sábado, 12 de março de 2011


Pedra que entranha a alma

* Por Luiz Carlos Monteiro

Na história da poesia brasileira, João Cabral de Melo Neto ocupa um lugar destacado, sendo raro o poeta contemporâneo que, como ele, tenha realizado obra de tão acentuada coerência e nitidez poética. E isto pode ser conferido nos níveis interno e externo dessa obra, pela manifestação de uma fatura estilística e diccional diferenciada e infreqüente em tantos outros poetas. Ou talvez mesmo inexistente em muitos deles, ao passo que no pernambucano tal fatura desenvolve-se de um modo seriado, gradativo e sempre enriquecido pelo elastecimento e dinamização das categorias poéticas que comporta.

Mesmo levando-se em conta o fato de que a poesia cabralina é de ressonância bem maior no Brasil, ela certamente ultrapassa os limites regionais e fronteiriços do país, disseminando-se em praticamente todos os países onde se fala a língua portuguesa, ou ainda em outros nos quais foi traduzida.

Das leituras com fins estritamente analíticos, ou mesmo daquelas que visam apenas a absorção “desinteressada” da própria poesia de João Cabral, constata-se que essa poesia encontra-se centrada preferencialmente em Pernambuco, num assentamento que se estende aos quatro cantos de cidades e lugares diversos do estado, embora não se deva esquecer o quanto nela participa da Andaluzia e de Sevilha, na Espanha.

E ainda nos livros da última fase – que vai de Museu de tudo (1975) a Sevilha andando (1990) –, este fenômeno do mapeamento espanhol e do canto sensivelmente voltados a Pernambuco, continua sendo uma das peculiaridades da poesia cabralina.

Nesta delimitação radical e intencionalmente geográfica, emerge-se logo a idéia de uma certa espacialidade, sempre buscada por ele e tornada, ao longo da obra, marca irredutível e legitimada em seus poemas.

A malha espacial daí resultante, sem se pensar agora no “Pernambuco espanhol” de Cabral, presentifica-se fortemente na sua poesia urbana, com o acompanhamento da expansão e ramificação da cidade do Recife. Daí é que se inaugura a elaboração de um canto dirigido dialeticamente à cidade e seus habitantes. Um canto socialmente fragmentado entre, num primeiro momento, as contradições materiais e de bem-estar elementares destes mesmos habitantes, alguns talvez de maior privilégio, instalados em casas, sobrados ou edifícios, com as condições mínimas de sobrevivência garantidas e acessíveis, em contraposição ao abandono dos excluídos do mangue.

E também, de outro ângulo, essa malha espacial presentifica-se numa visada que absorve, de modo bastante lúcido e integrado, as paisagens de microrregiões pernambucanas, do canavial ao agreste, do litoral ao sertão; visada que revela uma postura ética e socialmente empenhada do poeta, com uma atenção desdobrada e conseqüente, voltada para o que pulsa, apesar da contundência da reflexão encetada, mais de vida que de morte na gente de Pernambuco.

João Cabral aposta e encaminha toda a sua esperança na grandeza da gente pernambucana em campos éticos e sociais definidores de sua transitação histórica. Nos seus poemas, ele retrata a sua gente com um respeito profundo por ela, na qualidade de uma gente que mantém uma forte ligação com a natureza tropical indomada de uma terra ignota, e às vezes tida como simplória e alheada da dinâmica da vida exterior a esse espaço geográfico recortado “em prancha longa e estreita/ no Brasil nordestino”, como no poema “Descrição de Pernambuco como um trampolim”, do livro A escola das facas, que se irá analisar neste ensaio.

