De túmulo em túmulo
* Por Marco Albertim
Joaquina nunca se dera ao trabalho de subir num palanque para declarar apoio a seu candidato. Sentada, com o braço direito sobre uma mesa no pequeno salão de seu bordel, repetira o nome de Osvaldo Rabelo. O chefe de polícia do estado, às custas de João Santos, tornara-se chefe político de Goiana; com direito a designar juiz, promotor, delegado e comissário. Não carecera de nomear o advogado de ofício, porquanto os de banca independente... vergaram-se ao soldo de Rabelo. Soldo com cheiro de vinagre ou do vinhoto extraído do canavial de João Santos. Rabelo só não nomeara o pároco, inda que liberasse os acólitos para espreitar o entra e sai no pórtico barroco do Convento do Carmo. Ali, homiziara-se frei Caneca, catado pela polícia do imperador; dali, saíra frei Tarcísio, candidato a prefeito, eleito a contragosto do acerbo policial; eleito e apeado antes de dois meses de governança. Também... quem mandou estribar-se em buliçosos estudantes, em meia dúzia de pacatos comunistas, recém-saídos da cadeia...?
Joaquina agora tem os mesmos olhos insossos, com desinteresse para o mundo, atentos à sujeição das moças de seu harém. Bem fornido, o harém de Joaquina; pasto de senhores de engenho, à frente da capatazia zelosa dos felpos do bigode. A capatazia, sem nomes ilustres no batismo, fruindo o devaneio de riqueza concedido pelos jaquetados patrões. O retrato de Joaquina, na campa do túmulo, reluz sem o fulgor de domínio sobre as moças; sob o sol, os olhos escuros resistem feito bolotas de chumbo. No fim da tarde, de cada tarde, fundem-se à cor parda do caixilho oval sobre o mármore. A fixidez dos olhos, quando vivos, dava conta de nunca ter vertido uma gota de dor. Sofrera uma tarde, a dona; num fim de tarde tão plumboso quanto o que encobre o passeio no cemitério, o parelho dera-lhe bordoadas no meio da rua areenta de Pitimbu; depois dos banhos, da cachaça, do peixe na moqueca farinhenta. Durou pouco o ruidoso conúbio. Ela enrustiu-se no mando do bordel, mirando-se nos machos de perfil mandador como Osvaldo Rabelo. Já o parelho, cujo nome nunca pôs no rebuço do casaco, sumiu no fim da rua da Baixinha, por onde se tem acesso à incerteza da incógnita Paraíba; ou enterrou-se sem registro no fichário dos mortos onde Joaquina jaz de olhos abertos.
Osvaldo Rabelo fora tangerino, tropeiro de burros e bois vindos de Goianinha. Ganhou a confiança de João Santos, fazendo a segurança de caminhões carregados de sacos de cimento, na travessia de rios, por balsa, e de estradas. Não tardou, entrou na polícia; sem concurso...! Pra quê...? Não basta a bênção do usineiro? Talvez tenha trocado miúdas palavras com a dona do bordel. Certo é que se entenderam no sorvedouro das mesmas ideias. Quem manda neste mundo é usineiro e chefe de polícia... O séquito? Ora... Que gaste a paga entre as paredes de compensado dos quartos de Joaquina.
Everaldo criou-se no culto à cultura da mãe; menino no meio de mulheres, adamou-se. Nunca se enfeitou como uma dama da noite, inda que não se livrando do molejo na cintura. A mãe, de olho na traficância de moças recém-descabaçadas, recrutadas com garantias de abrigo certo. Everaldo, novinho, nariz e boca feito dois biscuís, dava-lhes carinho, tinha assento no colo de cada uma; no colo e nas camas com donatário ausente. Mais tarde, aluno do ginásio misto, ofereceu-se para ser pastor ao lado do “véio” do pastoril da escola. Ganhou o apelido de pastora bela... Para o resto da vida.
Da vida e da morte, posto que também jaz no mesmo alinhamento de campas onde está a mãe. O retrato na moldura prateada, pequena, exibe-o com olhos e riso num canto da boca; sedução de putas cuja sedução se perdera no ofício. Everaldo perdeu a sedução com uma facada no ventre curvado. A mulher queria-o a todo custo, mas ele...
O último a morrer foi Osvaldo Rabelo. O domínio que mantivera sobre a cidade, mantém-no mesmo enterrado. Seu mausoléu está na frente de todos, olhando para o portão do cemitério; com o respeito servil de Joaquina, o espanto nos olhos de Everaldo; e a submissão da família do árabe Salim, cuja tumba, a derradeira do alinhamento, diz que sua morte “deixou saldade”.
