domingo, 6 de novembro de 2011



Irreverente e genial


Há artistas, e não importa de que arte, que têm trajetória de vida e, sobretudo, conduta pública mais marcante do que a obra que produzem. Um desses tantos personagens – digamos, excêntricos, ou “folclóricos” – cuja biografia tive a oportunidade de ler recentemente, é o empresário, artista plástico e cineasta norte-americano Andy Warhol. Uma figura! Certamente ele é mais lembrado por uma frase de efeito que disse, em certa ocasião, do que propriamente por seus quadros, mesmo sendo o criador do movimento artístico conhecido como “popart”.

E o que foi que essa controvertida personalidade da segunda metade do século XX disse de tão especial, repetida, amiúde, por milhões de pessoas mundo afora, a maioria das quais não sem a mais remota noção de quem ele foi? Afirmou – ou, pelo menos, atribuem-lhe haver afirmado – que “no futuro, todo mundo será famoso por 15 minutos”. Convenhamos, submetida a uma análise minimamente lógica, o que disse não foi nada de especialmente inteligente, revolucionário, transcendental ou sequer verdadeiro. Mas... o que afirmou, provavelmente até por gozação, “pegou”. E tornou-se uma espécie de “vinheta” de Andy Warhol.

Esse pitoresco personagem – cujo nome de batismo era Andrew Warhola – nasceu em 6 de agosto de 1928, na cidade de Pittsburgh. Morreu em Nova Jersey, aos 59 anos, em 22 de fevereiro de 1987. Quando se menciona este artista, faz-se indispensável destacar o que, no meu entender, foi sua principal virtude: a coerência. Mestre de toda uma geração, imitado, mas nunca igualado, no período que antecedeu sua morte estava longo tempo sem produzir nada. Quando perguntado sobre a razão desse afastamento da arte, respondeu, simplesmente, que já havia “dito tudo o que tinha a dizer”.

Há um episódio que revela bem o quanto Andy foi coerente em sua trajetória artística. Indagado, certa vez, por um desses críticos (que sempre estão à cata de ângulos diferentes da vida dos grandes realizadores, para tentar conseguir elementos mais concretos que lhes possibilite a interpretação de sua temática), sobre suas ambições na vida, não se fez de rogado. Respondeu, sem pestanejar, que eram somente duas: “Ser ultrajante e ganhar bastante dinheiro”. Pelo menos, foi sincero.

Ninguém pode dizer, em sã consciência, que não tenha alcançado ambas as metas. No primeiro caso, Warhol desmistificou os objetos de inspiração artística. Demonstrou que as coisas mais banais, as que preenchem o cotidiano de todo mundo, têm beleza própria e podem, por isso, ser profundamente artísticas. O exemplo mais específico foi o fato de Andy ter pintado uma série de telas retratando sabem o que? Latas de sopa “Campbel`s”, produto muito popular nos Estados Unidos, de grande consumo pela população! Querem coisa mais trivial e, supostamente, menos inspiradora do que esta?! Pois é, mas para ele, a escolha rendeu fama e fortuna. Afinal... gosto é gosto e não se discute.

O artista reproduziu as tais latas de sopa em pilhas, nos supermercados; amassadas, nas ruas; abertas; fechadas; unitariamente; agrupadas, além de ter se valido das diversas variedades em que o produto é oferecido ao público. Foi, aliás, com essa temática que se constituiu no marco zero da chamada “popart”, que Warhol lançou em princípios dos anos 60, a chamada “década da contestação”.

O movimento que criou acabou por se constituir em outro dos tantos episódios contestatórios que caracterizaram aquele período, aliás, dos mais importantes entre os tantos que se verificaram na segunda metade do século XX. Por isso, cumpriu, de fato, a primeira das grandes ambições que confessou ter: foi mesmo ultrajante. No segundo caso, ou seja, no que diz respeito ao seu desejo de transformar tudo o que tocasse em ouro, à moda de um Midas dos nossos tempos, o objetivo foi, igualmente, atingido, em vista, principalmente, do seu enorme talento para negócios. Andy ganhou dinheiro, não há dúvidas, muito dinheiro.

Por exemplo, um de seus quadros mais conhecidos, aquele em que o artista retratou uma série de notas de US$ 200, resultou num “milagre da multiplicação”, o mais extraordinário que se conhece na atividade artística. A obra foi arrematada, num leilão, realizado em Nova York, pela “bagatela” (pasmem) de US$ 385 mil! Nada mau, não é mesmo?

Na ocasião, portanto, conseguiu alcançar seus dois objetivos de vida e de uma única tacada. Foi sumamente “ultrajante”, trocando dólares reais, palpáveis e valiosos, pelos imaginários, frutos do seu talento. E, de lambuja, aumentou em vários milhares a mais de cifrões sua polpuda conta bancária. Outro aspecto que sempre chamou a atenção em Warhol foram suas frases, deliciosamente irreverentes e muitas caracterizadas pelo “nonsense”, que brotavam impregnadas de um humor inteligente e refinado. E não somente a que citei acima (nem tão inteligente asasim).

