sábado, 10 de dezembro de 2011







A chapa está esquentando


* Por Ronaldo Bressane


No momento em que um governador com estampa de agente funerário, ligado à elite conservadora até o último fio da sobrancelha, tarja essa mesma elite de ambígua e cínica, Chapa Quente faz todo o sentido. Quando o líder de uma facção criminosa demonstra bom-senso e desgosto por pizza (durante negociação com o governo, trocou uma quatro-queijos por um cheese-picanha), Chapa Quente faz todo o sentido. Quando um estouro de escapamento de moto causa pânico na pat que passeava na praça Vilaboim com seu yorkshire, Chapa Quente faz todo o sentido. Quando Jô Soares sugere, ao fim do ensaio de sua Ricardo III, que o público deixe ligada a luz interna do carro ao sair da Faap – segundo ele, orientação da polícia, para sua segurança –, Chapa Quente faz todo o sentido. Quando toda a nação escolhe discutir os números do holerite de Ronaldo Gaúcho enquanto o número de suspeitos mortos por grupos de extermínio não pára de crescer, Chapa Quente faz todo o sentido. Quando a manchete de um portal é o namoro entre dois ex-BBB, Chapa Quente faz todo o sentido. Quando a principal atração de uma feira de segurança é um colete à prova de balas para cães, Chapa Quente faz todo o sentido.

Chapa Quente é uma peça da trupe Cemitério de Automóveis baseada na graphic novel homônima de André Kitagawa. O mundo viralata das sete historietas de Kitagawa alinhavadas na montagem de Mário Bortolotto é habitado por moleques anestesiados em sua vidinha classe-média, cretinos de periferia, mulheres vulgares, vagabundos toscos que curtem pizza mofada e bares mosca-frita, paranóicos com uma arma na mão e muito bagulho na cabeça, playboys perdidos em favela, tiras relapsos que torturam o cara errado, gente sem perspectiva ou com perspectiva em excesso. Digamos que é gente do mesmo naipe que freqüenta na boa o teatro de Bortolotto (alguns deles na platéia). Daí ter ficado tão perfeito o mix entre HQ e teatro (e música – já falo disso) na peça em cartaz no teatro Viga. Eles falam a mesma língua, com o mesmo sincero compromisso com este mundo que está aí agora, lá fora, olho no olho do tsunami. Mas sempre tirando onda na beira do abismo: mesmo abusando da violência gráfica (até onde contei, o saldo de presuntos chegava a dez), o tom é de comédia rock’n’roll, entre Tarantino, Sganzerla e The Stooges (os de Moe e os de Iggy).

A estética da esculhambação (o mundo não vai acabar se ainda restar uma última breja) aliada à poética toscoroots (se eu falo pobrema é pobrema meu) atinge, aqui, uma sofisticação inusitada. O arranjo entre a narrativa dos quadrinhos – presente em um telão ao fundo do palco e na cenografia – , a performance esquizo-naturalista dos atores e o agudo senso de ritmo ditado pela direção, além da extrema pontualidade e precisão da luz e da trilha sonora, torna a peça uma das mais complexas na longa vida do Cemitério. Sem tirar, claro, a costumeira sensação de risco (hum, agora vai dar merda...). Costumo dizer que um bom show de rock’n’roll deve passar uma contínua sensação de risco. Em um show dos Stones você não sente mais isso. Em um show do Iggy Pop ou do Lou Reed, não tem como não sentir. No teatro de Felipe Hirsch (é inevitável a comparação com Avenida Dropsie, a adaptação dos quadrinhos de Will Eisner, também em cartaz em SP), tudo é tão esplendidamente arquitetado que a sensação de frio na barriga só surge quando se sai do teatro para o outono paulistano. No teatro de Bortolotto, produzido com alguns milhares de dólares a menos, a barriga às vezes é visitada por socos, às vezes por cócegas. E sempre ronca.

Falando em som e barrigas – ah, a trilha sonora! É incrível como tão poucos diretores saibam usá-la com eficácia e personalidade (ok, Hirsch sabe). O Ricardo III de Jô é exemplar: em pleno século 21, nem Shakespeare elegeria conservadoras trompas & tímpanos como background. Talvez porque o gorducho apresentador pratique bongô, enquanto o pançudo da praça Loservelt prefira as guitarras? A palavra é, de novo, risco. Não é caso de justificar as escolhas de Bortolotto por serem naturais ao bukovskiano universo da marginália (Tom Waits, Nick Cave, blues, blues, blues). No que ficamos confortáveis tendo os ouvidos massageados por uma discotecagem fora do convencional, Bortolotto permite-se arriscar um luxo: o perturbador silêncio. Com silêncio também se escreve.

Sobre a atuação, disse que é esquizo-naturalista... não sei se é um bom rótulo. Apesar de Bortolotto trabalhar com profissionais veteranos, seu Cemitério é toda hora visitado por atores, hum, bem, fora do comum... quase amadores (em que peça você encontra um diálogo extremamente tenso entre dois atores cujos apelidos são Batata e Picanha? Um dos grandes momentos do esporte). Todos, porém, se aproximam de um certo naturalismo de quem não cerrou mesa com Stanislawski – e ao mesmo tempo bem longe daquele latido no teatrão ou nas telenovelas. Em Chapa Quente, acredito ainda, o diretor dá um passo adiante. Não há cacos (pelo menos não notei), a dicção é pausada, enfatizando cada (certeira) palavra do texto. O gestual é inconcluso. As aparições de todo ator/impostor são tão fantasmagóricas como – é estranho dizer, mas me lembrou – no teatro nô. É tão naturalista quanto o possam ser os atores de Sin City (filme de Robert Rodríguez baseado nas histórias de Frank Miller) ou o Bandido da Luz Vermelha de Rogério Sganzerla. Beleza, dá a impressão de serem pessoas com quem você beberia no bar. Só se for no bar da Rua Dez.

Ah, sim. Claro que escrevi tudo isso porque a peça é dos meus amigos. Gosto deles porque são bons, ou são bons porque são bróders? Se você não os conhece, vá ver Chapa Quente. Vai perceber que o Cemitério de Automóveis não é um grupo teatral, é um estado de espírito, uma cachaça, um lugar. Como na canção de Júpiter Apple, um lugar ducaralho. Mas aviso – é um lugar onde, como falei no início, você sente nitidamente que a chapa está esquentando. E mesmo que você não goste de calor, malandro, não vai adiantar blindar a sua cozinha.

*Escritor, jornalista e editor. Edita a revista V (www.vw.com.br/revistav) e colabora com várias publicações, como Trip, Vogue e TPM. É um dos co-editores da coleção Risco:Ruído, da editora DBA, e do blog coletivo FakerFakir (www.fakerfakir.biz).

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