sábado, 10 de setembro de 2011



Relatos de guerra

O poeta alemão Johan Wolfgang Göethe escreveu que "o homem é sempre o assunto mais interessante para o homem". Experiências, amores, aventuras, desventuras, rancores etc. alheios integram-se à nossa própria vivência, como bagagens de vida, balizando a nossa conduta. Ora servem como exemplos a seguir. Ora têm o efeito exatamente oposto, mostrando os efeitos de determinadas atitudes que só conduzem ao desastre e à morte prematura.

Daí o romance (por exemplo), o conto e a novela serem os gêneros preferidos pelos leitores em qualquer literatura. Daí o cinema e o teatro (este uma das formas mais antigas de comunicação e de arte) terem a aceitação que têm. Daí as biografias romanceadas nunca saírem de moda e terem vendas garantidas. É a experiência alheia servindo de exemplo de sucesso ou de fracasso para cada um de nós. E não importa o cenário onde o enredo tenha se desenvolvido. Não importa o idioma falado pelas personagens. Não importam as diferenças culturais de quem vive as aventuras e desventuras narradas.

As histórias, por mais fantásticas que sejam, têm sempre um fundo de verossimilhança. E isto quando não são verídicas. Nestes casos, os enredos tendem a ser ainda mais impressionantes e em geral nos identificamos mais ainda com as personagens e situações narradas, que em algum ponto ou outro se assemelham às nossas. Fedor Dostoievsky constatou que "não há nada mais espantoso do que a realidade". E não há mesmo. Basta acompanhar o noticiário da imprensa para constatar o absurdo do cotidiano. É a vida sobrepondo-se à arte.

Tais narrativas revelam, sobretudo, que todos os homens, em sua essência, em suas aspirações, em suas fraquezas e em suas virtudes ou misérias são relativamente semelhantes (não confundir com iguais). E que têm muito para aprender e para ensinar. O livro autobiográfico de Sergije Shapovalov, “Relatos de guerra”, conta com essas características. Tem todos os ingredientes que prendem os leitores, fazendo com que seja lido do começo ao fim, num único sopro, sem interrupções.

É a vida, com suas contradições, escorrendo do papel, embora o cenário seja de morte e de destruição (pelo menos em boa parte da narrativa). É a experiência humana, que fascina e orienta, transmitida em linguagem coloquial, simples e direta. É o amor brotando ou morrendo em uma época que poderia ser classificada (parodiando Gabriel Garcia Marquez) de "tempos de cólera", em que tudo parecia perdido. Tudo, menos a esperança...

O livro tem, por exemplo, entre seus ingredientes, experiências vividas em uma Europa convulsionada pela Segunda Guerra Mundial. Tem o caos deixado pelo conflito, diante da enorme tarefa da reconstrução --- não apenas das cidades destruídas, mas de vidas arruinadas pela perda de pais, filhos, esposos, irmãos etc. em meio à caça às bruxas da vingança contra os supostos vencidos.

Num conflito como os dois que a humanidade (e em especial o Velho Continente) viveu no século XX, não há vencedores. Todos, de uma forma ou de outra, perdem. E o grande perdedor é o próprio gênero humano. Tem, finalmente, a narrativa da descoberta de um novo mundo, exótico, descontraído e até irresponsável como é o Brasil, representado pelo Rio em tempos de Carnaval (ocasião em que Shapovalov desembarcou na Cidade Maravilhosa procedente da Itália).

Filho de pai russo – embora fora da Rússia desde a ascensão do comunismo – e de mãe alemã, o autor nasceu em Indija, na então Iugoslávia, hoje território da República Sérvia da Bósnia, uma das duas que integram a atual Bósnia-Herzegovina. Sofreu influências de várias culturas, o que apenas enriqueceu sua experiência, lhe dando uma visão mais ampla do mundo, com suas línguas, costumes e tradições os mais diversos e muitas vezes exóticos. Dotado de memória prodigiosa e de rara inteligência, foi ótimo estudante, aproveitando as poucas chances que lhe apareceram para se instruir.

Órfão de mãe muito cedo, foi criado, junto com um irmão menor, pelo pai, homem severo, às vezes até truculento, mas que à sua maneira amava os filhos e se preocupava com sua educação e sobretudo com sua integridade, numa Europa em guerra. Shapovalov integrou os dois lados do conflito, cada qual julgando-se o dono da verdade. Fez parte do grupo de cadetes russos, contrários ao regime comunista da União Soviética, que combateu ao lado dos alemães na fase final da guerra.

Da sua narrativa depreende-se que estes estavam longe de ser os monstros pintados no Ocidente. Isto vale, pelo menos, para a maioria dos seus soldados, que acreditavam na causa pela qual estavam arriscando a vida, tanto quanto norte-americanos, britânicos e franceses, que integravam as forças aliadas. Monstruosas, provavelmente, eram as mentes que engendraram as ideologias pelas quais tanta gente lutou e morreu... E em vão...

Finda a guerra, preso numa teia de circunstâncias, freqüentou uma academia do poderoso e então glorificado Exército Vermelho, vencedor da guerra. Dada sua facilidade em fazer amigos, seu conhecimento de vários idiomas e, sobretud,o seu talento para a música, logo atingiu posição de destaque. Mas Shapovalov tinha, desde criança, outra característica marcante, que fica clara ao longo de sua narrativa: a de se meter facilmente em encrencas. As várias em que se envolveu e a maneira com que se safou das mais perigosas e tensas situações é que compõem a parte mais deliciosa desta autobiografia, que tem tudo para agradar o leitor e para empreender vôos mais amplos, como ser transformada em roteiro de um excelente filme.


Boa leitura.

O Editor.

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Um comentário:

  1. Prefiro as biografias à ficção, mesmo tendo ciência da distância que há entre a realidade e o que é narrado. No caso das autobiografias, ou de fãs que biografam celebridades, a distância fica enorme, porém, ainda assim as prefiro. Ou ainda relatos históricos. De fato o bicho homem é a maior atração de todo o circo.

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