sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Ivo Pitanguy em O Pasquim


* Por Urariano Mota


A memória da gente é maior e mais infinita que o google. Isso é de um elementar tão óbvio, mas tão ainda assim posto em dúvida, que nos vemos obrigado a repetir, e até mesmo fundamentar semelhante obviedade. Para ficar apenas no mais evidente do óbvio: há um universo infinito de informações que se encontra à margem da web. Mais: há uma faixa infinita de experiência humana fora da web, até porque ainda não foi sequer escrita – ou “registrada”, como se diz. E nesse maravilhoso particular está um dos papeis da literatura – o de ser a memória fundamental do que ainda não aflorado em palavras.   

Mas essa breve introdução, talvez tola, vem a propósito do falecimento de Ivo Pitanguy, nesse recente sábado. Eu me lembrava de uma entrevista que ele havia dado ao jornal O Pasquim, mas não possuía absoluta certeza (eu não estaria confundindo com a entrevista de Niemeyer, outro brasileiro da sua altura?). E assim fui para a “memória” auxiliar do google, e lá pude ver que, de fato ele havia sido entrevistado pelo necessário jornal dos tempos da ditadura. Mas da entrevista apenas se fazia uma curta menção, de passagem, entre outros nomes de ilustres entrevistados. Entrevista mesmo, que é bom, nada, em canto nenhum. Então, para minha sorte - e trabalho neste domingo – fui para o volume II da antologia de O Pasquim, que tenho em casa.

É desse livro que copio trechos da fala de Ivo Pitanguy ao jornal em janeiro de 1973.

“Millôr – Ivo Pitanguy, de todos os homens deste país que já tem aproximadamente 100 milhões, eu considero você o mais realizado. O que você diz a respeito disso?

Pitanguy – Eu não tenho nada de sucesso. Acho o sucesso uma coisa que, na realidade, ninguém persegue. O negócio é que eu gosto do que faço e tudo que eu faço me identifica com o que eu faço.  Eu continuo hoje da mesma forma como comecei a medicina: tenho as mesmas amarguras, as mesmas incertezas. Apenas sei o que estou fazendo, o que eu gosto de fazer, e faço com a mesma intensidade.

Jaguar – Eu não persigo o sucesso porque eu não sei pra que lado ele foi.

Pitanguy – Eu não escolhi uma profissão porque a profissão é de sucesso. Eu escolhi uma profissão que naturalmente veio a mim. Em qualquer profissão o problema é o mesmo............

Ziraldo – Você não percebeu que a cirurgia plástica era o seu caminho não, né? Você foi levado a ela.

Pitanguy – Não, não. Ninguém faz isso não. Eu acho que qualquer coisa que a gente faz, a gente é levado aos poucos por forças instintivas que nós temos. O que acontece hoje em todas as especialidades humanas é isso.....

Ziraldo – Você foi o primeiro especialista do Brasil?

Pitanguy – Não, nunca ninguém é primeiro especialista em coisa alguma. Eu tenho impressão que talvez o que eu tenha feito no Rio de Janeiro, de uma certa forma, é ter procurado dar a ela um sentido diferente. Quer dizer: eu coloquei a cirurgia estética e a cirurgia reparadora como uma única especialidade, sem separá-las.....

Yllen – Eu sei que Ivo uma vez, em Moscou, numa sala de cirurgia, encontrou uma médica fazendo uma operação numa criança na orelha. A criança tinha a orelha popularmente conhecida como orelha de abano.

Pitanguy – Sempre-alerta.

Yllen – A médica, então, mostrou a técnica que estava sendo usada e depois disse a ele que tinha aprendido tudo numa publicação, e que era de um médico chamado Pitanguy. Ela não sabia que estava falando com o próprio.....

Ivan Lessa – Você tem discípulos da Cortina de Ferro?

Pitanguy – Já tive vários. Tenho uma grande troca de correspondência, já dei conferências na Rússia, em Leningrado, Moscou, e já treinei aqui pessoas vindas da Áustria. E a Rússia depende do intérprete. Eu falo seis idiomas patrioticamente.

Millôr – Como é que se faz no momento a cirurgia plástica no Brasil, no sentido de extensão de prática e qualidade de prática?

Pitanguy – Eu acho que o brasileiro é muito dotado para a medicina porque ele é delicado, tem bom trato e se interessa pelo ser humano. Não sei se vocês concordam com isso, mas é uma qualidade que eu acho fundamental.

Millôr – A sua opinião sobre a medicina brasileira deve ter ficado melhor quando você volta da União Soviética, não é não?

