Madrasta
* Por Marco Albertim
Fosse só uma queda, o ruído não seria tão austero quanto fora o rosto de Santiago. O corpo desabou inteiro; a sola dos pés não dera sinais de manter-se plantada, deixando o resto do corpo ruir. O tombo emitiu, por efeito, a sonoridade própria de sua voz dura, pressentida; daí o susto. Antônia veio correndo do quarto. Anita, na cozinha, tinha as mãos cobertas de temperos. As duas depararam com o corpo desalinhado de Santiago, pernas dobradas, um braço solto, outro espremido entre as costelas e o sofá, a cabeça pendida para o chão, sem perguntas nos olhos abertos. “Meu Deus!” Antônia se acostumara com os achaques do marido, sobretudo com a tosse noturna, efeito de anos com o cigarro na boca. O corpo desfeito, na frente do sofá de luxo, deu conta do preciso contraste entre a prosperidade do lar e a morte zombando da fortuna.
As duas, com força não suspeitada, puseram o corpo sobre o sofá, a cabeça estendida no encosto lateral. Anita quisera limpar as mãos antes de levantar Santiago por um dos braços. “Não!” À ordem de Antônia, o rosto de Santiago acolheu, exangue, os restos de colorau untados com óleo comestível.
A ambulância chegou dali a vinte minutos. O prédio de nove andares, todo ele zumbiu o súbito desfalecimento do morador mais antigo. O porteiro fora o primeiro a saber, posto que teria que conduzir os paramédicos ao apartamento. Antônia deixara a porta aberta, ao lado do elevador, em frente à da vizinha; distinguira na opinião alheia a cura do mal de Santiago; mal passageiro, por certo; e a chance de se mostrar leal. Antes de lhe sugerirem um unguento ou outro, telefonara para o enteado. “Venha para cá, rápido! Seu pai não está bem...” Noutro tempo, não lograra tê-lo sob sua influência. Inda que a contragosto, presumindo-se única a ter, a expor as minúcias dos achaques do marido, intimara o enteado.
Ele chegou. O corpo do pai, na maca, fora posto na ambulância. A inquietação de Antônia a indispôs com o cheiro de éter no interior da ambulância. Quis ir dirigindo o próprio carro, foi aconselhada pelo paramédico a ir ao lado do marido. Podia ir na frente, ao lado do motorista; mas o juízo da vizinhança não a teria por boa mulher. O enteado sentou-se ao lado do motorista. Ela fruiu o éter e o rosto de Santiago, inculpando-a da dor de ambos.
Na Emergência, foram avisados de que só poderiam ver o doente com autorização do médico; dali a meia-hora, no dia seguinte, dali a cinco dias. Duas horas depois, a irmã de Antônia chegou. As duas saíram para conversar no pátio do hospital. O enteado, só, sentado no saguão, à espera do incerto, sentindo-se refém da madrasta. De seu lado, outras pessoas com parentes na Emergência; todos conversando, inda que pesarosos, mas conversando.
Quando as duas voltaram, também o médico anunciou a autorização para ver o doente. Nenhum diagnóstico. Antônia, segurando-se num dos braços da irmã, pediu ao enteado para entrar na Emergência. Com a irmã, a voz dera conta dos nervos mal controlados. “Vá você. Tenho medo de sentir a mesma coisa que ele...” – disse ao enteado. Danilo nunca privara de qualquer sentimento íntimo da madrasta. Olhou-a nos olhos, entreviu uma pena simulada.
De outra vez, fora expulso do apartamento do pai; recusara-se a trabalhar como corretor de imóveis; inda convivera duas semanas com corretores, mas vendo-os imoderados na cobiça por porcentagens, sumira da corretora. Santiago não o perdoara, expulsando-o do apartamento. Fora despedir-se da madrasta. Ela o recebera no trabalho, com afagos, mostrando-se impotente frente ao marido. Ele tirou do bolso o único objeto de uso pessoal para deixá-lo como lembrança; deu-lhe o isqueiro. Antônia quis os olhos úmidos, forcejando-os. Dali para frente, não tiveram mais o que falar; tiveram, mas a troca de palavras fora muda, tensa.
