguessem a voz contra aquilo. Que fizessem tão-somente reverências ao ritual para lá de secular nos Brejeiros de Verdelândia. Ninguém jamais ousara contestar o modelo que, no fundo, criara dois tipos de existência no lugarejo. Parte da gente era dedicada ao ofício de viver a vida puxando a corda ao limite, como se amanhã fosse se despedir dos prazeres de rever os amigos, bebericar, jogar baralho, fazer turnês gastronômicas e, prazer dos prazeres, variar de parceiros à cama.
Outra cota arrastada a uma atmosfera soturna. Praguejando dores nas juntas, tosses que perduravam como fossem maldição, e um desconfortável namoro com a morte. Ali, ninguém era assim por querer próprio. Mas por força de tradição. Começara na linha dos tataravós dos tataravós e viera reinando como um decreto. Era prerrogativa do Conselho de Notáveis, e de ninguém mais, a decisão sobre os que tinham direito a viver ou morrer.
A mais discreta reação era paga com lição pública. Zé Pedro, beirando os 12 anos, fase de bodoques, provara da fúria quatrocentona. Comentara, ingênuo, sobre injustiças e incompreensões. Era ele, nu, ponta-cabeça, em exposição dia seguinte na praça central. E a comunidade convocada sumariamente a bodoqueá-lo ao ponto em que compreendesse como era sagrada a carta de princípios local.
Um dos olhos já havia saltado das órbitas, e pelo menos quatro dentes pendiam-lhe em sangue, quando assinalou que sim, que estava de acordo com todas as normas. E que reconhecia os notáveis como figuras acima do bem e do mal. Teve ainda que retornar aos bancos de escola, a que reestudasse os princípios da comunidade, relesse sobre a visão de Dom Felício e a confirmação dele como guardião de Brejeiros de Verdelândia. Mais: que visse como natural o sacrifício de um dos moradores à chegada de cada verão.
Assim, em crédito com o sol, salvariam a lavoura. Os eleitos eram postados sobre plataformas ao topo das árvores. Experimentavam dolorosa espera, a que o astro rei exaurisse-lhes até a última gota de suor. Desidratasse-lhes a alma. E que a tudo se assistisse com reverência tumular. Por lá os costumes seguiram assim, até que, timidamente, fossem aflorando os sinais de resistência. As primeiras reuniões aos porões e, por fim, a decisão de atacar os símbolos que eram mais caros ao governo.
Foi que o Museu dos Sacrifícios, em que os corpos ressequidos ornavam câmaras inteiras, acabou saqueado. Os mortos retirados dali e, em minutos, o fogaréu se anunciava como clarão desafiador, plena madrugada. As labaredas arderam até que o dia esquadrinhasse os cenários: os revoltosos brandindo a carcaça tosca dos sacrificados. Noutra ponta, o Conselho de Notáveis, em camisolões, perplexo.
Pior. Cercado em toda a circunferência da praça, vendo a guarda especial estrategicamente se afastar. Pronto surgiram as pás, a que cuidassem de prover sepultura digna àquela gente. E sem direito sequer a uma gota de água ou à interrupção das escavações. Era dia de sol escaldante, e o grupo emoldurou contraluz que jamais será esquecido naquelas terras. As silhuetas estranhamente namorando a morte.
E se tanto acreditavam naquilo, mal nenhum fariam se partissem para um encontro definitivo com tudo de bom ou ruim que simbolizasse uma entrega ao astro rei. A quarta-feira, então, foi lugar de definitiva celebração pagã. Os 15 conselheiros decorando o cume das gameleiras, a que acertassem suas contas com a história. E o povaréu agora crendo que o sol jamais baixaria de novo ali para subtrair-lhes. Mas para dar o de prover.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.
Caro Murta, sua capacidade de prospecção mitológica imergiu até alcançar, imaginosamente, corajosamente, as profundas de uma comunidade ainda em estado arcaico, agrário. A força da terra e das pulsões primitivas impregnam o texto de sugestões perturbadoras numa sintonia direta com a parte mais esquecida, embora viva, latente, do leitor. Há um núcleo vigoroso e neurótico na narrativa que arrasta o leitor a um abismo do qual se emerge mais enriquecido. Coisa de louco, sô! Parabéns.
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