Pitanguy – Não é não. Na União Soviética, o que houve é uma coisa que pode acontecer no Brasil ou em qualquer outro país – é a diluição da medicina. Se nós pegarmos o Brasil inteiro, nos 100 milhões, e a distribuição da medicina por toda essa população, nós temos lacunas imensas. Quando falamos que a medicina brasileira é muito boa em certos núcleos, não devemos nos esquecer de que pelo Brasil inteiro tem regiões que nunca viram médicos. Mas é claro que tem melhorado.

Ziraldo – Em que medida o seu sucesso pessoal, a sua personalidade, o seu charme têm prejudicado você, eticamente, na medicina?

Pitanguy – Eu sei perfeitamente o que devo ou não devo dizer. Quando você trabalha e está consciente do que produz, você não está com a preocupação de destruir ninguém. E quando querem destruí-lo, se você se sente profissionalmente íntegro, você recebe aquilo como uma fonte permanente de estímulo. Pra ter algum sucesso e conquistar alguma coisa na vida, você tem sempre que contar com o grupo de indivíduos descontentes. Mas eu não creio que eles são específicos da cirurgia plástica, ou de quaisquer atividades criativas. Você encontra na literatura, na pintura, em qualquer atividade humana.....

Ziraldo – Em que medida o seu êxito mundano te ajudou na vitória da sua profissão?

Pitanguy – Isso é muito difícil saber. Pelo seguinte: eu acho que nunca fiz mundanismo quando comecei a profissão. O mundanismo que eu tenho – e a minha mulher sabe disso há muito tempo – sempre foi o contrário. Foi uma consequência das obrigações que eu tenho; porque todo mundo que me conhece sabe que, dentro das minhas obrigações, eu sou um homem que sempre chego em casa tarde e saio cedo.......

Millôr – Qual é a sua rotina diária? Você acorda, faz ginástica, lê Paul Valéry

Pitanguy – O que eu faço desde garoto – eu sempre tive noção de que o tempo é uma bola que cai entre os dedos ......

Ivan – Qual o horário que você gosta de operar?

Pitanguy – Prefiro operar na parte da manhã até o princípio da tarde. Eu almoço muito leve; geralmente, não tenho hora de almoço.

Ivan – Você volta a trabalhar logo depois do almoço?

Pitanguy – Não, porque se você for trabalhar logo em seguida, em qualquer profissão... Mas de qualquer maneira há uma certa intuição de se você comer um pouquinho mais dá congestão. Bom, o meu almoço mesmo normalmente faz parte do meu dia de trabalho; daí vem o motivo da concentração......

Sérgio – Operação plástica deixa marca? Onde? E aquela história do umbigo que foi parar na testa?

Pitanguy – Ah, isso é caricatura. É óbvio que deixa marca, dependendo do indivíduo que tratar. Agora, se fizer uma operação no nariz e operar por dentro, não deixa marca nenhuma. Mas isso não é mágica. Qualquer cirurgia que você cortar deixa marca. Agora, dependendo da qualidade de cicatrização, como a pessoa sara, essa marca será maior ou menor, e também conforme a localização.

Sérgio – O que o Ivo Pitanguy tem? Casas, ilhas, barcos, quadros, armas, cães de raça, avião a jato, cascatas na sala?

Pitanguy – Não tenho avião e não tenho navio. Eu não tenho fortuna. A minha fortuna são meus amigos e o meu bem-estar. Eu vivo bem e ganho bem.

Millôr – Você disse uma vez pra mim que teve uma experiência fascinante quando queimou aquele circo em Niterói. Você contou casos emocionantes. Essa seria uma das suas experiências mais emocionantes como cirurgião? Conta como foi.

Pitanguy – Eram mais de duas mil pessoas. De repente, numa cidade onde o hospital universitário estava fechado, você tem mais de quinhentas pessoas queimadas! Eu contei com todos os meus assistentes e contei com a solidariedade de toda a classe médica! O mais importante foi que organizaram um grupo de trabalho e depois continuaram. Na fase inicial da emoção, a solidariedade é total. Mas, depois das primeiras semanas, vai se restringindo e o cara é até esquecido. Lá foi diferente. Quando tive necessidade de pele congelada – que é uma pele que funciona como curativo biológico; uma coisa temporária, mas que era útil naquelas circunstâncias – o Hospital da Marinha americana nos deu o que eu pedi: mais de trinta e tantos mil centímetros.

Millôr – Você não acha que essas pequenas tentativas de socialização da medicina no Brasil, tipo INPS etc., são uma socialização contra o médico e contra o paciente ao mesmo tempo?

Pitanguy – No Rio, a gente não pode falar muito. Mas quando você visita certas cidades do interior, onde a capacidade aquisitiva da população é muito pequena e os serviços foram entregues a indivíduos realmente dedicados, houve uma melhoria no tratamento geral, sobretudo pelos médicos mais jovens. Isso dá uma oportunidade ao médico jovem, hoje, de poder ir a várias capitais onde antes não existia o menor serviço médico”.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.




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