O poeta, paradoxalmente em vida um diplomata de carreira, ultrapassa esta particularidade para muitos desconcertante, e alia-se, assim, à sua gente que, quando não descaradamente ignorada, omitida simplesmente dos planejamentos sucessivos e falaciosos tramados e prospectados nos gabinetes políticos e empresariais, quais gabinetes mais oficiosos e ociosos que propriamente representativos, e ainda nem sempre ciosos de sua imensa nocividade e do grau de malefício que emprestam e causam cotidianamente ao país. No esteio destas considerações, A escola das facas (1980), reafirma-se como um livro no qual a tematização de um Pernambuco insistentemente mapeado e redescoberto por João Cabral, prossegue, desenvolve-se e sedimenta-se numa escala altamente recorrente. Isto pode ser ilustrado com uma estrofe do mesmo “Descrição de Pernambuco como um trampolim”:

E há outros trampolins,
mas de expressão interna:
jogam dentro do dentro
de quem aqui se deixa.
Os mangues, por exemplo,
lesma, sem moles, seitas,
lançam dentro de nós
nossa culpa mais negra;
e o trampolim que quando
mais o Sertão se seca,
nos joga retirantes,
a pé, sem pára-quedas.

Em A escola das facas, o desvio temático da área localista enseja-se em algumas poucas exceções, como no poema-prefácio “O que se diz ao editor a propósito de poemas”. Mas, se visto de um prisma de maior abertura, identifica-se ainda neste poema, como traços já não mais tão raros em João Cabral, a personalização e a auto-ironia rebarbativas, associadas à sua presença renitente de “incurável pernambucano”:

Eis mais um livro (fio que o último)
de um incurável pernambucano;
se programam ainda publicá-lo,
digam-me, que com pouco o embalsamo.

Mas não apenas isto, como quando ele instaura mais uma vez a sua voz de desafio e disciplina frente ao poema, ao falar de poesia em poema:

Poema nenhum se autonomiza
no primeiro ditar-se, esboçado,
nem no construí-lo, nem no passar-se
a limpo de dactilografá-lo”.

Nas páginas deste livro, a par de um memorialismo visivelmente diferenciado na poesia brasileira, é feito o mapeamento “regressivo” dos relevos e confins de uma infância dissidente do núcleo familiar, onde o futuro poeta apreende e devolve em poesia nuances de paisagens e vivências sociais de sua gente e da região nordestina. Mas é já no primeiro poema, “Menino de engenho”, que se pode ver como João Cabral relata e informa sobre seus primeiros contatos com a “cana” pernambucana, e sua semelhança ao “gume afiado da foice” dos canavieiros:

A cana cortada é uma foice.
Cortada num ângulo agudo,
ganha o gume afiado da foice
que a corta em foice, um dar-se mútuo.

Menino, o gume de uma cana
cortou-me ao quase de cegar-me,
e uma cicatriz, que não guardo,
soube dentro de mim guardar-se.

A cicatriz não tenho mais;
o inoculado, tenho ainda;
nunca soube é se o inoculado
(então) é vírus ou vacina”.

No entender de Luiz Costa Lima, em Dispersa demanda (1981), essa experiência do menino, repartido entre “a atração pela literatura crua do romanceiro e o receio da reprimenda”, representa a compulsão fundadora da poética cabralina. Neste sentido, os versos do poema “Descoberta da literatura”, desvelam o aprendizado da poesia a partir do romanceiro popular nordestino, com a leitura de folhetos de cordel pelo menino-poeta aos trabalhadores no engenho da família, e com o menino sempre alerta a uma possível repreensão dos parentes pela sua disponibilidade em comunicar-se com

cassacos do eito e de tudo,
se [estava] dando ao desplante
de ler letra analfabeta
de corumba, no caçanje
próprio dos cegos de feira,
muitas vezes meliantes.

