Sonso?! De jeito e maneira!
* Por Lêda Selma
Sonso por conveniência, nordestino de nascença e curioso por vocação, desde criança, ele queria porque queria ser padre. Achava bonito aqueles homens embatinados e de semblantes sisudos, zanzirrezando, de um lado para outro, com as mãos enlaçadas ora na frente, ora atrás do corpo, olhos estatelados no chão e um alheamento de fazer gosto. Tampouco, cansava-se de apreciar, mesmo de longe, a rotina matinal dos padres, no pleno gozo do desjejum. De encher a boca e atiçar o estômago! Não que fosse comilão – os padres, sim, por fama ou tradição, sabia lá –, apenas, gostava de degustar mentalmente toda aquela fartura.
O menino propagava sua vocação sempre. Melhor, então, estagiar como coroinha – sugeriu um vizinho –. Depois, ascenderia a sacristão e, mais tarde, após o noviciado, ordenar-se-ia padre. Pensamento acionado, ação ativada. De imediato, carecia de certa intimidade com os rituais da igreja. As ladainhas, ah! decoraria todas! Algumas, até em latim, caso necessário; a preparação do altar para as missas e celebrações, outro passo importante do aprendizado. Enfim, prestaria muita atenção a tudo e, com destacado esforço, logo, logo, estaria afiado para a nobre função. E assim, o menino com jeito de sonso começou a envolver-se com as coisas relacionadas à igreja, o que provocou bastante entusiasmo no vigário. Alguns duvidaram de que aquele menino bronco fosse talhado para o ofício.
Não tardou nada, ele se arvorou em coroinha, com todo gosto e orgulho. Nas liturgias, vestia-se de branco (à moda camisolão), inundava o rosto com um ar de contrição e nos olhos deixava um brilho chamejante exalar alegria. O menino parecia anjo nessas ocasiões. No tempo vazio, arrumava o altar principal e os adjacentes, trocava os ornamentos, higienizava as imagens, fazia tudo o que um candidato a padre devia saber, exaltava-se todo confiante.
Certo dia, a empregada da casa paroquial abordou-o, indignada:
– Filhote de Cruz Credo, quem mandou você bulir com a Eulália? A pobre ficou toda amassada por causa de sua malinagem! E agora, perdeu o prumo. Nem pode mais ficar na igreja. O vigário vai saber...
– Eu, dona Santinha? Eu... eu nem conheço essa tal aí, juro! Também, não ia bulir com ela de modo algum, porque desejo ser padre e padre não tem tino pra essas coisas, não pode praticar essas bulições, ora! A moça tá mentindo, juro!
– Mexeu sim, seu canhudo (mistura de canhim com rabudo), e não jure falseado! O vigário vai lhe retorcer as orelhas e lhe arrejeitar pra bem longe, viu, enxerido! Moça...? Que moça?!
– A tal Eulália, ora essa!
– Não se faça de sonso, malino! Não falei de moça, falei da Eulália, que estava ali, ó, quietinha, naquele vaso vistoso, ladeando o altar, com suas flores avermelhadas.
Enquanto concluía os primeiros estudos, o menino resolveu trabalhar. Na padaria de “seu” Bruno, o italiano gordalhufo, estreou como assistente de padeiro. Porém, do que gostava mesmo era de entregar os pães à vizinhança, bicicletiano em sua magricela azul e de senilidade à vista. Assim, mal a manhã se arregalava no céu, rodas à obra.
Num certo dia, freguês novo. De riso escancarado e fala possante:
– Fico com os pães só se o pagamento for por quinzena.
– Por quinzena? Hã... por quinzena... Ah! sim, quinzena... (Ai, Santo protetor dos desvocabulados, diga-me, por misericórdia, o que é quinzena?). Se quiser, pode ser também por novena, trezena, tanto faz!
Aos treze anos, foi para o seminário. Lá, diziam que, ao ser ordenado, o rapaz submetia-se à castração. Temeroso, matutava: “É certo que meu patrimônio não tem utilidade para as funções sacerdotais, mas, por garantia, gostaria de preservar o inútil, pois vai que, lá na frente, lhe apareça serventia...”.
Apesar da dúvida, a ordenação. Uma cerimônia solene, emocionante. Sobre o tapete vermelho, deitado de bruços, forma de cruz, em sinal de humildade, o rapaz sentia a aflição cutucar-lhe o “patrimônio”.
No cumprimento do rito litúrgico, o bispo pedia: “Alva”. “Estola”. “Turíbulo”. “Mitra”. “Capa”.
– Epa! Capa?! Vixe, chegou a hora...! Melhor, desabalar-me em correria e salvar meu patrimônio. Capado? Nem pensar!
• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”, “Erro Médico”, “A dor da gente”, “Pois é filho”, “Fuligens do sonho”, “Migrações das Horas”, “Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não!”, entre outros.