Danilo atravessou uma sala com camas por todo o quadrilátero. O éter abominado por Antônia fundiu-se as suas narinas. Os doentes, todos respirando com a ajuda de aparelhos. Não se via em Santiago a palidez do rosto, coberto pelo aparelho. O pescoço inchado, movendo-se feito a pele de um batráquio com o estômago cheio. Os movimentos do pescoço, enfunando, desenfunando, no mesmo ritmo do ruído da bomba de oxigênio.
Mirar Santiago prostrado por uma doença ainda desconhecida... Quão diferente fora ouvir-lhe a voz roufenha, chispando ódio por sentir-se usurpado nas despesas, na aposentadoria cujo valor supusera esconder do próprio banco. Danilo não o quisera doente, mesmo porque difícil fora imaginar o fel de autoridade do pai jungido a algum achaque; tampouco o modelara conforme na argila, com dedos ágeis, delicados. Santiago, agora, tem ameaças nos próprios olhos arregalados. Danilo sentiu-se incapaz de sentir dor, a não ser a vaga suspeita de que Santiago anunciava que o traria para a mesma dor.
Nos fundos de um lado da sala, por um vidro, via-se um jardim. As plantas altas, verdosas, com flores vermelhas, brancas, não balançavam. Não havia brisa; inda que houvesse, a janela de vidro não tinha trinco ou maçaneta para dar passagem a qualquer sorte de vento. A ilusão de vida, em vez de infundir esperança a doentes moribundos, acentuava-lhes a dor de não poder apalpá-la. Também Danilo sentiu-a, fundindo nos sentidos o cinza escuro do fim da tarde ao bafio de éter na sala com pouca luz. O que dirá à madrasta, posto que ela mesma se recusara a ver o sofrimento no rosto do marido?
De volta, Danilo mirou-a como o fez no rosto do pai. Demorou alguns segundos para falar, o suficiente para fruir a inusual troca de desesperança com ela. A irmã de Antônia, coadjuvando-a, ao lado dos dois, olhando-os também nos olhos, dando palpites mudos. Antônia não teve forças para se manter muda por mais um segundo. “Fale de uma vez!” Misturou na voz a coragem que não tinha ao medo de ser julgada responsável pela agonia do marido. A irmã, tão sôfrega quanto ela, assentiu com o perfil submisso. “Ele continua com os olhos abertos, mas não dá sinal de vida.”
Não tinham mais o que fazer ali. O médico nada dissera, a não ser que o doente fora sedado para o caso de sentir alguma dor; o soro daria vida às entranhas de Santiago; mas se a respiração minguasse, a traqueia seria furada.
Os três atravessaram a aleia do hospital sem se dar conta dos refletores iluminando os arbustos. A ambulância que os trouxera, estacionada no pátio, o motorista sentado no estribo da porta, inquirindo-os com a boca fechada. As duas irmãs e Danilo evitaram olhar para ele, sabendo-o com familiaridades no transporte da morte. A irmã de Antônia foi para sua casa; podia fazer companhia a Antônia naquela noite, mas foi para casa para não deixar o marido sozinho. Antônia não se opusera. Santiago estava mesmo no fim, o marido da irmã enfunando saúde.
A noite encheu-os de perguntas. Ela tomou café e nada comeu; o cheiro do éter tirara-lhe o apetite; bebeu o café na xícara cheia, com dois goles. Depois acendeu um cigarro, fundindo o prazer do vício com as dúvidas sobre se tinha ou não culpa pela sorte de Santiago. Danilo não quis pensar no pai; ainda que quisesse, a escassez de conversa entre os dois cavara um vácuo na precária relação entre pai e filho. Não fora direito para casa. Perto dali, sob uma árvore ao lado do Parque da Jaqueira, sentou-se para pensar na sua quieta rotina em trânsito para a orfandade. Órfão já adulto não tem graça; só as crianças são prosaicas com a notícia da morte do pai ou da mãe. A chuva irrigou seus pensamentos, e ele não arredou os pés do lugar. Os pingos deslizando na testa, no nariz. No juízo, o conforto de sentir-se tão dorido quanto à terra nua sob seus pés, molhada, sem grama. Mas a camisa encharcou. Ele correu para um bar, incomodado não tanto com a roupa molhada, mas com o juízo que dele faziam os ocupantes de duas ou três mesas. Não se sentou. No balcão, sorveu de um só gole um conhaque servido num copo pequeno, de fundo grosso; depois, mastigou uma azeitona para se abrigar na gentileza do garçom.
