Bacilo
* Por Jair Lopes
* Por Jair Lopes
Como toda cidade pequena do interior, Palmeira tinha seus marginais. E aqui marginal não quer dizer, em absoluto, malfeitor, meliante, facinoroso. Neste contexto, se refere apenas àqueles indivíduos desenquadrados, que não se encaixam nos moldes o mais das vezes hipócritas da “boa sociedade”, nas regras daquela gente que vai à missa, paga impostos, vota nos candidatos conservadores, coloca roupa “de domingo” para comparecer às festas, frequenta um dos dois clubes da cidade e costuma ser a consciência moral da população. Marginal é rótulo para quem não faz nada disso e mantém seu próprio conceito de liberdade.
Então, pelas ruas centrais, a qualquer hora, podia ser encontrado o “Juvenal Sapo”, indivíduo dono do nariz dele, alcoólatra e sem-teto que freqüentava os botecos da vida pedindo a um e outro que lhe pagasse um trago de pinga. Bom sujeito, Juvenal a ninguém incomodava, mas, para o bom mocismo palmeirense, era um marginal.
Outro livre de amarras sociais era o Pé-de-bicho. Lauro era seu nome, mas ninguém o sabia, todos o chamavam de Pé-de-bicho e assim ele atendia. Pois é, o Lauro até que gostava de trabalhar, só não era chegado a horários e compromissos que lhe tolhessem a liberdade de ir e vir. Sempre que um circo, desses mambembes que abundavam no interior naquela época, anos 50 e 60, chegava à cidade, lá estava o Pé-de-bicho se esfalfando nas lidas de montagem da lona e arquibancadas, manutenção e alimentação dos animais. Consta que quando um circo se fazia presente na cidade, os cães e gatos de rua costumavam desaparecer por obra do Lauro. Por ocasião da chegada do “Gran Circo Americano” que tinha um plantel de tigres, leões e elefantes, Lauro agiu com tanta eficiência para que não faltasse comida aos animais, de forma que até cães não tão de rua, como os cachorrinhos das madames endinheiradas, sumiram para sempre. Embora houvesse até denúncias formalizadas na delegacia de polícia nada se provou contra Pé-de-bicho e ele continuou vivendo sua vida plena de liberdade.
Entretanto, talvez o mais instigante dos marginais fosse um livre caminhante que, além de ser, como os outros, não enquadrado nas normas sociais, era oriundo da classe próspera da cidade. Seu irmão era um dos dois únicos médicos do burgo e ele poderia ter sido pessoa grada das rodas sociais, se assim lhe aprouvesse. Alto, boa pinta, bem vestido, dizem que havia estudado em Curitiba, aparentemente inteligente, não rezava pela cartilha dos líderes e tampouco ligava para as convenções, vivia sem trabalhar, sem dar bola para ninguém e, para todos os efeitos era “louco”. Parece que o rótulo que lhe apunham servia mais para justificar, frente a sociedade “de bem”, suas atitudes pouco ortodoxas, pois, antes de tudo, era um vagal assumido. Bacilo, como era conhecido Gilberto, estava sempre por aí sem fazer nada, não importava se chovia ou fazia sol.
Aconteceu que lá por meados dos anos 60, apareceu na cidade, resultado de intercâmbio estudantil, uma estudante americana. Tracy, como se chamava a típica adolescente loira e de nariz sardento, era oriunda da Nova Iorque e estava experimentando o contraste entre uma metrópole multicultural do primeiro mundo, contra o provincianismo tacanho de uma cidade do interior paranaense. De qualquer forma, Tracy se viu hospedada na casa de um dos próceres da cidade, casa que era vizinha de onde morava Bacilo. Muito bem, daí que o tresloucado Bacilo, não tendo nada pra fazer e tampouco preocupado com que o mundo pensava dele, resolveu apaixonar-se pela dita moçoila americana, que a ele não dedicava nem um trivial “good morning”. Se a tradicional família palmeirense viu com bons olhos esse romance unilateral não se sabe, o fato é que Bacilo perdeu o chão, de insano que supostamente era, passou a ser loucapaixonado sem direito a retorno.