* Por Lêda Selma
Sonso por conveniência, nordestino de nascença e curioso por vocação, desde criança, ele queria porque queria ser padre. Achava bonito aqueles homens embatinados e de semblantes sisudos, zanzirrezando, de um lado para outro, com as mãos enlaçadas ora na frente, ora atrás do corpo, olhos estatelados no chão e um alheamento de fazer gosto. Tampouco, cansava-se de apreciar, mesmo de longe, a rotina matinal dos padres, no pleno gozo do desjejum. De encher a boca e atiçar o estômago! Não que fosse comilão – os padres, sim, por fama ou tradição, sabia lá –, apenas, gostava de degustar mentalmente toda aquela fartura.
O menino propagava sua vocação sempre. Melhor, então, estagiar como coroinha – sugeriu um vizinho –. Depois, ascenderia a sacristão e, mais tarde, após o noviciado, ordenar-se-ia padre. Pensamento acionado, ação ativada. De imediato, carecia de certa intimidade com os rituais da igreja. As ladainhas, ah! decoraria todas! Algumas, até em latim, caso necessário; a preparação do altar para as missas e celebrações, outro passo importante do aprendizado. Enfim, prestaria muita atenção a tudo e, com destacado esforço, logo, logo, estaria afiado para a nobre função. E assim, o menino com jeito de sonso começou a envolver-se com as coisas relacionadas à igreja, o que provocou bastante entusiasmo no vigário. Alguns duvidaram de que aquele menino bronco fosse talhado para o ofício.
Não tardou nada, ele se arvorou em coroinha, com todo gosto e orgulho. Nas liturgias, vestia-se de branco (à moda camisolão), inundava o rosto com um ar de contrição e nos olhos deixava um brilho chamejante exalar alegria. O menino parecia anjo nessas ocasiões. No tempo vazio, arrumava o altar principal e os adjacentes, trocava os ornamentos, higienizava as imagens, fazia tudo o que um candidato a padre devia saber, exaltava-se todo confiante.
Certo dia, a empregada da casa paroquial abordou-o, indignada:
– Filhote de Cruz Credo, quem mandou você bulir com a Eulália? A pobre ficou toda amassada por causa de sua malinagem! E agora, perdeu o prumo. Nem pode mais ficar na igreja. O vigário vai saber...
– Eu, dona Santinha? Eu... eu nem conheço essa tal aí, juro! Também, não ia bulir com ela de modo algum, porque desejo ser padre e padre não tem tino pra essas coisas, não pode praticar essas bulições, ora! A moça tá mentindo, juro!
– Mexeu sim, seu canhudo (mistura de canhim com rabudo), e não jure falseado! O vigário vai lhe retorcer as orelhas e lhe arrejeitar pra bem longe, viu, enxerido! Moça...? Que moça?!
– A tal Eulália, ora essa!
– Não se faça de sonso, malino! Não falei de moça, falei da Eulália, que estava ali, ó, quietinha, naquele vaso vistoso, ladeando o altar, com suas flores avermelhadas.
Enquanto concluía os primeiros estudos, o menino resolveu trabalhar. Na padaria de “seu” Bruno, o italiano gordalhufo, estreou como assistente de padeiro. Porém, do que gostava mesmo era de entregar os pães à vizinhança, bicicletiano em sua magricela azul e de senilidade à vista. Assim, mal a manhã se arregalava no céu, rodas à obra.
Num certo dia, freguês novo. De riso escancarado e fala possante:
– Fico com os pães só se o pagamento for por quinzena.
– Por quinzena? Hã... por quinzena... Ah! sim, quinzena... (Ai, Santo protetor dos desvocabulados, diga-me, por misericórdia, o que é quinzena?). Se quiser, pode ser também por novena, trezena, tanto faz!
Aos treze anos, foi para o seminário. Lá, diziam que, ao ser ordenado, o rapaz submetia-se à castração. Temeroso, matutava: “É certo que meu patrimônio não tem utilidade para as funções sacerdotais, mas, por garantia, gostaria de preservar o inútil, pois vai que, lá na frente, lhe apareça serventia...”.
Apesar da dúvida, a ordenação. Uma cerimônia solene, emocionante. Sobre o tapete vermelho, deitado de bruços, forma de cruz, em sinal de humildade, o rapaz sentia a aflição cutucar-lhe o “patrimônio”.
No cumprimento do rito litúrgico, o bispo pedia: “Alva”. “Estola”. “Turíbulo”. “Mitra”. “Capa”.
– Epa! Capa?! Vixe, chegou a hora...! Melhor, desabalar-me em correria e salvar meu patrimônio. Capado? Nem pensar!
• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”, “Erro Médico”, “A dor da gente”, “Pois é filho”, “Fuligens do sonho”, “Migrações das Horas”, “Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não!”, entre outros.
Pelo sim, pelo não, melhor não se arriscar.
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