Antônia, já deitada, não tivera coragem de ir para a mesma cama que usufruíra com o marido. No quarto vizinho, abrigou-se na cama que comprara para o único filho que tivera com Santiago. Santiaguinho, adulto, vivia no Rio de Janeiro, casado pela segunda vez, como Antônia e Santiago. Ela não telefonou para o filho para dar conta do desfalecimento de Santiago. Não o queria transtornado em sua feliz rotina, no banco onde era gerente, no apartamento bem montado do Cosme Velho.
O dia colheu Antônia e Danilo sem esperanças; de um lado, ela sem ver o sumiço do espectro de Santiago na cama do casal; de outro, ele irresoluto em chorar ou não uma lágrima. Os dois tomaram módicos goles de café, sopesando a distância da residência de cada um para o leito da agonia muda de Santiago. À tarde, na hora das visitas, reencontraram-se no hospital. Na sala da UTI, permitia-se a entrada de um de cada vez. “Melhor assim”, os dois pensaram; não teriam que compartilhar culpas. À irmã de Antônia o acesso fora impedido, para poupar emoções a um doente sem emoções. Ela, vestindo um jaleco de plástico, foi a primeira a entrar. Com pânico nos olhos, não se aproximou da cabeceira da cama. A enfermeira acorreu, sossegando-a quanto a contágios. Ainda assim, Antônia não se moveu do lugar, na frente dos pés descobertos de Santiago. Os pés dele, peito e sola, estavam arroxeados do sangue coagulado, sem circulação. Dez minutos espreitados no relógio do próprio pulso, ela se retirou. Antes de olhar para o enteado, pôs um lenço branco entre a mão e os olhos, forcejando lágrima. Sentir-se-ia bem se a julgassem pesarosa.
Danilo, de volta, sentou-se de frente às duas. Uma mulher pondo na voz o acento de carpideira, disse-lhes que no andar de cima, no quarto de um só leito, um doente recuperara vida no rosto após uma noite de rezas e carpidos dos parentes. “É um aviso de Nosso Senhor!” – sentenciou Antônia. “Danilo! Vamos comigo conversar com os parentes do doente. Eles têm a cura da reza. Vamos! Pode ser a salvação...” A lividez de seu rosto removeu a branquidão doentia acentuada pelo lenço no rosto. Danilo não saiu do lugar, não disse uma palavra. Submissa, a irmã de Antônia acompanhou-a.
Na tarde seguinte, enquanto esperava a licença para entrar na sala da UTI, ela percorreu com os dedos as contas de um terço. Rezou pelo marido, por si, para se ver livre do embaraço da dor. Danilo, avesso a rezas, distinguiu a demência da madrasta nos lábios sussurrando, indiferentes ao juízo do mundo. A irmã parou de olhar para Antônia, para não se flagrar ajuizando-a amalucada.
Cinco dias sem qualquer diagnóstico, a morte soprando na boca do doente; soprando e ele ainda respirando. Antônia, mórbida, creu-se com fervura na fé. Santiago respirava graças à disciplina do rosário. À noite ela telefonou para Santiaguinho. “Não se preocupe, meu filho. Seu pai não vai morrer, ele está resistindo. Tenha fé como sua mãe tem.”
Santiaguinho, dali a dois dias, chegou para o enterro do pai. Santiago morrera sem diagnóstico médico. Antônia, vendo-o sem enfunar o pescoço, segurou com força o rosário. Resignou-se com a morte, por não ter que inquirir-se quanto à provação que a fortuna lhe reservara. No enterro, de um lado foi amparada pelo filho; de outro, pela irmã. Ouvindo o vento soprar entre as covas do cemitério de Santo Amaro, ouviu vozes em seu auxílio. “Estou cumprindo com minha obrigação de ser companheira até o fim.”
