Perfil de um oportunista
* Por Marco Albertim
Senta-se sozinho; não por costume, mas urdindo atrair amigos que julguem sua circunspecção um repositório de segredos. Uma brisa de reserva, presume, imuniza-o contra desconfianças. Não convém encher a mesa com garrafas de cerveja; o cenário poria os cálculos a descoberto. Não trabalha, não depende de compromissos empregatícios; vive de uma minguada mesada que o pai lhe dá, inda que o filho tenha mais de quarenta anos. Mais de quarenta, uma profissão e nenhuma coragem para o tranco do ofício. O ócio, no entanto, há muito está tão desnudo quanto sua careca. A modo de satisfação, pudica para não engendrar demandas; inda que com bafios de defunto vivo, diz ter entregue o currículo a um amigo engenheiro. Um amigo engenheiro! Também ele se formara em engenharia, mas do cálculo de alguma obra sobrou apenas o engenho de saber-se não um transformista, mas camaleônico na obtenção de acepipes.
Outro senta-se à mesa. Não é engenhoso. Da barriga que deixara crescer na combustão das calorias, deixa escapar não só o desleixo com o corpo; mas, e sobretudo, o inocente juízo no trato com o oportunismo. No oportunismo sem risos de deboche, sob a fanfa da austeridade. A cerveja está no fim. O recém-chegado crê-se tão íntegro quanto os bigodes sem curvas do primeiro.
- Uma cerveja! – grita, pondo na voz a ordem ao funcionário, e o obséquio ao objeto de seu assombro.
A boca da garrafa sobressaindo-se do isopor, solta espuma. A mercê do primeiro – ou do engenheiro, em seu tubo digestivo – mostra-se viva na animação vertical dos olhos. Contém-se. A espera dá frutos, posto que é o primeiro a ter o copo reenchido. Sorve um gole módico. O outro reitera os votos de respeito. Disfarça a reverência passeando os dedos nos bigodes de seu rosto basto; também tem bigodes, e isso o ombreia ao varão da trama da novela, à noite.
Convém mostrar-se informado, e a digestão no tubo do engenheiro, tão precisa quanto seus cálculos na prancheta, indigita os erros de Kadafi. Como ter pena! Fome nas ruas, escassez de remédios nos hospitais. Ele rico com o dinheiro do petróleo... Mas o povo foi às ruas, dar-lhe apoio... Os que ele não mandou prender, agradecidos só por estarem vivos...! E os bombardeios dos aviões, aviões sem piloto bombardeando até hospitais! Intervenção da OTAN para evitar mais mortes. As crianças!... Efeito colateral da guerra.
Colateral!? Já fora absolvido da saliência do estômago. Ademais, a palavra fora lida numa bula de remédio. Não convinha fuçar-lhe o conteúdo. A um estivador aposentado, cumpre o dever de sujeição a um diploma de bacharel. Nunca vira um diploma, o estivador; justo por isso legitimou o culto ao canudo.
- Outra cerveja! – voltou a gritar. O rótulo da garrafa cheia, embotou a lembrança da bula.
O engenheiro, dono de si, de si e da manobra no entorno do copo na boca, conjeturou um petisco. Feito um general cujo plano não dera a conhecer aos subalternos, apontou para a jangada recém-vinda do mar. Da caixa de isopor, aberta, inda que entre pedras de gelo, os peixes de olhos abertos, atentando para estropícios, espalharam a seiva.
- Vamos olhar? – cutucou o engenheiro. O tubo digestivo, àquela altura, tão oco quanto a cerveja quase finda.
A cioba de escamas róseas, o dorso vermelho e o sinal preto num dos lados, atrás, atestando a legitimidade da espécie. Sem traços de clemência nos olhos aboticados, crime seria manter as vísceras inteiras.
- Vai comprar? – perguntou o estivador.
- Estou sem dinheiro aqui. – Honras ao dicionário por estampar o advérbio.
O estivador pagou ao jangadeiro.
- Temos uma cioba! – disse à mulher do lado de dentro do balcão.
- Mais uma cerveja? – quis saber o engenheiro.
