quarta-feira, 9 de novembro de 2011







Diagnóstico e a conveniência de se escancarar a porta

* Por Mara Narciso


Seguindo as normas dos pajés indígenas ou feiticeiros, cujo saber envolvem ocultismo, mistério e magia, a medicina, que há tempos usa métodos científicos comprovados em laboratório, também já usou do misticismo em seus domínios.
Quem padecia de um mal crônico, podia não ficar sabendo o nome da sua moléstia. Recebia o diagnóstico, quando este lhe era dado, e uma receita, quando havia. As orientações, algumas delas fruto da imaginação pessoal do médico, eram passadas como uma verdade sem direito a contestação.
A desculpa de o médico ter letra ruim vinha do fato de ele passar seis anos escrevendo tudo o que seus professores falavam, e depois, mais três a cinco anos de residência médica fazendo o mesmo, embora os métodos eletrônicos de gravação de hoje tenham se popularizado e poucos ainda se dão ao trabalho de copiar à mão. Dito isso, a letra ruim das receitas é uma forma de se utilizar do saber para oprimir e submeter o cliente, pois a aura de segredo torna a profissão médica mais valorizada, com toques mágicos e fantasiosos.
Pouco se ouvia explicações sobre como funcionava a doença e o tratamento no corpo humano. A maior parte das pessoas que possuía doenças crônicas acabava, por não entender o processo, abandonando os tratamentos. Pouco a pouco passaram a ver que o entendimento era possível, e que todos podiam compreender e opinar. Algumas doenças possuem mais de um tratamento e estes podem e devem ser apresentados ao paciente para que juntos decidam o que fazer. Um deles, por exemplo, é a reposição hormonal após a menopausa. A escolha é da paciente e não do médico. Este explica os riscos e benefícios e a mulher escolhe. Outro é o uso da sibutramina, o remédio sacietógeno, que ajuda a emagrecer. Será preciso assinar um termo de responsabilidade entre o médico e a pessoa que fará uso da droga.
Mas há quem se arvore de dono da vida e da morte do outro. Acredita estar ali na frente do doente como um juiz diante do réu. E fala de forma dura, nada humanizada a respeito da verdade. O que é real tem de ser dito. Mas de que forma? Isso quando quem está do outro lado aguenta o tranco.
Uma senhora me contou - vamos chamá-la de Luísa-, que tem hipertensão, colesterol e triglicérides altos há muitos anos. Apresentou entupimento das artérias coronárias, um quase infarto e foi submetida à angioplastia, com colocação de stents para desobstruir o local afetado. Tudo ia bem, com vida normal, quando aparece uma glicose alta, já em nível de diabetes. Por ser esta senhora muito disciplinada, cuidadosa e obediente, o endocrinologista falou que nada iria mudar. Era preciso seguir mais itens na dieta que ela já fazia, e o acréscimo de mais uma medicação. A família achou bom ir a Belo Horizonte ouvir outra opinião. Lá, o médico que a atendeu teve a seguinte atitude: escreveu ao lado do seu nome na ficha a palavra DIABÉTICA em letras graúdas e fez a seguinte afirmação: a senhora é diabética, e por isso todas as suas doenças vão piorar muito a partir de agora.
Luísa ficou apavorada, e dentro do desespero viu desencadear-se a síndrome do pânico. Largou o trabalho, não mais conseguiu dirigir e nem sair de casa. Foi preciso uma força interior muito grande para, depois de meses de tratamento psiquiátrico retornar a situação anterior a da fatídica consulta. Hoje, já recuperada, dirigindo, inclusive à noite, e fazendo tudo o que sempre fez, mantém-se bem controlada de todos os seus problemas, e falou assim: “até que ponto um médico tem o direito de rasgar o verbo, de falar com todas as letras e de forma cruel? Em que um gesto desumano destes poderá ajudar o paciente? Como pode ousar cortar o rosto do outro com uma navalha? Será preciso falar com palavras escritas em sangue?”
Difícil alguém se julgar insensato. No entanto é preciso dizer aos médicos, que sejam médicos, que sejam humanos, que digam a verdade de forma mais suave, porque do outro lado bate um coração, nem sempre forte. Noutras vezes há um cérebro sensível que não dá conta de elaborar num pulo, todo o significado daquilo que está por vir.
Educação e civilidade cabem em todo o lugar.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.

4 comentários:

  1. Que texto lúcido, Mara. Você conseguiu sobrepujar qualquer natural tendência "corporativista" para defender uma postura mais humana no exercício da profissão, criticando - com razão - muitos de seus pares. Destaco a questão da chamada "letra de médico". Existe, se não me engano, uma lei que obriga a prescrição de receitas em editor de texto. Nem sempre ela é cumprida, e eu mesmo testemunhei um farmacêutico entregando medicamento ERRADO, destinado à minha esposa, por conta de garranchos de um semideus metido num jaleco branco. Acho isso o fim do mundo. Poderia ser mais condescendente, tendo em vista o fato de ter na família 3 gerações de médicos... mas a continuidade desse tipo de procedimento é de uma insensatez sem justificativa. Parabéns pela lavra-manifesto!

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  2. Não posso dizer que sempre acertei o tom ao dar más noticias, mas com o tempo, e a experiência posso dizer que estou a cada dia mais tranquila e mais suave. Tenho de levar em conta também o fato de eu ser hipocondríaca, altamente sugestionável e de saúde frágil, combinação bombástica e que tenho de suportar. Assim, depois de passar por mais de meia dúzia de situações de diagnósticos dados a mim de forma desastrosa, aprendi muito. Não omito e nem derrubo. Ajudo a ficar de pé. E sobre a lei da letra, ela existe, mas nada mudou depois que foi promulgada. Eu escrevo as receitas a mão, porém em letra de forma legível. Um primo me disse que fui corajosa de abordar o tema dessa forma. Posso ter sido, mas antes de tudo fui verdadeira.
    Obrigada pela presença, Marcelo. Você sempre acrescenta muito aos textos que comenta.

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  3. Pior é que muitos médicos tratam pessimamente não só nos diagnósticos e ainda reclamam ou reclamaram (época da ditadura militar) do sistema integral de saúde. Em 97, o então Pam Saúde mudou de nome para Multi-Med, devido à denúncia através do JC intitulado "Plano de Saúde". Pois bem, a Mult-Méd contratou um capitão oftalmologista da Polícia Militar, para atender em sua clínica particular os associados, o que aconteceu? O referido doutor encaminhava sempre de sua clínica para o Centro Hospitalar da PM (CHPM)pacientes pertencentes a diversos planos de saúde, desta feita prejudicava os próprios componentes da PM no tocante a marcação de consultas. E quando se tratava de algum dos associados pertencer ao quadro da PM, o referido solicitava mais uma vez os mesmos exames solicitados na sua clínica, para com isso receber os honorários das conveniadas e do Estado. Como era corriqueiro entre os médicos, dentistas, etc, essas falcatruas, e provei, porém, fui vítima de alguns sob alegação que o Estado ou os Planos de Saúde, passavam mêses sem pagar! Com coragem dei nomes aos bois, que segundo eles informaram a mim que foram prejudicados pelo sistema!!! Nada de omissão!

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  4. Há erros de gestão de planos de saúde que prejudicam clientes e médicos. Sinto isso na pele. Pessoas sem caráter, também fazem acontecer casos mais do que reprováveis. Agradeço a passagem e atenção, Calvino!

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