* Por Marco Albertim
Fosse só uma queda, o ruído não seria tão austero quanto fora o rosto de Santiago. O corpo desabou inteiro; a sola dos pés não dera sinais de manter-se plantada, deixando o resto do corpo ruir. O tombo emitiu, por efeito, a sonoridade própria de sua voz dura, pressentida; daí o susto. Antônia veio correndo do quarto. Anita, na cozinha, tinha as mãos cobertas de temperos. As duas depararam com o corpo desalinhado de Santiago, pernas dobradas, um braço solto, outro espremido entre as costelas e o sofá, a cabeça pendida para o chão, sem perguntas nos olhos abertos. “Meu Deus!” Antônia se acostumara com os achaques do marido, sobretudo com a tosse noturna, efeito de anos com o cigarro na boca. O corpo desfeito, na frente do sofá de luxo, deu conta do preciso contraste entre a prosperidade do lar e a morte zombando da fortuna.
As duas, com força não suspeitada, puseram o corpo sobre o sofá, a cabeça estendida no encosto lateral. Anita quisera limpar as mãos antes de levantar Santiago por um dos braços. “Não!” À ordem de Antônia, o rosto de Santiago acolheu, exangue, os restos de colorau untados com óleo comestível.
A ambulância chegou dali a vinte minutos. O prédio de nove andares, todo ele zumbiu o súbito desfalecimento do morador mais antigo. O porteiro fora o primeiro a saber, posto que teria que conduzir os paramédicos ao apartamento. Antônia deixara a porta aberta, ao lado do elevador, em frente à da vizinha; distinguira na opinião alheia a cura do mal de Santiago; mal passageiro, por certo; e a chance de se mostrar leal. Antes de lhe sugerirem um unguento ou outro, telefonara para o enteado. “Venha para cá, rápido! Seu pai não está bem...” Noutro tempo, não lograra tê-lo sob sua influência. Inda que a contragosto, presumindo-se única a ter, a expor as minúcias dos achaques do marido, intimara o enteado.
Ele chegou. O corpo do pai, na maca, fora posto na ambulância. A inquietação de Antônia a indispôs com o cheiro de éter no interior da ambulância. Quis ir dirigindo o próprio carro, foi aconselhada pelo paramédico a ir ao lado do marido. Podia ir na frente, ao lado do motorista; mas o juízo da vizinhança não a teria por boa mulher. O enteado sentou-se ao lado do motorista. Ela fruiu o éter e o rosto de Santiago, inculpando-a da dor de ambos.
Na Emergência, foram avisados de que só poderiam ver o doente com autorização do médico; dali a meia-hora, no dia seguinte, dali a cinco dias. Duas horas depois, a irmã de Antônia chegou. As duas saíram para conversar no pátio do hospital. O enteado, só, sentado no saguão, à espera do incerto, sentindo-se refém da madrasta. De seu lado, outras pessoas com parentes na Emergência; todos conversando, inda que pesarosos, mas conversando.
Quando as duas voltaram, também o médico anunciou a autorização para ver o doente. Nenhum diagnóstico. Antônia, segurando-se num dos braços da irmã, pediu ao enteado para entrar na Emergência. Com a irmã, a voz dera conta dos nervos mal controlados. “Vá você. Tenho medo de sentir a mesma coisa que ele...” – disse ao enteado. Danilo nunca privara de qualquer sentimento íntimo da madrasta. Olhou-a nos olhos, entreviu uma pena simulada.
De outra vez, fora expulso do apartamento do pai; recusara-se a trabalhar como corretor de imóveis; inda convivera duas semanas com corretores, mas vendo-os imoderados na cobiça por porcentagens, sumira da corretora. Santiago não o perdoara, expulsando-o do apartamento. Fora despedir-se da madrasta. Ela o recebera no trabalho, com afagos, mostrando-se impotente frente ao marido. Ele tirou do bolso o único objeto de uso pessoal para deixá-lo como lembrança; deu-lhe o isqueiro. Antônia quis os olhos úmidos, forcejando-os. Dali para frente, não tiveram mais o que falar; tiveram, mas a troca de palavras fora muda, tensa.