Joaquina nunca se dera ao trabalho de subir num palanque para declarar apoio a seu candidato. Sentada, com o braço direito sobre uma mesa no pequeno salão de seu bordel, repetira o nome de Osvaldo Rabelo. O chefe de polícia do estado, às custas de João Santos, tornara-se chefe político de Goiana; com direito a designar juiz, promotor, delegado e comissário. Não carecera de nomear o advogado de ofício, porquanto os de banca independente... vergaram-se ao soldo de Rabelo. Soldo com cheiro de vinagre ou do vinhoto extraído do canavial de João Santos. Rabelo só não nomeara o pároco, inda que liberasse os acólitos para espreitar o entra e sai no pórtico barroco do Convento do Carmo. Ali, homiziara-se frei Caneca, catado pela polícia do imperador; dali, saíra frei Tarcísio, candidato a prefeito, eleito a contragosto do acerbo policial; eleito e apeado antes de dois meses de governança. Também... quem mandou estribar-se em buliçosos estudantes, em meia dúzia de pacatos comunistas, recém-saídos da cadeia...?
Joaquina agora tem os mesmos olhos insossos, com desinteresse para o mundo, atentos à sujeição das moças de seu harém. Bem fornido, o harém de Joaquina; pasto de senhores de engenho, à frente da capatazia zelosa dos felpos do bigode. A capatazia, sem nomes ilustres no batismo, fruindo o devaneio de riqueza concedido pelos jaquetados patrões. O retrato de Joaquina, na campa do túmulo, reluz sem o fulgor de domínio sobre as moças; sob o sol, os olhos escuros resistem feito bolotas de chumbo. No fim da tarde, de cada tarde, fundem-se à cor parda do caixilho oval sobre o mármore. A fixidez dos olhos, quando vivos, dava conta de nunca ter vertido uma gota de dor. Sofrera uma tarde, a dona; num fim de tarde tão plumboso quanto o que encobre o passeio no cemitério, o parelho dera-lhe bordoadas no meio da rua areenta de Pitimbu; depois dos banhos, da cachaça, do peixe na moqueca farinhenta. Durou pouco o ruidoso conúbio. Ela enrustiu-se no mando do bordel, mirando-se nos machos de perfil mandador como Osvaldo Rabelo. Já o parelho, cujo nome nunca pôs no rebuço do casaco, sumiu no fim da rua da Baixinha, por onde se tem acesso à incerteza da incógnita Paraíba; ou enterrou-se sem registro no fichário dos mortos onde Joaquina jaz de olhos abertos.
Osvaldo Rabelo fora tangerino, tropeiro de burros e bois vindos de Goianinha. Ganhou a confiança de João Santos, fazendo a segurança de caminhões carregados de sacos de cimento, na travessia de rios, por balsa, e de estradas. Não tardou, entrou na polícia; sem concurso...! Pra quê...? Não basta a bênção do usineiro? Talvez tenha trocado miúdas palavras com a dona do bordel. Certo é que se entenderam no sorvedouro das mesmas ideias. Quem manda neste mundo é usineiro e chefe de polícia... O séquito? Ora... Que gaste a paga entre as paredes de compensado dos quartos de Joaquina.
Everaldo criou-se no culto à cultura da mãe; menino no meio de mulheres, adamou-se. Nunca se enfeitou como uma dama da noite, inda que não se livrando do molejo na cintura. A mãe, de olho na traficância de moças recém-descabaçadas, recrutadas com garantias de abrigo certo. Everaldo, novinho, nariz e boca feito dois biscuís, dava-lhes carinho, tinha assento no colo de cada uma; no colo e nas camas com donatário ausente. Mais tarde, aluno do ginásio misto, ofereceu-se para ser pastor ao lado do “véio” do pastoril da escola. Ganhou o apelido de pastora bela... Para o resto da vida.
Da vida e da morte, posto que também jaz no mesmo alinhamento de campas onde está a mãe. O retrato na moldura prateada, pequena, exibe-o com olhos e riso num canto da boca; sedução de putas cuja sedução se perdera no ofício. Everaldo perdeu a sedução com uma facada no ventre curvado. A mulher queria-o a todo custo, mas ele...
O último a morrer foi Osvaldo Rabelo. O domínio que mantivera sobre a cidade, mantém-no mesmo enterrado. Seu mausoléu está na frente de todos, olhando para o portão do cemitério; com o respeito servil de Joaquina, o espanto nos olhos de Everaldo; e a submissão da família do árabe Salim, cuja tumba, a derradeira do alinhamento, diz que sua morte “deixou saldade”.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
Ótimo texto. Sempre atenta.
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