Ensaiando-se a perspectiva de um retorno destes versos finais do poema aos versos imediatamente anteriores – a disposição não-estrófica identifica-se em estrofe usual apenas pelas maiúsculas que iniciam cada uma das cinco subdivisões implícitas, sendo como é este poema um bloco compacto e de versos soldados entre si –, o olhar e o pensamento podem agora captar os indícios não mais embutidos ou velados da escrita do cordel desenvolvidos no poeta, somados ao próprio relato de sua aparição “mirabolante” na maneira mágica e maravilhosa como “tais coisas contadas” refluíam sobre aqueles ouvintes e sobre o próprio menino-poeta:

Embora as coisas contadas
e todo o mirabolante,
em nada ou pouco variassem
nos crimes, no amor, nos lances,
e soassem como sabidas
de outros folhetos migrantes,
a tensão era tão densa,
subia tão alarmante,
que o leitor que lia aquilo
como puro alto-falante,
e, sem querer, imantara
todos ali, circunstantes,
receava que confundissem
o de perto com o distante,
o ali com o espaço mágico,
seu franzino com o gigante,
e que o acabassem tomando
pelo autor imaginante
ou tivesse que afrontar
as brabezas do brigante.

Tais indícios e traços apenas reforçam a influência, ao mesmo que particularizada e regional do cordel, também extensiva ao romanceiro ibérico tradicional, ambas a operar, em maior ou menor grau, fatual e sensivelmente sobre a poesia cabralina. A escola das facas representa um ponto de inflexão na poesia cabralina, onde a mudança de foco e perspectiva se dá a partir do novo despojamento do poeta, ao passar de uma dicção impessoal e terceirizada, para o descobrir-se em “sujeito lírico enquanto ser histórico”, como na expressão de Antonio Carlos Secchin, em João Cabral: a poesia do menos (1985). Apesar da evidente dificuldade em escrever sobre si mesmo, João Cabral consegue, neste livro, o seu intento, utilizando-se ainda de processos característicos formais e expressivos peculiares à sua poesia anterior. Verifica-se agora um desatamento do nó diccional, que viabiliza novas e outras interpretações. Pode-se falar então, sem receio de cair em exagero, com Silviano Santiago, em Vale quanto pesa (1981), de uma espécie de “desdogmatização”, na qual “as fronteiras rigorosas de significado perdem a nitidez, diluem-se, contaminando áreas que antes não teriam sido afins”, pela forma como até então a poesia de Cabral vinha sendo conduzida. Como exemplos desta “desdogmatização”, constituídos pelo ludismo tremendamente irônico e pela abertura dos acontecimentos de uma infância impronunciada e ausente de seus poemas anteriores, tem-se poemas do feitio de “Tio e sobrinho”, onde a conversa interessantíssima do tio incita a curiosidade do menino; “Cento-e-sete”, que descreve o dilema de um agregado sem nome da casa recifense do poeta, esclerosado e a imaginar formigas andando em seu corpo; “A imaginação do pouco”, a descarnar o relativo interesse da meia dúzia de histórias de dormir de Siá Floripes. Poemas que se complementam em outros poemas alusivos à sensualidade feminina da cana-de-açúcar e das frutas pernambucanas. Mas, mesmo no memorialismo do poeta já maduro em busca do menino que deixou em Pernambuco, não são feitas demasiadas concessões à nova orientação assumida. Suas experiências com a memória podem remontar, por exemplo, ao dia em que nasceu, como no poema “Autobiografia de um só dia”, que instaura uma espécie de nonsense e contrafação, na forma como sempre se apresentaram manifestações de feição intimista e seu tanto proustianas em diários, romances e poemas na literatura brasileira. Ao contrário do poeta pernambucano e seu primo Manuel Bandeira, João Cabral não repudia a faca ou “as facas” do pernambucano: elege-as instrumento de luta e denúncia, de motivação ética e de crítica social, alojadas que se encontravam nos desvãos de suas memórias e vivências mais remotas e conseqüentes. Metáforas da faca foram trabalhadas exaustivamente no longo poema Uma faca só lâmina (1955). Este poema explicita a contundência de um real que continua a concentrar-se na região nordestina, com