Danilo atravessou uma sala com camas por todo o quadrilátero. O éter abominado por Antônia fundiu-se as suas narinas. Os doentes, todos respirando com a ajuda de aparelhos. Não se via em Santiago a palidez do rosto, coberto pelo aparelho. O pescoço inchado, movendo-se feito a pele de um batráquio com o estômago cheio. Os movimentos do pescoço, enfunando, desenfunando, no mesmo ritmo do ruído da bomba de oxigênio.
Mirar Santiago prostrado por uma doença ainda desconhecida... Quão diferente fora ouvir-lhe a voz roufenha, chispando ódio por sentir-se usurpado nas despesas, na aposentadoria cujo valor supusera esconder do próprio banco. Danilo não o quisera doente, mesmo porque difícil fora imaginar o fel de autoridade do pai jungido a algum achaque; tampouco o modelara conforme na argila, com dedos ágeis, delicados. Santiago, agora, tem ameaças nos próprios olhos arregalados. Danilo sentiu-se incapaz de sentir dor, a não ser a vaga suspeita de que Santiago anunciava que o traria para a mesma dor.
Nos fundos de um lado da sala, por um vidro, via-se um jardim. As plantas altas, verdosas, com flores vermelhas, brancas, não balançavam. Não havia brisa; inda que houvesse, a janela de vidro não tinha trinco ou maçaneta para dar passagem a qualquer sorte de vento. A ilusão de vida, em vez de infundir esperança a doentes moribundos, acentuava-lhes a dor de não poder apalpá-la. Também Danilo sentiu-a, fundindo nos sentidos o cinza escuro do fim da tarde ao bafio de éter na sala com pouca luz. O que dirá à madrasta, posto que ela mesma se recusara a ver o sofrimento no rosto do marido?
De volta, Danilo mirou-a como o fez no rosto do pai. Demorou alguns segundos para falar, o suficiente para fruir a inusual troca de desesperança com ela. A irmã de Antônia, coadjuvando-a, ao lado dos dois, olhando-os também nos olhos, dando palpites mudos. Antônia não teve forças para se manter muda por mais um segundo. “Fale de uma vez!” Misturou na voz a coragem que não tinha ao medo de ser julgada responsável pela agonia do marido. A irmã, tão sôfrega quanto ela, assentiu com o perfil submisso. “Ele continua com os olhos abertos, mas não dá sinal de vida.”
Não tinham mais o que fazer ali. O médico nada dissera, a não ser que o doente fora sedado para o caso de sentir alguma dor; o soro daria vida às entranhas de Santiago; mas se a respiração minguasse, a traqueia seria furada.
Os três atravessaram a aleia do hospital sem se dar conta dos refletores iluminando os arbustos. A ambulância que os trouxera, estacionada no pátio, o motorista sentado no estribo da porta, inquirindo-os com a boca fechada. As duas irmãs e Danilo evitaram olhar para ele, sabendo-o com familiaridades no transporte da morte. A irmã de Antônia foi para sua casa; podia fazer companhia a Antônia naquela noite, mas foi para casa para não deixar o marido sozinho. Antônia não se opusera. Santiago estava mesmo no fim, o marido da irmã enfunando saúde.
A noite encheu-os de perguntas. Ela tomou café e nada comeu; o cheiro do éter tirara-lhe o apetite; bebeu o café na xícara cheia, com dois goles. Depois acendeu um cigarro, fundindo o prazer do vício com as dúvidas sobre se tinha ou não culpa pela sorte de Santiago. Danilo não quis pensar no pai; ainda que quisesse, a escassez de conversa entre os dois cavara um vácuo na precária relação entre pai e filho. Não fora direito para casa. Perto dali, sob uma árvore ao lado do Parque da Jaqueira, sentou-se para pensar na sua quieta rotina em trânsito para a orfandade. Órfão já adulto não tem graça; só as crianças são prosaicas com a notícia da morte do pai ou da mãe. A chuva irrigou seus pensamentos, e ele não arredou os pés do lugar. Os pingos deslizando na testa, no nariz. No juízo, o conforto de sentir-se tão dorido quanto à terra nua sob seus pés, molhada, sem grama. Mas a camisa encharcou. Ele correu para um bar, incomodado não tanto com a roupa molhada, mas com o juízo que dele faziam os ocupantes de duas ou três mesas. Não se sentou. No balcão, sorveu de um só gole um conhaque servido num copo pequeno, de fundo grosso; depois, mastigou uma azeitona para se abrigar na gentileza do garçom.
