quinta-feira, 11 de agosto de 2016

A vida trágica de Dora Diamant, a última namorada de Kafka

* Por Luciano Trigo


Foi amor à primeira vista. Franz Kafka e Dora Diamant se conheceram em julho de 1923: ele, com 40 anos, estava de passagem por um balneário no litoral norte da Alemanha, onde ela, com 25, trabalhava em uma colônia de férias para crianças judias. Dois meses depois estavam morando juntos em Berlim, onde pretendiam se casar. Os planos foram interrompidos pelo agravamento da tuberculose que acabou matando o escritor em junho do ano seguinte. A história é bem conhecida, mas a vida de Dora antes e depois de Kafka não. Kathi Diamant (nenhum parentesco) decidiu investigar quem foi essa mulher, e o resultado foi o livro “O último amor de Kafka – O mistério de Dora Diamant” (Via Lettera, 296 pgs. R$ 58).

Os relacionamentos anteriores do autor de “A metamorfose” com mulheres – Milena Jesenká e Felice Bauer são as mais conhecidas, com noivados desfeitos, refeitos e desfeitos novamente – tinham sido bastante complicados, para dizer o mínimo. Em Dora, ele encontrou algo próximo da felicidade – até onde isso era possível para Kafka.

Dora cresceu em uma família judia ortodoxa na Polônia, mas cedo se rebelou contra o ambiente opressivo do lar e partiu para Berlim, em busca da liberdade – sem perder os laços, contudo, com a tradição judaica. Kafka, cujo pai opressor também o fizera se afastar de suas origens, enxergou nela o caminho para recuperar sua identidade: Dora lhe deu lições de hebraico, e o casal brincava com a ideia de recomeçar a vida na Palestina, onde abririam um restaurante. Kafka, por sua vez, ensinou Dora, que desconhecia seus textos, a respeitar a literatura como algo “sagrado, absoluto e incorruptível”.

Mas Kafka só ocupa a primeira terça parte do livro de Kathi Diamant, e depois dele a vida de Dora se cruzaria tragicamente com a História do século 20. Em 1926, ela começou a estudar teatro em Dusseldorf, chegando a se profissionalizar como atriz, mas o caos econômico e a turbulência política já tomavam conta do país. Com o sonho de uma carreira no teatro destruído, em 1929 Dora entrou para o Partido Comunista Alemão, o KPD. Dois anos depois se casou com um colega de partido, o economista Lutz Lask. Com a ascensão do nazismo, em 1933, Lutz foi preso e brutalmente interrogado. Em 1936, o casal fugiu para a Rússia, junto com sua filha Marianne.

Bem recebido num primeiro momento pelas autoridades em Moscou, o casal que fugia do nazismo logo se tornaria vítima do stalinismo. Era o período dos grandes expurgos e perseguições, e Lutz, acusado de espionagem, foi preso e enviado a um campo de trabalhos forçados, onde permaneceu por dez anos. Dora nunca mais o viu. Ela própria aguardava ser despachada para um Gulag quando recebeu autorização para deixar a Rússia com sua filha – possivelmente em troca de prestar serviços de inteligência para a Rússia. Na iminência da guerra, Dora conseguiu, após inúmeras tentativas frustradas, um visto de residência temporária na Inglaterra, onde, vivendo de bicos, ela encontrou uma nova razão de viver na associação com o poeta A.N.Stencl, com quem se empenhou na difusão da língua iídiche e sua literatura.

Quase todos os parentes de Dora morreram em campos de concentração. Em 1949, ela visitou os sobreviventes de sua família em Israel, onde sonhava se estabelecer. Mas, de volta à Inglaterra, foi diagnosticada com uma doença incurável nos rins, morrendo aos 52 anos, em 1954. Como se vê, longe de ser somente uma nota de rodapé para a história de Kafka, Dora Diamant viveu sua própria absurda e triste odisseia.

* Luciano Trigo é escritor, jornalista, tradutor e editor de livros.


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