sábado, 5 de março de 2011




Toda viagem

* Por Sergio Vilas Boas

Toda viagem é uma interação com o desconhecido, mesmo quando o destino nos parece previsível. Minutos de metrô rumo a um museu ou meses de planejamento para desembarcar no interior do Vietnã, não importa. Jamais saberemos exatamente o que nos espera. Aliás, a vida seria muito sem graça sem o imprevisto, por mais que nossas mentes autoprogramáveis se iludam com certas certezas...

Toda viagem é uma comunicação. Envolve encontros e desencontros, sorrisos e despedidas, conceitos e preconceitos. Sinto que nós, brasileiros, aprendemos a aceitar que somos como somos porque nossa cultura possui uma diversidade diferente da diversidade de outras culturas; porque, no fundo, cultura é a arte de viver de uma maneira específica, escolhida...

Toda viagem é um movimento. Extrapola as noções de fronteira, bandeira, hino, moeda, idioma. Quem viaja, de fato, transita. Abandona provisoriamente as suas intolerâncias e ressentimentos a fim de praticar o olhar e a escuta. Quem transita, sai de seu centro a ponto de atingir as próprias periferias. Brasileiros que ainda podem fazer uma viagenzinha de vez em quando, ainda estão aprendendo a transitar pelas diversidades do mundo...

Toda viagem é uma migração (temporária). Independentemente da finalidade, essa transição nos coloca em conflito. As sociedades do passado remoto inventaram rituais de hospitalidade para evitar banhos de sangue entre tribos estranhas e permitir um mínimo de intercâmbio entre elas. Hoje em dia o hóspede não é mais algo sagrado como nos tempos imemoriais. Mas será sempre bem-vindo desde que movimente o turismo e não permaneça. O cerco aos emigrantes está cada vez maior.

Toda viagem é uma interrogação. Nossas malas empoeiradas no armário estão recheadas de dúvidas. Por que as coisas aqui são como são? Por que a minha cidade não é tão bonita e organizada quanto esta? Por que não me mudo para cá (ou para lá)? Por que não me mudo de forma alguma? Porquês, porquês, porquês. Torrentes que não se calam nem diante dos nossos pretextos. Como é possível? Não sei. Só sei que é assim. Por enquanto...

Toda viagem é única. Como o humano ser, as viagens não se repetem. Você, que, como eu, desembarcou várias vezes no mesmo lugar, me diga: foi a mesma coisa? Até as aves de arribação acabam descobrindo rotas diferentes para pousos iguais. “O pássaro é um vento orquestrado/ O pouso pesa o que foi voado”, escreveu o poeta Fabrício Carpinejar no livro Biografia de Uma Árvore, através do qual viajei...

Toda viagem é uma lembrança. Segue conosco aonde formos. São a bagagem sem peso que levaremos até o derradeiro instante. Mas, para maior autenticidade, uma viagem precisa também de retorno (feedback) e de volta. Uma volta às origens, talvez. Sim, porque, se não somos videntes e a única jornada sem volta é a jornada de viver, então, só nos resta contemplar ativamente...

Toda viagem é um sonho. Podemos até induzi-lo com um pouco de imaginação. Imagine-se agora saindo de casa para uma viagem sem rota nem destino. Cair no mundo como aqueles personagens errantes dos filmes on the road. Feche os olhos, acompanhe seus passos, observe a sua trajetória. Daí que o próprio viajar é a melhor parte da viagem, mesmo que ela não se realize.

* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis” (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.

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