Acontece que, assim como a loirinha veio um dia, em outro, ao término do ano letivo, ela se foi. Bacilo, desarvorado, louqueou mais algum tempo perdido em seus onirismos românticos, até que desapareceu. Passados alguns meses de seu sumiço, um palmeirense ilustre (rico) que foi a Nova Iorque a serviço, se viu um belo dia na loja Bloomingdales babando pelos artigos de luxo sem muito atino. Para sua enorme surpresa, ali também estava, vendo e babando vitrines, o Bacilo. Sim, aquele mesmo Bacilo atormentado de amor que havia desertado de Palmeira e, segundo línguas maledicentes, entrado para um convento de monges contemplativos com votos de pobreza, ou baixado num manicômio sem esperança de alta. O que vem a dar no mesmo.
Bem, pelo menos agora se sabia que o Romeu desesperançado estava vivo e gozando boa saúde em Nova Iorque, mas, quanto ao resto? Quanto ao resto, Bacilo jamais retornou a Palmeira e, oficialmente, nada mais se soube de sua doentia obsessão ou de sua vida nos estates.
Mas, à margem dos registros oficiais, através de correspondência dele com um conterrâneo, Ruy de Tal, soube-se bem mais tarde, que ele continuou vivendo e trabalhando nos EUA, perseguiu por algum tempo a sua amada, até que, não vendo mais esperança no romance depois que ela casou, tornou-se cidadão americano, alistou-se nos Marines e foi mandado para o Vietnã. Do Vietnã enviou um postal para seu amigo onde dizia que estava em Da Nang sob intenso bombardeio pelos Vietcongs.
Então a história acaba aqui sem qualquer consequência ou mérito? Não, definitivamente não. Em Washington existe o Memorial aos Mortos no Vietnã. O Memorial é um muro em forma de “V” de 75 metros de comprimento semi enterrado, com uma das extremidades, o vértice, em posição mais baixa. É feito de mármore preto oriundo da Índia, no qual estão inscritos os nomes de todos os soldados mortos no conflito do Vietnã. Está situado próximo ao Monumento a Lincoln e foi inaugurado em 1982. Atualmente o muro contém os nomes de 58.195 homens e mulheres mortos naquela guerra insana, como se toda guerra não fosse insana. Quando um visitante olha para a parede negra do muro, vê seu reflexo junto com os nomes gravados. Essa visão se destina a fundir simbolicamente o passado e o presente juntos. Lá está gravado o nome do nosso ilustre marginal palmeirense, eu o vi. Dizem que morreu virgem.
• Escritor
Então, pelas ruas centrais, a qualquer hora, podia ser encontrado o “Juvenal Sapo”, indivíduo dono do nariz dele, alcoólatra e sem-teto que freqüentava os botecos da vida pedindo a um e outro que lhe pagasse um trago de pinga. Bom sujeito, Juvenal a ninguém incomodava, mas, para o bom mocismo palmeirense, era um marginal.
Outro livre de amarras sociais era o Pé-de-bicho. Lauro era seu nome, mas ninguém o sabia, todos o chamavam de Pé-de-bicho e assim ele atendia. Pois é, o Lauro até que gostava de trabalhar, só não era chegado a horários e compromissos que lhe tolhessem a liberdade de ir e vir. Sempre que um circo, desses mambembes que abundavam no interior naquela época, anos 50 e 60, chegava à cidade, lá estava o Pé-de-bicho se esfalfando nas lidas de montagem da lona e arquibancadas, manutenção e alimentação dos animais. Consta que quando um circo se fazia presente na cidade, os cães e gatos de rua costumavam desaparecer por obra do Lauro. Por ocasião da chegada do “Gran Circo Americano” que tinha um plantel de tigres, leões e elefantes, Lauro agiu com tanta eficiência para que não faltasse comida aos animais, de forma que até cães não tão de rua, como os cachorrinhos das madames endinheiradas, sumiram para sempre. Embora houvesse até denúncias formalizadas na delegacia de polícia nada se provou contra Pé-de-bicho e ele continuou vivendo sua vida plena de liberdade.