* Por Marco Albertim
Senta-se sozinho; não por costume, mas urdindo atrair amigos que julguem sua circunspecção um repositório de segredos. Uma brisa de reserva, presume, imuniza-o contra desconfianças. Não convém encher a mesa com garrafas de cerveja; o cenário poria os cálculos a descoberto. Não trabalha, não depende de compromissos empregatícios; vive de uma minguada mesada que o pai lhe dá, inda que o filho tenha mais de quarenta anos. Mais de quarenta, uma profissão e nenhuma coragem para o tranco do ofício. O ócio, no entanto, há muito está tão desnudo quanto sua careca. A modo de satisfação, pudica para não engendrar demandas; inda que com bafios de defunto vivo, diz ter entregue o currículo a um amigo engenheiro. Um amigo engenheiro! Também ele se formara em engenharia, mas do cálculo de alguma obra sobrou apenas o engenho de saber-se não um transformista, mas camaleônico na obtenção de acepipes.
Outro senta-se à mesa. Não é engenhoso. Da barriga que deixara crescer na combustão das calorias, deixa escapar não só o desleixo com o corpo; mas, e sobretudo, o inocente juízo no trato com o oportunismo. No oportunismo sem risos de deboche, sob a fanfa da austeridade. A cerveja está no fim. O recém-chegado crê-se tão íntegro quanto os bigodes sem curvas do primeiro.
- Uma cerveja! – grita, pondo na voz a ordem ao funcionário, e o obséquio ao objeto de seu assombro.
A boca da garrafa sobressaindo-se do isopor, solta espuma. A mercê do primeiro – ou do engenheiro, em seu tubo digestivo – mostra-se viva na animação vertical dos olhos. Contém-se. A espera dá frutos, posto que é o primeiro a ter o copo reenchido. Sorve um gole módico. O outro reitera os votos de respeito. Disfarça a reverência passeando os dedos nos bigodes de seu rosto basto; também tem bigodes, e isso o ombreia ao varão da trama da novela, à noite.
Convém mostrar-se informado, e a digestão no tubo do engenheiro, tão precisa quanto seus cálculos na prancheta, indigita os erros de Kadafi. Como ter pena! Fome nas ruas, escassez de remédios nos hospitais. Ele rico com o dinheiro do petróleo... Mas o povo foi às ruas, dar-lhe apoio... Os que ele não mandou prender, agradecidos só por estarem vivos...! E os bombardeios dos aviões, aviões sem piloto bombardeando até hospitais! Intervenção da OTAN para evitar mais mortes. As crianças!... Efeito colateral da guerra.
Colateral!? Já fora absolvido da saliência do estômago. Ademais, a palavra fora lida numa bula de remédio. Não convinha fuçar-lhe o conteúdo. A um estivador aposentado, cumpre o dever de sujeição a um diploma de bacharel. Nunca vira um diploma, o estivador; justo por isso legitimou o culto ao canudo.
- Outra cerveja! – voltou a gritar. O rótulo da garrafa cheia, embotou a lembrança da bula.
O engenheiro, dono de si, de si e da manobra no entorno do copo na boca, conjeturou um petisco. Feito um general cujo plano não dera a conhecer aos subalternos, apontou para a jangada recém-vinda do mar. Da caixa de isopor, aberta, inda que entre pedras de gelo, os peixes de olhos abertos, atentando para estropícios, espalharam a seiva.
- Vamos olhar? – cutucou o engenheiro. O tubo digestivo, àquela altura, tão oco quanto a cerveja quase finda.
A cioba de escamas róseas, o dorso vermelho e o sinal preto num dos lados, atrás, atestando a legitimidade da espécie. Sem traços de clemência nos olhos aboticados, crime seria manter as vísceras inteiras.
- Vai comprar? – perguntou o estivador.
- Estou sem dinheiro aqui. – Honras ao dicionário por estampar o advérbio.
O estivador pagou ao jangadeiro.
- Temos uma cioba! – disse à mulher do lado de dentro do balcão.
- Mais uma cerveja? – quis saber o engenheiro.
PS – Esta coluna mostra seu inconformismo pelo fato de os quadros de Bajado, de costume expostos no hall da prefeitura de Olinda, permanecerem nas paredes da sala de reuniões do prefeito. Em pleno Olinda Arte em Toda Parte. O acesso, no caso, teria que se dar mediante agendamento. Os quadros de Bajado são a mais animada crônica de Olinda.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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