sexta-feira, 4 de novembro de 2011




Voo tumultuado

* Por Lêda Selma


João Perpétuo, o “Esquecido de Deus”, após finar-se de morte por susto, durante um pesadelo medonho, tomou o rumo do além. O voo, cheio de sacolejos e sobressaltos, vez por outra, parecia enveredar-se por escuridões assombrosas e suspeitas, entremeadas por vultos rubentes e aterrorizadores. E Perpétuo, arrepiado de medo, tentava deixar pelo caminho algum pecado, porventura esquecido na matula, pois não queria atrair o faro do tal raboso do tridente. Assim, baldear por aqueles domínios infernais, nem para pedir informação! E, em boa hora, lembrou-se do dito terreno “sua alma sua palma” e achou melhor largar terra às favas, fugir, desabalar em correria, antes que se asfixiasse com o enxofre já recendente.
Uma parada breve pelo limbo, para visitar alminhas pagãs; uma escala rápida no purgatório, para descansar e purificar a alma centenária, e todo cuidado para não passar pelas cercanias diabólicas do horrendo caldeirão. Estratégia interessante. Assim, estancaria o medo, reabasteceria a coragem e se prepararia para o inadiável reencontro com aquela que o enviuvou. E só de pensar nisso, sentia vontade de se perder pelo caminho... Uma pergunta cutucou-lhe: “Será que a finada teria conhecimento de suas frutificantes safadezas carnais, ainda no calor da viuvez? Duas estrelas solitárias piscaram lá no fundo da imensidão de breu...
Entre uma dúvida e um assombro, Perpétuo percebeu-se escoltado pelas duas que, feito lanternas, apareciam vaga-lumeantes, como a indicar-lhe o melhor caminho. Então, tudo pareceu endireitar-se. Pareceu... Perpétuo nem desconfiou que as tais estrelas nada mais eram que os olhos mexeriqueiros e vorazes da falecida Saudosina. Pois é, a alma da mulher, em permanente desassossego, queria que a do marido apeasse lá por aquelas bandas, o mais depressa possível, para o ansiado acerto: “Traidor! Minha presença mal virou as costas e o salafrário já estava se lambuzando nas suculências roliças daquelas vaquetas usurpadoras de viúvo alheio. Maldito! Foi afogar o pranto exatamente nas profundezas madalênicas daquelas decaídas com cara de anjo...”.
Mais um túnel embreado e estreito. E de suas entranhas, um assustador rilhar de dentes e de tridentes. Odores insuportáveis. Perpétuo apavorou-se. Estava em queda livre. “Socorro! Minha alma vai espatifar-se... ai, ai, ai...! Ó Santo protetor dos viúvos devassos, amparai-me!”. E, de novo, as duas estrelas ali, bem visíveis, e a mesma sensação de alívio a afugentar o desespero de “Esquecido de Deus”, ou melhor, de sua alma tão bem lembrada pela de Saudosina. Outro instante de trégua. Lá no longe, um caminho alargado e um fiapinho de luz. “Agradecido, meu santo, agradecido! Acho que encontrei o caminho”. E encontrou. Não o caminho, mas Saudosina, isto é, a voz estridente de Saudosina: “Hã, quem é morto sempre aparece, hem, seu viúvo alegre, seu tarado de duas biscas?!”.
Perpétuo, em pânico, reconheceu o chiado raivoso da mulher. E foi rápido: “Olhe, minha velha, não aguentei a solidão e a saudade e vim pra junto de sua alma buscar aconchego pra minha. De tanto pedir, o Pai me atendeu, sabedor que era de meu desejo rejuntar os trapinhos de nossas almas.”. Aí, sim, Saudosina furibundeou de vez: “Tarado dos infernos, ainda ousa pronunciar os nomes daquelas ganças devoradoras de viúvo, aquelas prostiputas, as tais Solidão e Saudade, seu promíscuo?”.
Nova queda livre... E a iminência de um desastroso impacto. Ainda atarantado, Perpétuo vê dois vultos brancos, asados e esvoaçantes, envolvê-lo. Aquieta-se. Tocam-se. E, entre um cochicho e outro, a subida. E os gritos. “Estou salvo! Que bênção! Hum... a subida ficou mais macia, cheirosa... Duas anjas lindas, carinhosas, insinuantes... Tive uma ideia, irra: um chamego com essas belezuras, num cantinho qualquer do infinito, só para lavar minha alma, e tirar a pobre da miséria, por que não?! Até o encontro com a falecida, dá para conhecer as peculiaridades angelicais e secretas das duas, ora se dá...! Bondade demais, benza Deus! Caridade, pra que te quero?!”.
Com a alma em ponto de bala, Saudosina, que espreitava Perpétuo, indignou-se de vez: “Não é que o infiel já está de olho nas belas anjas, Bondade e Caridade?! Vou cortar as asas das duas, e ele que tome o rumo do caldeirão!”.

• Poetisa e cronista, licenciada em Letras Vernáculas, imortal da Academia Goiana de Letras, baiana de Urandi, autora de “Das sendas travessia”, “Erro Médico”, “A dor da gente”, “Pois é filho”, “Fuligens do sonho”, “Migrações das Horas”, “Nem te conto”, “À deriva” e “Hum sei não!”, entre outros.

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