sexta-feira, 3 de julho de 2009




Antonio Maria de Pernambuco e do Mundo

* Urariano Mota


A memória da gente anda muito esquecida. Quase ninguém lembrou neste 2009 os 88 anos do nascimento de Antonio Maria. Se em toda a grande e média imprensa nada se disse, não foi por falta da importância de um certo Antonio Maria, que se apresentava como “cardisplicente”, mistura de doente do coração com displicente. E tanta coisa havia e há para falar sobre ele!

Nascido no Recife em 17 de março de 1921, se apenas fosse compositor, deveria ter merecido registros e especiais no rádio, na televisão e nos jornais. Autor de 62 músicas, de canções eternas como Frevo número 1, Ninguém me ama, Manhã de carnaval, Menino grande, Suas mãos, O amor e a rosa, Valsa de uma cidade, e, de passagem, digamos assim, autor desta vã promessa, "nunca mais vou fazer o que o meu coração pedir, nunca mais ouvir o que o meu coração mandar", haveria muito o que falar sobre esse compositor de letras que são a ternura em quintessência.

Num coluna de revistas de curiosidades e fofocas, poderia ser dito que foi marido de Danuza Leão, roubada por ele do seu patrão, o grande jornalista Samuel Wainer. E que, ao receber o troco mais adiante, ficando só, morreu de fossa e de amor, em uma madrugada três e cinco, talvez. Que feio, grande e gordo, conquistava mulheres pelo poder da lábia e da inteligência. Que foi ameaçado por Sérgio Porto (sim, o Stanislaw), por ter servido de conselheiro sentimental a uma namorada de Sérgio. E que ao se apresentar como Carlos Heitor Cony a uma madame, levou-a para a cama, para depois contar ao verdadeiro Heitor, “Cony, você broxou”.

Mas ele poderia ter sido lembrado, reverenciado, e lido principalmente por suas crônicas, que estão entre as maiores e melhores já escritas no Brasil. Suas crônicas, quase dizia, suas mãos, misturam humor, crueldade e lirismo, a depender dos dias e da sua vida, que não eram iguais, para ele e para ninguém. Como neste perfil arguto de Aracy de Almeida:

"Não é bonita, sabe disso e não luta contra isso. Não usa, no rosto, baton, rouge ou qualquer coisa, que não seja água e sabão. Ultimamente corta o cabelo de um jeito que a torna muito parecida com Castro Alves... Faz de cada música um caso pessoal e entrega-se às canções do seu repertório como quem se dá um destino. Não sabe chorar e não se lembra de quando chorou pela última vez. Mas a quota de amargura que traz no coração, extravasa nos versos tristes de Noel: `Quem é que já sofreu mais do que eu?/ Quem é que já me viu chorar?/ Sofrer foi o prazer que Deus me deu´... e vai por aí, sem saber para onde, ao frio da noite, na espera de cada sol, quando o sono chega, dá-lhe a mão e a leva para casa".

Ou aqui, dias antes de morrer:

“Há poucos minutos, em meu quarto, na mais completa escuridão, a carência era tanta que tive de escolher entre morrer e escrever estas coisas. Qualquer das escolhas seria desprezível. Preferi esta (escrever), uma opção igualmente piegas, igualmente pífia e sentimental, menos espalhafatosa, porém. A morte, mesmo em combate, é burlesca...

Só há uma vantagem na solidão: poder ir ao banheiro com a porta aberta. Mas isto é muito pouco, para quem não tem sequer a coragem de abrir a camisa e mostrar a ferida”.

E por fim aqui, nestas considerações sobre o sono:

"** Ah, que intensos ciúmes, no passado e no futuro, sobre a nudez da amada que dorme! Só você a viu, só você a verá assim tão bela!
** Nas mulheres que dormem vestidas há sempre, por menor que seja, um sentimento de desconfiança.
** A amada tem sob os cílios a sombra suave das nuvens.
** Seu sossego é o de quem vai ser flor, após o último vício e a última esperança.
** Um homem e uma mulher jamais deveriam dormir ao mesmo tempo, embora invariavelmente juntos, para que não perdessem, um no outro, o primeiro carinho de que desperta.
** Mas, já que é isso impossível, que ao menos chova, a noite inteira, sobre os telhados dos amantes".

A boa memória conta que Antonio Maria exclamava no rádio, ao ver um jogador chutar fora do gol: Bola no fotógrafo!.Nesse ano de 2009, para a mídia que não o lembrou, também vale dizer: bola no fotógrafo.

* Jornalista e escritor

6 comentários:

  1. A sedução vai além da inteligência e das palavras usadas. Você também é um mestre Urariano. Seria capaz de amar Antônio Maria, assim como alguém mais que usasse o sofrimento como sentimento de prazer. Tive a lacuna de desconhecer Antônio Maria, não fosse pelas palavras de Danuza Leão e o seu(dela) " Quase tudo". Estranho caminho de mágoa e dor que Antônio Maria, sem sobrenome, trilhou. Amar naquele tempo parece que era melhor.

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  2. Quando Maria morreu, em 1964, eu tinha 13 anos, mas ouvi falar dele desde a infância. Foi recifense luminoso, homem de personalidade única e de múltiplos talentos que amou esta minha cidade como poucos. Parabéns pela lembrança, caro Urariano, e pelo texto tão correto quanto emocionado que só um grande jornalista pode criar.

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  3. Eu acabei de ler esse livro recentemente. Achei muito bom. Sabe que eu me identifiquei muito com o Antônio Maria?

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  4. Mas que maravilha, Urariano. Qe bom que você se lembrou dele, o grande tônio Maia.Eu me esqueci do meu grande amor literário, embora tenha devorado este "Uum Homem Chamado Maria".Depois dei-o de presente a um amigo querido. Sim, porque Antônio Maria não se dá a qualquer um. Embora algumas vezes ele tenha se dado a qualquer uma, (como quando ele broxou?). Se o tivesse conhecido pessoalmente, com toda certa teria me apaixonado por ele. Não resistiria a tanta sensibilidade.obrigada, Obrigada! OBRIGADA!

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  5. Agradeço a Risomar, Daniel, Mara e Gustavo. Em relação ao cronista Antonio Maria eu não devo agir como o matuto que conduzia imagens de santos no seu burrinho. Por onde ele passava,no sertão, o povo o saudava com muita fé. O matuto pensava que a saudação era dirigida a ele. Mas eu sei que os seus comentários são para Antonio Maria. Sei e fico muito contente. E toco o meu burrinho.Abraços.

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