Quando lhe pediram que justificasse a razão de se fixar na temática das latas de sopa, por exemplo, Andy não tergiversou. Poderia, como muita gente metida a gênio faz, desfiar um rosário de motivos subjetivos. Não fez isso.Tivesse outro tipo de cabeça e talvez saísse com justificativas pseudofilosóficas ou coisas do gênero. Mas isso não fazia parte da sua maneira de ser. Nunca foi seu estilo. Andy Warhol era, sobretudo, autêntico. E foi essa autenticidade que demonstrou na resposta que deu. Dentro do seu enfoque pessoal, paradoxalmente simples e direto, Andy explicou que pintava o tema simplesmente “porque eu comia aquela sopa. Comi-a durante vinte anos, quase todos os dias, sempre a mesma coisa. Alguém me disse que a minha vida me dominou; esta idéia me agrada”.

Andy Warhol, filho de imigrantes checos, cursou, em Pittsburgh, o Instituto de Tecnologia. Findo o curso, fixou residência em Nova York, onde iria desenvolver sua arte e se tornar mundialmente famoso, na metade da década de 1950. Na “Big Apple”, que dado seu cosmopolitismo foi e é campo bastante fértil para inovações, Andy trabalhou ativamente, por um certo período, em uma agência de publicidade. Isto talvez explique (ou pelo menos pode ajudar a explicar) a razão da escolha da sua temática, mais pendendo para o “design” industrial, para a propaganda de produtos, do que para aquele padrão convencional que ainda caracteriza as artes plásticas.

Em 1957, Warhol chegou a ganhar um prêmio, por uma campanha publicitária de sapatos que desenvolveu. Por este tempo, já se dedicava aos quadrinhos. Não, como diria mais tardar, com o objetivo de se tornar profissional da área, então em expansão, onde o talento é colocado a serviço exclusivamente do entretenimento. Seus primeiros trabalhos nessa área foram uma espécie de ensaio para o que realmente tinha em mente. Ou seja, para mostrar, a si mesmo e aos outros, que era possível fazer a fusão entre as artes plásticas e a propaganda.

Warhol passou a desenhar, entre outras, versões ampliadas das tiras de Dick Tracy, muito populares na imprensa norte-americana ainda hoje. Seu intento, todavia, não era enfatizar as peripécias desse herói imaginário. Seu objetivo, no fundo, no fundo, era essencialmente propagandístico. O artista pretendia decorar as vitrines da loja da “Lord and Taylor” com cenas desse personagem, logicamente no intuito de atrair potenciais clientes.

Não tardou para que seu espírito inquieto e inovador o levasse a incursões em outros campos. Um deles foi o chamado “movimento underground films” (cinema subterrâneo), em que em pouco tempo se tornou famoso e respeitado, principalmente por suas tantas excentricidades. Uma, foi a filmagem de “As Estrelas”, película que tinha nada menos do que 25 horas de duração! Provavelmente, este é um recorde mundial em termos de extensão de um filme.

Mas o trabalho de Andy Warhol que se tornou virtualmente antológico, nesse tipo de cinema, foi “O Sono”. O filme, considerado clássico no gênero, mostra única e somente uma pessoa dormindo, durante as oito horas de sono de qualquer ser humano normal. “E daí?”, perguntará o leitor, “onde está a emoção disso? Quem iria querer assistir a uma loucura dessas?”. Pois teve muita gente que quis. E que assistiu. E não somente nos cineclubes, espalhados nessa ocasião por todos os Estados Unidos, dados a esse tipo de excentricidade, mas até em circuito comercial de cinema. Afinal... há gosto para tudo, não é mesmo? Justificando a produção, interpretada por muita gente como mera brincadeira (embora muitos a levassem a sério e enfatizassem a “genialidade” da idéia), Andy afirmou: “Mostrar um homem dormindo durante oito horas é também um ato de beleza”. Com o que muita gente concordou. Prova? O sucesso do filme.

Em pouco tempo, Warhol transformou o empreendimento artesanal em indústria organizada. Criou um atelier de cinema que batizou de “A Fábrica”. Suas idéias, no entanto, eram tão excêntricas que chegavam a confundir a cabeça até dos mais revolucionários (ou malucos?). Principalmente dos que trabalhavam com ele. Foi o que aconteceu, por exemplo, com Valerie Solanis, estrela de uma de suas películas, “Chelsea Girls”. A atriz descontrolou-se emocionalmente, por alguma razão que até hoje não ficou esclarecida, e esse descontrole quase resultou em tragédia, que por pouco custou a vida de Andy Warhol.

Em uma determinada noite, a moça entrou, transtornada, no atelier, com dois revólveres de calibre 32 nas mãos. A seguir, sem dizer uma só palavra, sem nenhuma discussão, passou a descarregar as armas sobre o aturdido pintor, ferindo-o gravemente. Na ocasião, chegou-se a pensar que Andy não resistiria aos ferimentos. Todavia, resistiu. Subitamente, o nome do artista saía das páginas de arte e entrava no noticiário policial dos principais jornais. Warhol ficou várias semanas entre a vida e a morte, em estado de coma. Foi submetido a uma delicadíssima cirurgia, que poucos acreditavam que viesse a resistir. Mas desta o artista conseguiu escapar.

Quando já estava recuperado, assim que ganhou alta médica, até brincou com o que lhe havia acontecido. Certa vez, Andy disse, sobre o trágico e violento episódio: “Acho que ser famoso não é realmente importante. Se eu não fosse famoso, não teria levado uns tiros por ser Andy Warhol. Talvez tivesse levado uns tiros por estar no Exército. Ou talvez fosse um professor bem gordo”. Quem não endoidaria na companhia de um sujeito desconcertante como esse?!

Boa leitura.

O Editor.




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