Entretanto, talvez o mais instigante dos marginais fosse um livre caminhante que, além de ser, como os outros, não enquadrado nas normas sociais, era oriundo da classe próspera da cidade. Seu irmão era um dos dois únicos médicos do burgo e ele poderia ter sido pessoa grada das rodas sociais, se assim lhe aprouvesse. Alto, boa pinta, bem vestido, dizem que havia estudado em Curitiba, aparentemente inteligente, não rezava pela cartilha dos líderes e tampouco ligava para as convenções, vivia sem trabalhar, sem dar bola para ninguém e, para todos os efeitos era “louco”. Parece que o rótulo que lhe apunham servia mais para justificar, frente a sociedade “de bem”, suas atitudes pouco ortodoxas, pois, antes de tudo, era um vagal assumido. Bacilo, como era conhecido Gilberto, estava sempre por aí sem fazer nada, não importava se chovia ou fazia sol.
Aconteceu que lá por meados dos anos 60, apareceu na cidade, resultado de intercâmbio estudantil, uma estudante americana. Tracy, como se chamava a típica adolescente loira e de nariz sardento, era oriunda da Nova Iorque e estava experimentando o contraste entre uma metrópole multicultural do primeiro mundo, contra o provincianismo tacanho de uma cidade do interior paranaense. De qualquer forma, Tracy se viu hospedada na casa de um dos próceres da cidade, casa que era vizinha de onde morava Bacilo. Muito bem, daí que o tresloucado Bacilo, não tendo nada pra fazer e tampouco preocupado com que o mundo pensava dele, resolveu apaixonar-se pela dita moçoila americana, que a ele não dedicava nem um trivial “good morning”. Se a tradicional família palmeirense viu com bons olhos esse romance unilateral não se sabe, o fato é que Bacilo perdeu o chão, de insano que supostamente era, passou a ser loucapaixonado sem direito a retorno.
Acontece que, assim como a loirinha veio um dia, em outro, ao término do ano letivo, ela se foi. Bacilo, desarvorado, louqueou mais algum tempo perdido em seus onirismos românticos, até que desapareceu. Passados alguns meses de seu sumiço, um palmeirense ilustre (rico) que foi a Nova Iorque a serviço, se viu um belo dia na loja Bloomingdales babando pelos artigos de luxo sem muito atino. Para sua enorme surpresa, ali também estava, vendo e babando vitrines, o Bacilo. Sim, aquele mesmo Bacilo atormentado de amor que havia desertado de Palmeira e, segundo línguas maledicentes, entrado para um convento de monges contemplativos com votos de pobreza, ou baixado num manicômio sem esperança de alta. O que vem a dar no mesmo.
Bem, pelo menos agora se sabia que o Romeu desesperançado estava vivo e gozando boa saúde em Nova Iorque, mas, quanto ao resto? Quanto ao resto, Bacilo jamais retornou a Palmeira e, oficialmente, nada mais se soube de sua doentia obsessão ou de sua vida nos estates.
Mas, à margem dos registros oficiais, através de correspondência dele com um conterrâneo, Ruy de Tal, soube-se bem mais tarde, que ele continuou vivendo e trabalhando nos EUA, perseguiu por algum tempo a sua amada, até que, não vendo mais esperança no romance depois que ela casou, tornou-se cidadão americano, alistou-se nos Marines e foi mandado para o Vietnã. Do Vietnã enviou um postal para seu amigo onde dizia que estava em Da Nang sob intenso bombardeio pelos Vietcongs.
Então a história acaba aqui sem qualquer consequência ou mérito? Não, definitivamente não. Em Washington existe o Memorial aos Mortos no Vietnã. O Memorial é um muro em forma de “V” de 75 metros de comprimento semi enterrado, com uma das extremidades, o vértice, em posição mais baixa. É feito de mármore preto oriundo da Índia, no qual estão inscritos os nomes de todos os soldados mortos no conflito do Vietnã. Está situado próximo ao Monumento a Lincoln e foi inaugurado em 1982. Atualmente o muro contém os nomes de 58.195 homens e mulheres mortos naquela guerra insana, como se toda guerra não fosse insana. Quando um visitante olha para a parede negra do muro, vê seu reflexo junto com os nomes gravados. Essa visão se destina a fundir simbolicamente o passado e o presente juntos. Lá está gravado o nome do nosso ilustre marginal palmeirense, eu o vi. Dizem que morreu virgem.
• Escritor
Nenhum comentário:
Postar um comentário