suas circunstâncias de vida delimitadas negativamente pela morte, a corrosão e a violência. A faca aparece, por esta via da metáfora, em Uma faca só lâmina, como objeto pontual de intervenção e corte na poesia brasileira dos anos 50, pela carga de violência que o poema sugere, a oscilar perigosamente entre a contenção e a explosão, e pela insatisfação que o poeta externa com relação às possibilidades expressivas na poesia feita ao tempo. O poema prende-se essencialmente a uma praxis do tempo presente, do tempo em que se executa a poesia – um tempo diferenciado do tempo da memória com que foram construídos, cerca de vinte anos depois, os poemas de A escola das facas. Os poemas que se associam ao eixo temático central do livro, formam uma pequena árvores de interações e possibilidades, que se ramifica e estende-se, direta ou indiretamente, a quase toda A escola das facas. Pertencem ao grupo mais restrito, o poema “A escola das facas”, que se inter-relaciona diretamente a “A voz do canavial” e a “A voz do coqueiral”. Em outro ramo do mesmo grupo, situam-se “As facas pernambucanas” e “Duelo à pernambucana”. A irregularidade na disposição dos poemas do livro anterior, Museu de tudo (1975), não pressupõe necessariamente perda de qualidade e rigor na fatura poética, ao antecipar o memorialismo algo enviesado e desreprimido de A escola das facas. É relevante também o fato de que, em oposição à descontração temática de Museu de tudo e à alteração estrutural de A escola das facas, o poeta decidiu-se a elaborar, ele mesmo, no próximo livro, o que achava de melhor e mais acabado em sua produção anterior, agrupando tais poemas num volume a que intitulou Poesia crítica (1981). A dimensão metalingüística, além de bastante evidenciada em Museu de tudo, está presente também em A escola das facas, numa prática que vem desde os primeiros livros, e que ocorrerá num livro posterior como Agrestes (1985), notadamente no bloco “Linguagens alheias”. A transposição poética é feita no modo como ele vê, sente e relaciona-se com outros artistas ou figuras humanas que instigaram a sua sensibilidade. É sabido que as formas de Cabral percorrem um roteiro criativo que tende à utilização inusitada e extremada das possibilidades da língua, com raras e ocasionais quedas de qualidade neste percurso. Ele trabalha um universo de rimas sempre toantes, talvez pela maior dificuldade de construção exigida, ou ainda pelo distanciamento radical da poesia “inspirada” e de teor sentimentalista. Em termos de métrica, os números tradicionais da poesia clássica são substituídos pelo intervalo métrico oito-nove sílabas. Num trecho de poema de Agrestes, dedicado ao poeta paulista Augusto de Campos, seu leitor “ideal” porque a contrapelo e de poesia antípoda, João Cabral esclarece sobre as formas de sua poesia, de um modo que chega a atingir como que um intento didático:

Você aqui reencontrará
as mesmas coisas e loisas
que me fazem escrever
tanto e de tão poucas coisas:
o não-verso de oito sílabas
(em linha vizinha à prosa)
que raro tem oito sílabas,
pois metrifica à sua volta;
a perdida rima toante
que apaga o verso e não soa,
que o faz andar pé no chão
pelos aceiros da prosa.

Faz-se inegável o fato de João Cabral ter construído uma poética que prima pela extrema clareza e visibilidade solar, com raras incursões noturnas, e com uma formulação mais gestaltiana que freudiana. E nessa investida é que reside, paradoxalmente, a dilatação estética do seu universo de conformação regional, que passa a realizar-se com o alcance de uma poesia de longa vida e de marca inconfundível. Poesia que se entremostra, nos seus instantes mais fortes e extremados, como um gume de faca pernambucana ou de Pasmado frente aos reflexos de um sol nordestino e tropical, ora inquietantemente luminoso em sua extensão e fluência marinha, ora impiedoso e relutante na sua refração andaluza e sertaneja.

(Suplemento Cultural da CEPE, ano XIII, nov. 1999).

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com

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