Antônia, já deitada, não tivera coragem de ir para a mesma cama que usufruíra com o marido. No quarto vizinho, abrigou-se na cama que comprara para o único filho que tivera com Santiago. Santiaguinho, adulto, vivia no Rio de Janeiro, casado pela segunda vez, como Antônia e Santiago. Ela não telefonou para o filho para dar conta do desfalecimento de Santiago. Não o queria transtornado em sua feliz rotina, no banco onde era gerente, no apartamento bem montado do Cosme Velho.
O dia colheu Antônia e Danilo sem esperanças; de um lado, ela sem ver o sumiço do espectro de Santiago na cama do casal; de outro, ele irresoluto em chorar ou não uma lágrima. Os dois tomaram módicos goles de café, sopesando a distância da residência de cada um para o leito da agonia muda de Santiago. À tarde, na hora das visitas, reencontraram-se no hospital. Na sala da UTI, permitia-se a entrada de um de cada vez. “Melhor assim”, os dois pensaram; não teriam que compartilhar culpas. À irmã de Antônia o acesso fora impedido, para poupar emoções a um doente sem emoções. Ela, vestindo um jaleco de plástico, foi a primeira a entrar. Com pânico nos olhos, não se aproximou da cabeceira da cama. A enfermeira acorreu, sossegando-a quanto a contágios. Ainda assim, Antônia não se moveu do lugar, na frente dos pés descobertos de Santiago. Os pés dele, peito e sola, estavam arroxeados do sangue coagulado, sem circulação. Dez minutos espreitados no relógio do próprio pulso, ela se retirou. Antes de olhar para o enteado, pôs um lenço branco entre a mão e os olhos, forcejando lágrima. Sentir-se-ia bem se a julgassem pesarosa.
Danilo, de volta, sentou-se de frente às duas. Uma mulher pondo na voz o acento de carpideira, disse-lhes que no andar de cima, no quarto de um só leito, um doente recuperara vida no rosto após uma noite de rezas e carpidos dos parentes. “É um aviso de Nosso Senhor!” – sentenciou Antônia. “Danilo! Vamos comigo conversar com os parentes do doente. Eles têm a cura da reza. Vamos! Pode ser a salvação...” A lividez de seu rosto removeu a branquidão doentia acentuada pelo lenço no rosto. Danilo não saiu do lugar, não disse uma palavra. Submissa, a irmã de Antônia acompanhou-a.
Na tarde seguinte, enquanto esperava a licença para entrar na sala da UTI, ela percorreu com os dedos as contas de um terço. Rezou pelo marido, por si, para se ver livre do embaraço da dor. Danilo, avesso a rezas, distinguiu a demência da madrasta nos lábios sussurrando, indiferentes ao juízo do mundo. A irmã parou de olhar para Antônia, para não se flagrar ajuizando-a amalucada.
Cinco dias sem qualquer diagnóstico, a morte soprando na boca do doente; soprando e ele ainda respirando. Antônia, mórbida, creu-se com fervura na fé. Santiago respirava graças à disciplina do rosário. À noite ela telefonou para Santiaguinho. “Não se preocupe, meu filho. Seu pai não vai morrer, ele está resistindo. Tenha fé como sua mãe tem.”
Santiaguinho, dali a dois dias, chegou para o enterro do pai. Santiago morrera sem diagnóstico médico. Antônia, vendo-o sem enfunar o pescoço, segurou com força o rosário. Resignou-se com a morte, por não ter que inquirir-se quanto à provação que a fortuna lhe reservara. No enterro, de um lado foi amparada pelo filho; de outro, pela irmã. Ouvindo o vento soprar entre as covas do cemitério de Santo Amaro, ouviu vozes em seu auxílio. “Estou cumprindo com minha obrigação de ser companheira até o fim.”
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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